"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

domingo, dezembro 27, 2009

A China redesenha a Ásia Central

Site do Azenha - Atualizado em 27 de dezembro de 2009 às 00:37 | Publicado em 26 de dezembro de 2009 às 23:36

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O Casaquistão, entre a Rússia e a China: no miolo do "Grande Jogo" entre o Ocidente e o Oriente; pintados em vermelho o Iraque e o Afeganistão, onde estão centenas de milhares de soldados norte-americanos; em azul, "cercado", o Irã.

China redefine relações na Ásia Central

24/12/2009, M K Bhadrakumar,
Asia Time Online

Tradução de Caia Fittipaldi

Nursultan Nazarbayev gosta de desenhar mapas na areia. O presidente do Cazaquistão comunicou recentemente às majors globais do petróleo e de minerais estratégicos que a nova legislação só admitirá, nos programas de investimento para explorar os recursos minerais do país, investidores estrangeiros que se disponham a cooperar para seu programa de industrialização.

“Só trabalharemos com os que nos apresentem projetos que contribuam para diversificar a economia”, disse ele, dia 4/12, em conferência em Astana, capital do Cazaquistão, à qual compareceram ArcelorMittal, Chevron, Total, ENRC e outros investidores globais. Para estimular os que resistissem, acrescentou: “Procuramos novos parceiros e ofereceremos condições favoráveis e recursos para implantar os projetos.”

Pelo sim, pelo não, acrescentou que Pequim solicitara ao Cazaquistão – país do tamanho da Europa, mas com apenas 16 milhões de habitantes – que autorizasse fazendeiros chineses a utilizar um milhão de hectares de terra cazaque, para plantar soja e canola, dentre outras oleaginosas.

Os elementos pró-ocidente na política cazaque, desde então, tomaram as ruas. Dia 17/12, em comício em Almaty, Bolat Abilov, um dos presidentes do partido de oposição Azat [Partido Social-democrata Unido], pintou cenário apocalíptico: “Se amanhã entregarmos ou distribuirmos 1 milhão de hectares de terra, haverá 15 pessoas trabalhando por hectare; isso significa que traremos para cá 15 milhões de chineses. Se cada um desses chineses tiver um filho por ano, será o fim. Em 50 anos, haverá 50 milhões de chineses [no Cazaquistão].”

Manifestantes cercaram o consulado chinês em Almaty, carregando cartazes em que se lia: “Hu Jintao, não entregaremos terra cazaque!”

Um gasoduto no coração da Ásia ...

A mensagem de Nazarbayev foi direta: investidores ocidentais não desperdicem dinheiro, se só se interessarem por explorar a riqueza mineral do Cazaquistão. O presidente falou como se seu discurso visasse a mudar o rumo histórico e político da Ásia Central, redefinindo os termos para todas as relações com empresas estrangeiras na região: falava sobre o desenvolvimento de um ambicioso projeto para construir um gasoduto de 7 mil quilômetros para ligar os campos de gás da Região às cidades do litoral leste da China.

Dez dias depois do discurso de Nazarbayev, Hu iniciou um tour pela Ásia Central, para assinar contratos para a construção de 1.833 quilômetros de gasoduto que ligarão os campos de gás no Turcomenistão, Uzbequistão e Cazaquistão (e provavelmente também os campos russos) à Região Autônoma de Xinjiang, na China. O Turcomenistão diz que pode fornecer 40 bilhões de metros cúbicos (bmc) [ing. billion cubic meters (bcm)] de gás por ano, por aquele gasoduto, durante 30 anos, depois de o gasoduto estar operando com plena capacidade. É cerca de metade do atual consumo anual de gás na China.

O Uzbequistão assinou acordo com a China em novembro de 2008, para exportar 10 bmc de gás por ano. (Em 2006, estimava-se em 1,8 trilhão de m3 as reservas de gás do Uzbequistão.) Uma linha secundária do tronco do gasoduto chinês-turcomano passa pela cidade de Gazli, na região Bukhara, onde o gás do Uzbequistão pode ser injetado no mesmo ramo do gasoduto. A China investiu nos campos de gás uzbeque nessa região. As reservas uzbeques estão concentradas sobretudo na província de Qashqadaryo e próximo de Bukhara, exatamente por onde passa o gasoduto chinês.

O Cazaquistão deverá exportar outros 10 bmc de gás por outro ramo de conexão do gasoduto. A China, que se prepara para massivo aumento de consumo, quer que o gás natural alcance 10% de seu mix de energia em 2020, a partir dos 3% de 2005. A China consumiu 77,8 bmc de gás natural ano passado, pouco mais que sua produção doméstica de 77,5 bmc. Mas o país prevê diminuição do gás natural disponível, para 70-110 bmc em 2020, segundo estimativas do Relatório 2009 de Desenvolvimento de Energia [ing. 2009 Energy Development Report] publicado pela Academia Chinesa de Ciência Social, um think-tank oficial. Todo o gás que a China importa vem atualmente na forma de gás natural liquefeito (GNL) [ing. liquified natural gas (LNG)], e no final de 2010 o país terá aumentado sua capacidade de importação de GNL para 15-18 milhões.

Há muito ceticismo entre os observadores sobre se o gasoduto da Ásia Central algum dia chegará a operar. De fato, a atuação da China na contramão dos interesses ocidentais – que, ano passado, levaram a tumultos em Xinjiang – é um risco a mais que pesa contra o gasoduto. “A China está guardando muitos ovos numa única cesta”, disse um especialista britânico. “Haverá muito petróleo e muito gás passando por região muito pequena. Se se analisam as tendências em Xinjiang, é fácil ver que um percurso pela Ásia Central seria muito mais seguro que essas vias que atravessam o sudeste da Ásia ou o sul do Mar da China.”

A implicação foi clara: o gasoduto chinês da Ásia Central seria alvo perfeito para terroristas. Nas palavras de Robert Ebel, do Center for Strategic and International Studies em Washington, a segurança seria impossível, se o gasoduto passar por muitas áreas pouco habitadas na Ásia Central e em Xinjiang. “Não há meio pelo qual se possa proteger um gasoduto ao longo de todo o trajeto. É impossível, simplesmente isso: é impossível”, na opinião de Ebel, especialista em segurança. A agitação em Xinjiang, sobretudo, ameaça gravemente o gasoduto da Ásia Central, acrescentou Evel. “Tenho certeza de que o pessoal em Pequim está ficando de cabelos brancos, de preocupação”, ele acrescenta.

... e ondas de choque que abalam Washington

Os especialistas dos EUA já traçaram um cenário de apocalipse para o gasoduto chinês. Escrevendo em outubro passado no Central Asia & Caucasus Institute, o analista da Johns Hopkins University e do US War College, Stephen Blank, considerou Xinjiang “uma panela de pressão” que Pequim não está nem próxima de conseguir controlar.

Em Washington, o nervosismo crescente sobre o gasoduto chinês já é palpável. A Comissão de Relações Internacionais do Senado organizou em julho uma audiência (rara) sobre a questão geopolítica que se está criando na Ásia Central. Nessa audiência depôs Richard Morningstar, enviado especial dos EUA para questões de energia; disse que os EUA têm de desenvolver estratégias para disputar energia com a China na Ásia Central.

Foi talvez a primeira vez que um alto funcionário do governo dos EUA abertamente aponta a China como rival dos EUA na política de energia da Ásia Central. Até agora, os especialistas norte-americanos sempre deram mais atenção à Rússia naquele cenário energético e trabalharam para neutralizar a influência da Rússia nos espaços pós-soviéticos; por isso, apoiaram os projetos trans-Cáspio que não cruzam territórios russos. Alguns especialistas norte-americanos chegaram até a falar da China como aliada dos EUA, no processo de isolar a Rússia.

Com certeza, 2009 marcou um ponto de virada nos discursos dos EUA sobre políticas chinesas na Ásia Central. À medida que se aproxima o momento em que o gasoduto chino-turcomano tornar-se-á operacional, a inquietação dos EUA começa a aflorar.

“A China tem influência cada vez maior na Ásia Central”, disse Morningstar. “É difícil para nós competir com a China em alguns daqueles países. É fácil para o Turcomenistão negociar com a China, se a China chega e diz ‘Hey, temos um cheque de tanto e queremos construir um gasoduto’. Não é difícil aceitar um negócio proposto nesses termos. E os EUA não podemos competir com esse modo de negociar.”

Morningstar ofereceu duas sugestões. A primeira, “desenvolver uma estratégia para enfrentar essa [política chinesa] e encorajar as empresas norte-americanas a negociar criativamente com o Turcomenistão”. A outra, Washington deve pensar sobre se faz algum sentido que empresas dos EUA cooperem com a China naqueles países.

Os objetivos de uma cooperação EUA-China para usufruir os recursos energéticos da Ásia Central são muito limitados. Em termos geopolíticos, há um conflito de interesses entre os dois países. Um objetivo prioritário da China é cercar fontes de energia que não dependam de rotas de suprimento que passem pelo Estreito de Malaca – que é controlado pelos EUA e pode ser crucialmente importante no caso de confronto EUA-China.

Além disso, o próprio Morningstar põe o dedo no xis da questão. Por mais que interesse à China tornar-se ‘limpa’ em matéria de energia (e gás é energia limpa), “o gás que vai para a China é o mesmo que poderia ir para o ocidente”.

Pequim sobe a aposta...

Contudo, os EUA já perceberam que construir contraestratégias para enfrentar a China é coisa mais fácil de dizer, do que de fazer. A presença da China no cenário energético da Ásia Central não é coisa recente. Custou anos de dolorosa diplomacia. Desde 1997, o Cazaquistão e a China têm acordos assinados para construir um oleoduto de 3 mil km para transportar petróleo cru; e que dobrará a capacidade para 20 milhões de toneladas por ano.

Em 2005, a [empresa] CNPC International pagou quase 4 bilhões de dólares por 33% das ações da [empresa] Petro-Cazaquistão. Em 2006, a China comprou quase 2 bilhões em petróleo cazaque nos campos de petróleo e gás de Karazhanba (onde já se sabe que há reservas de mais de 340 milhões de barris), aceitou comprar 30 bmc de gás do Turcomenistão (quota mais tarde aumentada para 40 bmc), e investiu 210 milhões para prospectar petróleo e gás no Uzbequistão ao longo dos cinco anos seguintes.

Em 2008, Cazaquistão e China concordaram em explorar juntos as reservas de petróleo e gás na costa do Mar Cáspio, enquanto as empresas Guangdong Nuclear Power Co. chinesa e Kazatomprom (empresa estatal de produção de material nuclear do Cazaquistão) acertaram-se para enriquecer urânio para sua aventura conjunta.

Em abril de 2009, a China concluiu o negócio-mãe-de-todos-os-negócios em matéria de energia, ao emprestar ao Cazaquistão 10 bilhões de dólares, em acordo sem precedentes a ser pago com petróleo, e, também, ao acertar-se com a estatal KazMunaiGas para, juntas, comprarem a MangistauMunaiGas produtora de petróleo, por 3,3 bilhões de dólares.

Em 2009, a China também concedeu empréstimo de 3 bilhões de dólares para a exploração do principal campo de gás da Ásia Central, estatal, em Iolotan Sul, no qual se estima que haja algo entre 4 e 14 trilhões de metros cúbicos de gás, segundo dados da britânica Gaffney, Cline & Associates – o que faz desse um dos cinco maiores depósitos de gás do planeta.

Quando os EUA acordaram e perceberam que a China tinha estratégia muito clara para a energia da Ásia Central, a estratégia já estava implantada e operante. Os especialistas ocidentais puseram-se a andar às tontas, em duas direções. Primeiro, estimaram que, segundo as análises mais atualizadas, os Estados da Ásia Central prefeririam negociar, não com a China, mas com a Rússia e o Ocidente. Depois, os EUA assumiram cegamente que a Rússia veria os ganhos chineses como ameaça aos seus interesses estratégicos; que resistiriam à China e que, em algum momento fariam um ultimatum a Pequim, o que, indiretamente serviria aos interesses ocidentais.

Para grande frustração do Ocidente, os Estados da Ásia Central não apenas acolheram entusiasmados as ofertas chinesas como, além disso, estão-se servindo das vantagens que obtêm dos chineses para apertar o mais que podem as empresas ocidentais, em busca de melhores preços e condições.

Além do mais, o engajamento da China na Ásia Central cobre vários campos, sem se limitar só a petróleo e gás. Os países da Ásia Central procuravam exatamente esse tipo de ‘investidor estrangeiro’, como disse Nazarbayev no discurso em Astana. Falando à mídia chinesa em Ashgabat, na véspera da chegada de Hu para assinar os contratos para o gasoduto dia 14/12, o presidente do Turcomenistão Gurbanguly Berdymukhamedov destacou repetidas vezes o quanto as relações entre seu país e a China haviam-se tornado “multifacetadas”.

“[As relações entre Turcomenistão e China] cobrem hoje todas as principais áreas – política, econômica, comercial, cultural, científica, educacional”, disse Berdymukhamedov. “Assim, é claro, temos muitos temas a discutir nesse nosso encontro com o presidente chinês. O principal é que estamos hoje num contexto positivo, em cenário favorável a negociações produtivas; e a posição inicial, dos dois lados, favorece a compreensão e o entendimento, em clima de confiança, igualdade, respeito mútuo e uniformidade de pontos de vista sobre as grandes questões mundiais e de relações bilaterais.”

Especialistas ocidentais quase sempre dizem, em tom de pouco caso, que os países da Ásia Central prefeririam os chineses porque os chineses não lhes criam problemas difíceis, como democracia e direitos humanos. Evidentemente, essa é leitura simplória e superficial. Os países da Ásia Central recebem os discursos ocidentais sobre democracia e direitos humanos como discursos de propaganda de países e governos que, sem qualquer escrúpulo, acobertam regimes autoritários, quando úteis para atender aos seus interesses comerciais.

Os países da Ásia Central dão-se por contentes quando, vez ou outra, parece-lhes que Washington não esteja, exclusivamente, manipulando as sensibilidades e o ethos local. O modo como o Uzbequistão ensinou importante lição à União Europeia e aos EUA, em material de negociações mutuamente respeitosas e relacionamento equilibrado é sempre lembrado nas capitais da região.

Mas, até aqui, temos só parte da história. O importante é que a China já redefiniu os termos do engajamento do Ocidente com a Ásia Central. Os países ocidentais terão de aprender a negociar com novos interlocutores da Ásia Central. Além disso, ao mesmo tempo em os países ocidentais ainda se deixam dominar pela compulsão de fazer o que sempre fizeram – recolher os minerais preciosos que houvesse na região e escapar de qualquer comprometimento com os setores locais de manufatura ou agricultura –, as novas regras que Nazarbayev enunciou muito claramente no fórum de investidores em Astana são só o primeiro ato de muitos que estão por vir.

No Turcomenistão, a China está definindo novos padrões para todo o ocidente. As relações comerciais entre China e Turcomenistão aumentaram 40 vezes, desde 2000; 35 empresas trabalham hoje no Turcomenistão movimentadas por capitais chineses. Empresas chinesas estão muito ativas em setores da economia turcomana, que vão do petróleo e gás às telecomunicações, transporte, agricultura, indústrias têxtil, química e de alimentos, do atendimento médico e da construção.

Do ponto de vista de Ashgabat, o interesse da China em engajar-se profundamente no desenvolvimento e na economia política do Turcomenistão contrasta profundamente com os instintos predatórios das empresas ocidentais, que se dedicam com zelo maníaco a tentar abocanhar toda a indústria dos minérios. Evidentemente, como sequência desse processo, a China obterá fatia muito importante do setor energético turcomano.

... mas oferece garantias a Moscou

O segundo aspecto a ser observado é que o gasoduto da Ásia Central chinesa marcará o fim do controle que a Rússia pós-soviética exerceu sobre as exportações de gás na Ásia Central. Analistas norte-americanos tem tentado divulgar a versão de que os ganhos chineses implicarão perdas para a Rússia. Mas esse não é jogo de soma-zero; e Pequim tem-se mostrado excepcionalmente disposta a discutir a delicada questão de se há competição com a Rússia na disputa pela energia da Ásia Central.

“A China está buscando diversificar as importações de energia; e os países da Ásia Central têm interesse em diversificar suas exportações”, diz Zhang Xiyuan, ministro chinês de Relações Exteriores, em release distribuído à imprensa na chegada de Hu a Ashgabat. “Esse tipo de cooperação continuará naturalmente, e há espaço para importantes desenvolvimentos.”

Em outras palavras, a cooperação entre China e países da Ásia Central é produto de interesses mútuos e convergentes. Especialistas chineses têm repetido que “diversificar exportações” é opção estratégica que se tornou necessária para os países da Ásia Central depois da crise financeira, quando diminuiu a demanda de gás natural da região, pelos países europeus.

Pan Guang, diretor do Shanghai Center for International Studies e intelectual respeitado, diz que a “descomunal capacidade da China para trocas estratégicas e as vantagens da localização geográfica são extremamente atraentes” para os exportadores de gás da Ásia Central. A cooperação com os chineses em questões energéticas também promoverá o desenvolvimento de indústrias não-energéticas na região (indústria química, agrícola, de construção de transportes e infraestrutura e indústrias leves), segundo analistas chineses. Tudo isso atende aos interesses de segurança da Rússia, dizem eles, dado que o desemprego – que sempre provoca instabilidade social – será reduzido.

Considerando todos os fatores, o jornal Diário do Povo [ing. People's Daily] concluiu que o gasoduto chinês é vantagem para a Rússia.

“Há quem se preocupe na Rússia, e as agências de notícias exageraram o evento para atrair consumidores de jornais, repetindo que a China estar-se-ia convertendo em principal competidor estratégico da Rússia na indústria de energia na Ásia Central” – escreveu o jornal. “De fato, há pouca verdade nessa conclusão.”

“Para os especialistas, enquanto o gasoduto pode transportar o gás natural produzido no Turcomenistão e na Rússia ... o oleoduto China-Rússia transporta principalmente petróleo e gás natural produzido na região leste da Sibéria. É muito difícil transportar o gás natural produzido no oeste da Sibéria e na Rússia europeia; assim sendo, o gasoduto China-Ásia Central para gás natural poderá muito bem servir como ‘chave’ para solucionar a questão.

“Além disso, a cooperação no setor de gás natural entre China e Ásia Central é aberta e não-exclusiva, não limita o mercado russo, nem compete com a Rússia por recursos” – diz o Diário do Povo.

Em essência, o argumento chinês é que, mesmo que o gasoduto turcomano-uzbeque-cazaque possivelmente abra vias para opções de energia para a Europa, ele não ferirá interesses russos. É bom argumento, bem fundamentado. Com a contratação do gasoduto turcomano, não há dúvidas de que a diplomacia dos EUA e da Europa para o setor energético sofreu golpe mortal.

De fato, se houver aí algum jogo de soma-zero, é o seguinte: a China ganha o que a Europa perde; e isso pode implicar que a Rússia também ganha, porque o gás russo é a principal fonte de energia para a Europa e continuará a sê-lo no futuro que se pode antever.

Desnecessário dizer, a duradoura dependência da Europa, do gás russo, é ficha valiosíssima para Moscou, em seus esforços para construir parcerias com os principais países europeus.

(…) No cômputo geral, o gasoduto chinês fortalece muito a posição da Rússia. É o que explica o tom de satisfação que se ouviu na voz do primeiro-ministro russo Vladimir Putin, quando perguntado sobre as consequências do gasoduto Turcomenistão-China.

“A contratação do gasoduto Turcomenistão-China não afetará nossos planos para expandir nossa própria rede de dutos, que possivelmente também alcançará a China”, disse Putin. “Refiro-me ao aumento do consumo chinês de fontes primárias de recursos energéticos. Mantemos contato regular e próximo com nossos colegas chineses sobre essa questão. Sabemos que a demanda cresce por lá, e eles também monitoram de perto a situação. O gasoduto do Turcomenistão não atrapalhará nossos planos.”

Mais importante que isso, o Irã aparece com destaque em quaisquer planos sérios que a Europa faça (fortemente apoiada pelos EUA) para diversificar as importações de gás e para diminuir a dependência do suprimento de energia atualmente importado da Rússia.

Para os EUA, a Ásia Central é parte do “Af-Pak” ...

Ninguém duvide de que a história registrará o ano de 2009 como divisor de águas na segurança da Ásia Central. Pela primeira vez no período pós-União Soviética, há um verdadeiro projeto regional que já tomou forma na Ásia Central. É experiência nova para uma região atormentada por inúmeras tensões intrarregionais, confusões e malentendidos – seja sobre a partilha da água, os movimentos islâmicos, o meio ambiente ou “o grande jogo”. Tudo isso voltou à pauta de discussões, por causa da presença dos presidentes do Turcomenistão, Uzbequistão e Cazaquistão na cerimônia de lançamento do projeto de construção do gasoduto turcomano.

As elites da Ásia Central sabem perfeitamente que a China possibilitou esse alto nível de cooperação regional. Em seu discurso na cerimônia, Hu falou sobre o gasoduto turcomano como modelo de cooperação regional. A China está colhendo os frutos de mais de 15 anos de difícil, complexa e paciente diplomacia. Agora, será tarefa hercúlea, para o ocidente, implantar qualquer espécie de sinofobia entre os povos da Ásia Central.

Ao mesmo tempo, a China assume responsabilidade gigantesca, como jamais antes na história daquela região. O gasoduto converte a China em ‘acionista’ da segurança da Ásia Central. Isso implica muito mais do que combater as três forças do “terrorismo, separatismo e extremismo”, contra as quais a China focou sua diplomacia excepcionalmente bem-sucedida em meados dos anos 90s.

Se se olha adiante, vê-se, para 2010, os EUA intensificando esforços para contrabalançar a crescente influência da China na Ásia Central. Todos os sinais de alarme já dispararam em Washington.

Em audiência especial do Subcomitê de Relações Exteriores do Senado sobre a Ásia Central dia 15/12, o secretário-assistente da secretaria de Estado para a Ásia do Sul e Central, George Krol, disse: “Esse governo não considera a Ásia Central como questão periférica, esquecida, distante dos interesses dos EUA. A região é chave para a segurança, a economia e os interesses políticos dos EUA. Exige atenção e respeito e todos os nossos mais empenhados esforços, além do comprometimento de todo o governo Obama.”

Nunca antes um alto funcionário do governo dos EUA declarara em termos tão fortes as intenções dos EUA em relação à Ásia Central pós-soviética. De fato, há aí um ‘aviso’ velado a Pequim, de que os EUA estão acompanhando atentamente seus avanços na região e que não os deixarão continuar eternamente sem qualquer contestação.

Já se observam, no plano concreto, indicações de que os EUA tentam ampliar o escopo de sua estratégia “Af-Pak” [Afeganistão-Paquistão], de modo a incluir aí a região da Ásia Central. Em termos empíricos, já há quem defenda abertamente a inclusão da Ásia Central na estratégia “Af-Pak”. Se não por outros motivos, o Corredor Norte, de suprimento para os contingentes da OTAN no Afeganistão e de fornecimento de materiais para a reconstrução do Afeganistão, já converteu os governos dessa região em importantes colaboradores para o esforço de guerra.

(...) Ameaças potenciais que venham da Ásia Central, além do risco de “falência dos Estados”, obrigarão os EUA a dar cada vez maior atenção à região, disse Krol. Também invocou medos arquetípicos, sobre terroristas que consigam acesso a armas de destruição em massa – argumento sempre útil para aumentar a extensão da intervenção dos EUA no Iraque e no Afeganistão.

“Embora esses países [da Ásia Central] tenham desistido voluntariamente de seus arsenais nucleares depois do colapso da União Soviética, a região ainda hoje continua engajada em atividades relacionadas à proliferação de armas de destruição em massa, a saber, mineração de urânio, produção de plutônio e fabricação e testagem de armas biológicas e químicas” – disse Krol.

Evidência de que os EUA estão decididos a disputar a liderança na Ásia Central é que o governo Obama já anunciou a organização e preparação de encontros bilaterais anuais de alto nível com cada um dos países da região.

... porque os EUA estão ficando sem escolhas

Do ponto de vista dos EUA, muito melhor seria que Rússia e China estivessem em campos opostos na Ásia Central. Não é o que se vê, se se consideram os últimos acontecimentos.

Moscou vê com bons olhos os investimentos da China na Ásia Central, segundo Stephen Blank, do US War College. “Ao abrir a Rússia Oriental [ing. RFE, Russian Far East] aos investimentos chineses e dar luz verde a investimentos semelhantes na Ásia Central, Moscou inverte suas políticas tanto para a Rússia Oriental quanto para a Ásia Central”, escreveu Blank em agosto. “De fato, esse e outros negócios assemelhados abrem as portas para enorme expansão – apoiada por Moscou – do perfil estratégico da China, tanto na Rússia Oriental quanto na Ásia Central. A criação de uma nova ordem regional na Rússia Oriental e na Ásia Central começa a ganhar corpo; e a China prepara-se para gerir a segurança da região, para garantir que seus investimentos permaneçam protegidos e seguros.”

A alteração na tradicional política do Kremlin em relação à Rússia Oriental tornou-se necessária em larga medida por causa do colapso da economia russa decorrente da crise econômica global e da violenta queda nos ganhos do petróleo. Moscou seguia política que visava a desenvolver a Rússia Oriental e o leste da Sibéria movida quase exclusivamente pelos ganhos das exportações de energia para a Europa. Com a quebra na demanda pelo mercado europeu e dos ganhos das exportações, o Kremlin ficou sem condições para manter por mais tempo a mesma política desenvolvimentista para a Rússia Oriental e o leste da Sibéria. E foi obrigada a repensar tudo.

Foi exatamente o que se viu em maio, quando o presidente russo Dmitry Medvedev admitiu que o desenvolvimento da Rússia Oriental tinha de ser coordenado com a estratégia de Pequim para modernizar a dilapidada indústria de base regional do nordeste da China. Como se vê claramente, é não surpreende ninguém, a mudança na política russa também implica desistir de qualquer tentativa para impedir a penetração econômica da China na Ásia Central. (…) Nas palavras de Blank: “Para todos que estejam assistindo à emergência da China como player econômico e político dominante na Ásia, esses novos negócios têm profundo significado, que os EUA parecem ignorar e menosprezar à própria custa.”

A China goza da enorme vantagem de ter músculo financeiro. Supera nisso os EUA e os países europeus. Pode simplesmente gastar mais que os Estados Unidos ou os países europeus. Além de alimentar o fogo da militância e os conflitos étnicos na região de Xinjiang, os EUA praticamente não têm opções para impedir o crescimento da liderança chinesa na Ásia Central. Por seu lado, Pequim sabe que a estabilidade de Xinjiang é fator crucial para o sucesso da política chinesa para a Ásia Central – e vice-versa. Ambos estão inextrincavelmente conectados na estratégia chinesa regional.

Pequim sabe que “os demônios estrangeiros na Rota da Seda” – grupos militantes apoiados por estrangeiros – podem fazer voar pelos ares porções imensas dos gasodutos que Pequim jamais conseguirá proteger adequadamente nos vastos desertos e montanhas de Xinjiang. Essa é a única razão de peso pela qual Pequim não se envolveu nas aberturas que os EUA ofereceram para cooperação no Afeganistão, nem se deixou inebriar pelo convite, ainda vigente, de Obama, para que funcione como árbitro da paz e da segurança regional no Sul da Ásia.

Pequim desconfia muito das intenções ocultas por trás da estratégia de Obama para o Afeganistão, recentemente divulgada. De fato, as críticas chinesas ao envio de mais soldados para o Afeganistão subiram de tom nos últimos dias. Terça-feira passada, o Diário do Povo de Pequim escreveu: “Sim, às vezes a história se repete (...) A sombra da guerra do Vietnã ainda assusta (...) o que se vê hoje é cópia do mesmo modelo no Iraque (...) e sempre, sempre, o Vietnã.”

A população afegã, esgotada pela Guerra, não cerrará fileiras em torno do governo de Karzai nem, em nenhum caso, considerará bem-vindo o exército dos EUA. Por outro lado, a enorme pegada deixada pelos soldados dos EUA e seus aliados da OTAN só faz alimentar a insurreição e provocar resistência cada vez mais feroz. Os Talibã são duros de matar.

O governo Obama chegará ao aniversário de um ano sem política capaz de reverter os maus resultados no Afeganistão, mesmo com mais soldados e melhores táticas. Mas o jovem presidente fará o que estiver ao seu alcance para escapar daquele poço que converteu a superpotência em potência ocupante.

A China (e a Rússia) tem boas razões para desconfiar da política de Obama para o Afeganistão, que tudo leva a crer que apenas mascare a intenção – antiga, dos EUA – de controlar a Ásia Central, usando o “soft power” para deter Rússia e China, diferente, nisso, de outros governos dos EUA. (…) Não bastasse isso, a China também se preocupa com a possibilidade de a Rússia vez ou outra também “falar duas falas” sobre seus laços com a OTAN, no quadro do “redesenho” de suas relações com os EUA.

O espectro da presença ilimitada do exército dos EUA na região assombra a China. Afinal, a China foi cúmplice dos EUA contra a União Soviética na Jihad afegã nos anos 80s. A China sabe, portanto, que Washington conhece mil e um meios para usar radicais extremistas como instrumentos de geopolítica.

Não bastasse tudo isso, a China tem, bem à frente dos próprios olhos, o horrível exemplo de seu “amigo de todas as horas”, o Paquistão, o qual, por ter-se associado à estratégia dos EUA no Afeganistão, acabou arrastado para a instabilidade e tornou-se alvo de extremistas religiosos e militantes.

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