José Luís Fiori, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal e Estadual do Rio de Janeiro, concedeu uma entrevista para a revista Carta Capital, há pouco mais de dez anos atrás, 20-08-97. A entrevista auxilia na compreensão do que agora está vindo a tona com o caso Dantas. Na oportunidade, tendo presente a inserção do Brasil no mercado internacional e usando o conceito de ‘revolução silenciosa’ elaborado pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, Fiori procura destrinchar o significado dessa revolução.
Reproduzimos uma síntese da entrevista que foi publicada no boletim Cepat Informa n. 32 - setembro de 1977.
Segundo Fiori, "o que se está vendo é uma imensa recomposição patrimonial da riqueza brasileira, basicamente movida por uma transferência gi¬gantesca de riqueza ou privatização de riqueza; gigantesca pela absorção dos pequenos e médios pelos grandes. O empresário Benjamin Steinbruch (vencedor no leilão da Vale do Rio Doce e numa das áreas licitadas na Banda B de telefonia celular) é personagem emblemático desse processo. Há um movimento de privatização de riqueza, de centralização do capital, para não falar também numa brutal concentração de riqueza".
Para José Luís Fiori, "dessas formas determinantes, certamente o vetor central pelos próximos anos será o processo de privatização. É sua perspectiva que está segurando as Bolsas, a entrada de capitais externos em grande medida; ou a sua perspectiva ou a sua realização. Esse é o filão central. Há uma recomposição patrimonial do capital, da posse do capital, mas não se sabe se isso vai gerar crescimento de investimentos. Não se tem certeza disso, nem, muito menos, há nada assegurado de antemão. O que é seguro é que esse processo de privatização, além de ser um imenso processo de transferência de riqueza, é talvez o maior esforço feito pelo Estado brasileiro para o fortalecimento do empresariado, muito maior do que na era desenvolvimentista".
A revolução silenciosa implementada pelo atual governo brasileiro implica em que, segundo Fiori, "o Estado deixa de ser locomotiva do crescimento, mas segue cumprindo o papel decisivo de vitalizador de um empresariado que não si muove. Antes esse empresariado viveu dos subsídios e dos créditos, hoje está vivendo, e viverá nos próximos dez anos, das privatizações. Esse processo tem uma outra face, a face política. Não mais do que uns 20 grandes grupos se beneficiarão disso e sairão mais concentrados, mais fortes, mais poderosos, mais integrados no sentido do capital financeiro, entre capital internacional e nacional. A face política atenderá à recomposição das bases econômicas, à consagração dos grandes ganhadores na economia brasileira nas próximas duas décadas. Há 20 anos, na Europa, se falava na "promoção dos campeões". Estamos fazendo, por um outro caminho, uma definição de quais serão os conglomerados que deterão o poder econômico no Brasil nas próximas duas décadas".
Tudo isto não sucede apartado do poder político. Segundo Fiori, "as definições estão aí: há a privatização de todo o filé mignon da telefonia e da comunicação sob o comando de um partido, o PSDB, e as privatizações elétricas sob o comando do outro sócio, o PFL. Quem parece não ter comando de nada nas privatizações são os outros dois grandes sócios da chamada base parlamentar: PMDB e PPB".
Analisando as privatizações na telecomunicação, Fiori constata que "tudo será repassado para cinco ou seis grupos. E dentro desses grupos, quase invariavelmente, além de financistas e, às vezes, empreiteiros, a mídia e os órgãos de imprensa. Está sendo entregue, na forma de concessão, o monopólio do conteúdo e transmissão para grupos que serão os pólos de poder mediático nos próximos 20 anos.
No Rio Grande do Sul é a RBS, já entregaram São Paulo para o Estadão, alguma coisa é da Abril, o Grupo Folha ainda está na disputa, e por aí afora. No caso das telecomunicações a privatização terá um efeito, do ponto de vista da concentração do poder econômico privado decorrente do poder mediático, que será uma peça decisiva na política do próximo século. Já é hoje, será cada vez mais, e passa a ser não apenas concentrado, monopolizado; além disso, é uma forma de semi-concessão. Eles passam a ser diretamente concessionários do Estado. É uma festa".
"No caso das elétricas é um pouco diferente" - analisa José Luís Fiori. "É mais pulverizado e não por acaso está nas mãos de Antônio Carlos Magalhães, do PFL. Isso permite maior número de combinações com grupos menos expressivos em nível regional. O poder econômico e político regional se recomporá também a partir daí, de uma maneira mais fragmentada e com mais apoio do BNDES, que terá um papel decisivo na privatização das elétricas. É de se esperar que haja a médio prazo, em cinco ou dez anos, um redesenho do poder econômico e político e do poder privado no Brasil, por obra do Estado".
A Revolução Silenciosa consiste em que o empresariado passe de uma teta para outra, para usar a expressão de Delfim Netto. "O problema é que a primeira teta era desenvolvimentista e a segunda é patrimonialista" - afirma José Luís Fiori. "A primeira tinha o impulso de crescimento e nessa segunda não há nenhuma evidência disso.
A grande obra de FHC, em síntese, será fazer com que voltemos da era do Estado desenvolvimentista para a era do Estado patrimonialista, pré-Vargas". Segundo Fiori, "as experiências pioneiras (da Revolução Silenciosa), já sinalizam desintegração, a erosão por baixo, dos laços mais elementares da sociabilidade indispensável à existência do Estado". Para Fiori, "há uma perda de capacidade do Estado - não de apoiar o capital privado, isso segue sendo uma festa - e o Estado tende a perder a legitimidade frente à população. Isso somado à cultura que já vem de antes e agora é apoteoticamente festejada pela era liberal, essa coisa do individualismo, da competição, da eficiência, numa sociedade com escassos muros de contenção, leva a um individualismo predador e, no limite, paradoxalmente fascista".
Esse fascismo se manifesta nas ruas. "Pessoas incendeiam outras pessoas; não se admite a diferença; há uma desintegração dos laços familiares, da escola, do Exército. Não se pode chamar isso de revolução. É uma perversão, porque é uma lenta destruição. Mesmo que se chegue ao capitalismo liberal, se chegará por cima de mortos e feridos. Não apenas dos que morreram por homicídio, falta de salário, suicídio, mas de uma sociedade destroçada por um individualismo frenético, em todos os planos. Essa é a novidade, porque isso está no povo, na classe média, está entre nós, na universidade" - constata Fiori.
Trata-se de um "capitalismo hiperconcentrado, predador e socialmente cruel". Um exemplo: "a forma como a imprensa anuncia demissões é fantástica, porque é uma coisa eufórica dos jornalistas, dessas moças que lêem notícia em televisão. É um negócio eufórico: "Governo demitiu 150 mil, mas faltam..." Ninguém pergunta para onde irão essas 150 mil famílias?"
Para Fiori, "a compatibilização entre democracia e o capitalismo cruel pode dar-se sem a necessidade de um autoritarismo explícito ao estilo dos tempos da Guerra Fria. Há dois caminhos. Um é pela montagem ou uso de artifícios autoritários que não exijam o fechamento das instituições representativas. Abundam os exemplos: passar por cima do Judiciário, do Legislativo, criar uma espécie de administração paralela. O segundo caminho, no curto prazo, é o massivo consenso e controle da mídia e da formação da opinião".
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