O reaparecimento de saldos negativos nas contas externas brasileiras, após cinco anos de superávits consecutivos, mudou o tom do debate econômico dentro do governo Lula. O risco de o déficit em conta corrente sair do controle e provocar uma crise no balanço de pagamentos, interrompendo, como aconteceu mais de uma vez no passado, o novo ciclo de crescimento da economia, estimulou economistas do governo e conselheiros informais do presidente a discutirem possíveis alternativas à política econômica vigente. A reportagem é de Cristiano Romero e Claudia Safatle e publicada pelo jornal Valor, 03-04-2008.
O saldo das transações correntes em 12 meses começou a cair, de forma acelerada, em julho do ano passado. O superávit caiu de US$ 13,3 bilhões em junho para US$ 1,4 bilhão em dezembro, surpreendendo o mercado e o próprio BC. Em janeiro, o déficit reapareceu - US$ 2,4 bilhões nos 12 meses concluídos naquele mês. No mês seguinte, voltou a subir - para US$ 4,8 bilhões ou 0,37% do PIB.
No primeiro bimestre, as transações correntes acumularam déficit de US$ 6,3 bilhões, levando o Banco Central a rever, para cima, a sua projeção de saldo negativo para 2008 - de US$ 3,5 bilhões para US$ 12 bilhões.
Preocupam a Fazenda a queda do ritmo de crescimento das exportações e o forte aumento das importações. Nos 12 meses concluídos em fevereiro, as vendas externas avançaram 17,5%, a segunda menor taxa de expansão em cinco anos. Já as importações cresceram, no mesmo período, 36,5%, o melhor desempenho em 14 anos. O saldo comercial, em conseqüência, vem diminuindo rapidamente - caiu 21,2% em relação ao período entre março de 2006 e fevereiro de 2007.
O debate sobre as contas externas se intensificou, nas últimas semanas, graças à expectativa de que Banco Central (BC), preocupado com o forte crescimento da demanda interna, voltará a aumentar, depois de quase três anos de alívio, a taxa básica de juros (Selic), hoje em 11,25% ao ano. Os críticos, dentro e fora do governo, da política monetária conduzida pelo BC temem que um aperto monetário aborte o atual ritmo de expansão do Produto Interno Bruto (PIB), hoje em torno de 5% ao ano.
A possibilidade de o país voltar a sofrer uma crise no balanço de pagamentos foi introduzida na agenda oficial em 6 de março, durante reunião do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto, com o professor Luiz Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, o ex-ministro Delfim Netto, o senador Aloísio Mercadante (PT-SP), o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.
No encontro, Delfim e Belluzzo advertiram que, mantido o atual curso da economia, com o dólar se desvalorizando e o risco de queda abrupta nos preços das commodities, se nada for feito, o Brasil pode chegar a 2010, ano da campanha sucessória, com o país tendo reconstruído um naco de dependência e, portanto, a vulnerabilidade externa. No limite, advertiram os conselheiros de Lula, o governo pode vir a entregar a economia brasileira a seu sucessor com uma situação externa em franca deterioração, numa reprodução do cenário que recebeu de Fernando Henrique Cardoso.
O diagnóstico encorajou a equipe econômica a iniciar um debate sobre eventuais alternativas ao modelo atual, que combina o regime de metas para inflação, o sistema de câmbio flutuante e a geração de superávits primários nas contas públicas. Fontes graduadas revelaram que uma das possibilidades em análise seria o Brasil vir a adotar um regime de metas para o câmbio, com a desvalorização forçada do real até um patamar a partir do qual haveria um piso. Este seria um piso informal, não anunciado ao público, num sistema de grande semelhança ao que Coréia, Japão e outros asiáticos já fazem há pelo menos uns 30 anos.
Não há qualquer decisão sobre esse tema e o presidente Lula não abençoou, pelo menos não ainda, idéias nesse sentido, mas um ministro informou que o "debate está sendo levado por Mantega ao Planalto".
Menos de uma semana depois da reunião com Delfim e Belluzzo, o Ministério da Fazenda anunciou medidas para conter a apreciação do real. Em geral, as iniciativas foram consideradas inócuas tanto pelo mercado quanto por setores do governo. O ministro Guido Mantega afirmou que o modelo de desenvolvimento do país era o da Ásia, onde as principais economias mantêm o câmbio desvalorizado para estimular as exportações.
Alguns dias depois, Mantega tornou pública a intenção de adotar medidas para conter a expansão do crédito, numa tentativa de jogar água fria no aquecimento da demanda e de evitar que o Banco Central, responsável pela administração do regime de metas para a inflação, seja forçado a elevar a taxa Selic. Dois dias depois, apoiado pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o presidente Lula desautorizou essa idéia, pois uma redução da oferta de crédito afetaria justamente os mais pobres, que estão tendo a oportunidade de consumir bens antes inacessíveis.
Outro aspecto problemático da mesma discussão é a possibilidade de um déficit em transações correntes crescente produzir uma desvalorização cambial importante que também gere pressões inflacionárias. A valorização da taxa de câmbio foi um dos principais atores da política de controle inflacionário dos últimos anos e, agora, não mais se poderia contar com essa contribuição. São esses cenários que orientam o debate econômico no governo, hoje, onde a grande variável para moldar o futuro é a taxa de câmbio. Sabe-se que mudar a política cambial a essa altura pode ser algo desastroso, mas o debate não está censurado.
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