Crise financeira: O 'moral hazard' entra em acordo com 'moral hypocrisy'. Artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo
A desregulamentação financeira rompeu os diques impostos, depois da crise dos anos 30, à ação dos bancos comerciais. E, o que é pior, os mercados proclamam que as autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. Dessa forma junta-se o moral hazard com a moral hypocrisy. A análise é de Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular aposentado da Unicamp, sobre a crise financeira em artigo para o Terra Magazine, 24-03-2008.
Eis o artigo.
Deu no New York Times: Bill Gross, um veterano de Wall Street, administra a maior carteira de investimentos do mundo, quase um trilhão de dólares de ativos. Em meio às eufóricas celebrações dos concorrentes, sua firma PIMCO tratou de acumular US$ 50 bilhões em cash para responder prontamente às exigências de pagamento dos parceiros, caso os mercados mergulhassem, como mergulharam, numa crise de liquidez.
Já foi dito aqui, mas não custa repetir: a desregulamentação financeira rompeu os diques impostos, depois da crise dos anos 30, à ação dos bancos comerciais. Os bancos de depósito voltaram a operar direta e indiretamente nos mercados de capitais, valendo-se da "securitização" de créditos. A criação dos "bancos-sombra" - "shadow banks" na linguagem do mercado - facilitou o envolvimento com o financiamento de posições em ações e, pior, em ativos originados dos créditos "securitizados".
Esta nova configuração institucional acirrou a concorrência entre as instituições financeiras. As loucuras foram cometidas simultaneamente na captura da clientela e na introdução de inovações obscuras e mal compreendidas, em seus efeitos, pelos próprios inovadores.
O New York Times cita Byron Wien, estrategista-chefe do hedge-fund Pequot Capital. Em tradução livre, interpreto o que diz Wien: "os físicos e matemáticos da finança jogam um monte de equações com pequenas letras gregas na frente das pessoas que administram as firmas de Wall Street. Elas não entendem o que estão fazendo".
É fácil descarregar a culpa sobre os "cientistas da finança", vítimas da "arrogância dos tolos", incapazes de compreender as contradições entre demências coletivas e as decisões privadas, típicas dos mercados infectados pela "sabedoria dos espertos". Suas sofisticadas equações tentam dominar os instintos da manada com os supostos simplificadores dos modelos de risco.
Na verdade, os gestores de portfólios, na sofreguidão de carrear mais recursos sob o seu controle e na ânsia de bater os concorrentes, são compelidos a buscar as melhores performances. Os bancos de investimento multiplicaram os hedge-funds sob sua administração, abriram espaço em suas carteiras para produtos e ativos de maior risco e montaram estruturas "alavancadas". Em um ambiente de "estabilidade" e de rendimentos em queda, a busca de ganhos mais alentados levou aos píncaros as relações entre o valor dos ativos "carregados" nas carteiras e o capital próprio das instituições. Equações e letras gregas são mera retórica pseudo-científica para justificar trapalhadas financeiras.
Os bancos centrais e demais autoridades reguladoras estão, portanto, diante de desafios que exigem a revisão da regulamentação. Nos últimos anos foram rápidas e intensas as transformações nas práticas de intermediação, nos métodos e modelos de "precificação" de ativos e dos riscos associados, bem como na hierarquia, nas formas de concorrência e no papel das instituições. Como já foi dito, tais inovações permitiram maior fluidez nas transações, estimularam a securitização gananciosa e a "alavancagem" imprudente.
Quando estes agentes são surpreendidos por movimentos bruscos e não antecipados de preços, as perdas estimadas obrigam a liquidação de posições para cobertura de margem, ampliando desmesuradamente o risco de mercado e o risco de liquidez. Esse roteiro decretou a sina do Bear Sterns e, dizem, ameaça a sobrevivência de outros mais prestigiados.
O trauma num destes mercados tem enorme potencial de contaminação, provocando, em geral, fugas para ativos considerados de melhor reputação e qualidade, como é o caso dos títulos do Tesouro americano.
A crise de liquidez rebate pesadamente sobre a solvência dos emissores de ativos de maior risco. Os bancos, financiadores "finais" de posições nestes ativos depreciados, terão que digerir as perdas e, para tanto, vão tentar recompor seus níveis de capitalização e de liquidez, restringindo a oferta de crédito para outros agentes, inclusive aqueles mais bem situados no ranking de avaliação de riscos.
Na ausência de um socorro tempestivo de um emprestador de última instância a propagação do pânico leva inexoravelmente ao credit crunch, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária. O Federal Reserve de Ben Bernanke atropela as regras e presta socorro aos bancos de investimento. Decidiu abrir as comportas da liquidez para manter vivas as bizarras criaturas da ganância infecciosa.
Os mercados aplaudem e proclamam que as autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nestas circunstâncias, a prover socorro para os mercados em crise. O moral hazard entra em acordo com moral hypocrisy.
Eis o artigo.
Deu no New York Times: Bill Gross, um veterano de Wall Street, administra a maior carteira de investimentos do mundo, quase um trilhão de dólares de ativos. Em meio às eufóricas celebrações dos concorrentes, sua firma PIMCO tratou de acumular US$ 50 bilhões em cash para responder prontamente às exigências de pagamento dos parceiros, caso os mercados mergulhassem, como mergulharam, numa crise de liquidez.
Já foi dito aqui, mas não custa repetir: a desregulamentação financeira rompeu os diques impostos, depois da crise dos anos 30, à ação dos bancos comerciais. Os bancos de depósito voltaram a operar direta e indiretamente nos mercados de capitais, valendo-se da "securitização" de créditos. A criação dos "bancos-sombra" - "shadow banks" na linguagem do mercado - facilitou o envolvimento com o financiamento de posições em ações e, pior, em ativos originados dos créditos "securitizados".
Esta nova configuração institucional acirrou a concorrência entre as instituições financeiras. As loucuras foram cometidas simultaneamente na captura da clientela e na introdução de inovações obscuras e mal compreendidas, em seus efeitos, pelos próprios inovadores.
O New York Times cita Byron Wien, estrategista-chefe do hedge-fund Pequot Capital. Em tradução livre, interpreto o que diz Wien: "os físicos e matemáticos da finança jogam um monte de equações com pequenas letras gregas na frente das pessoas que administram as firmas de Wall Street. Elas não entendem o que estão fazendo".
É fácil descarregar a culpa sobre os "cientistas da finança", vítimas da "arrogância dos tolos", incapazes de compreender as contradições entre demências coletivas e as decisões privadas, típicas dos mercados infectados pela "sabedoria dos espertos". Suas sofisticadas equações tentam dominar os instintos da manada com os supostos simplificadores dos modelos de risco.
Na verdade, os gestores de portfólios, na sofreguidão de carrear mais recursos sob o seu controle e na ânsia de bater os concorrentes, são compelidos a buscar as melhores performances. Os bancos de investimento multiplicaram os hedge-funds sob sua administração, abriram espaço em suas carteiras para produtos e ativos de maior risco e montaram estruturas "alavancadas". Em um ambiente de "estabilidade" e de rendimentos em queda, a busca de ganhos mais alentados levou aos píncaros as relações entre o valor dos ativos "carregados" nas carteiras e o capital próprio das instituições. Equações e letras gregas são mera retórica pseudo-científica para justificar trapalhadas financeiras.
Os bancos centrais e demais autoridades reguladoras estão, portanto, diante de desafios que exigem a revisão da regulamentação. Nos últimos anos foram rápidas e intensas as transformações nas práticas de intermediação, nos métodos e modelos de "precificação" de ativos e dos riscos associados, bem como na hierarquia, nas formas de concorrência e no papel das instituições. Como já foi dito, tais inovações permitiram maior fluidez nas transações, estimularam a securitização gananciosa e a "alavancagem" imprudente.
Quando estes agentes são surpreendidos por movimentos bruscos e não antecipados de preços, as perdas estimadas obrigam a liquidação de posições para cobertura de margem, ampliando desmesuradamente o risco de mercado e o risco de liquidez. Esse roteiro decretou a sina do Bear Sterns e, dizem, ameaça a sobrevivência de outros mais prestigiados.
O trauma num destes mercados tem enorme potencial de contaminação, provocando, em geral, fugas para ativos considerados de melhor reputação e qualidade, como é o caso dos títulos do Tesouro americano.
A crise de liquidez rebate pesadamente sobre a solvência dos emissores de ativos de maior risco. Os bancos, financiadores "finais" de posições nestes ativos depreciados, terão que digerir as perdas e, para tanto, vão tentar recompor seus níveis de capitalização e de liquidez, restringindo a oferta de crédito para outros agentes, inclusive aqueles mais bem situados no ranking de avaliação de riscos.
Na ausência de um socorro tempestivo de um emprestador de última instância a propagação do pânico leva inexoravelmente ao credit crunch, à ruptura do sistema de pagamentos e à corrida bancária. O Federal Reserve de Ben Bernanke atropela as regras e presta socorro aos bancos de investimento. Decidiu abrir as comportas da liquidez para manter vivas as bizarras criaturas da ganância infecciosa.
Os mercados aplaudem e proclamam que as autoridades monetárias, representando o interesse coletivo, não podem deixar que prosperem e se aprofundem o contágio, a deflação de ativos e a contração do crédito. É necessário que os bancos centrais estejam dispostos, nestas circunstâncias, a prover socorro para os mercados em crise. O moral hazard entra em acordo com moral hypocrisy.
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