"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Os desejos em tempos de pressa

Instituto Humanitas Unisinos - 18 fev 10

“A ética em um mundo de consumidores" é o novo livro de Zigmunt Bauman traduzido para o italiano. Nele, o pensador da “modernidade líquida” reflete sobre a ditadura do presente. O jornal italiano La Repubblica, 15-02-2010, publica um extrato do livro. A tradução é de Alessandra Gusatto.

Eis o texto.

Foi Stephen Bertman que cunhou o termo “cultura do momento” e “cultura da pressa” para definir o nosso modo de viver nesta sociedade.

São definições idôneas e que são extraordinariamente cômodas cada vez que procuramos apreender a natureza da condição humana líquido-moderna. A minha tese é de que tal condição se caracteriza principalmente pela sua tendência (um caso até aqui único) de renegociar o significado de tempo.

O tempo, na era líquido-moderna da sociedade de consumo, não é nem cíclico nem linear, como era normalmente para as outras sociedades conhecidas pela história moderna ou pré-moderna. Eu diria que do contrário é pontilhada, fragmentada em uma série de pedacinhos diferentes, cada um reduzido a um ponto que se assemelha sempre mais à sua idealização geométrica de não dimensionalidade. Como devem-se recordar, nas aulas de geometria os pontos não são longos, largos ou profundos: existem, se poderíamos dizer, antes do espaço e do tempo; isto se o espaço e o tempo ainda não começaram.

Mas como aquele único ponto, segundo as teorias cosmogônicas mais avançadas, precedia o Big Bang que deu início ao universo, presume-se que cada contenha um potencial infinito de expansão e uma infinidade de possibilidades que podem explodir se devidamente detonadas. E recordemos que no momento que precede precede a erupção do universo não se tinha nada que pudesse fornecer, ainda que um mínimo sintoma, de que estava chegando o momento do Big Bang.

Os cosmólogos dizem um monte de coisas sobre o que aconteceu nas primeiras frações de segundo depois do big bang; mas mantém um odioso silêncio sobre os segundos, os minutos, as horas, os dias, os anos ou os milênios anteriores. Cada ponto-tempo (mas não tem jeito de saber antecipadamente qual) poderia – conter em si a possibilidade de outro Big Bang, até se desta vez em uma escala bem mais modesta, de “universo individual”, e os pontos sucessivos continuariam a ser vistos como pontos que continham tal possibilidade, independentemente daquilo poder ter acontecido com os pontos anteriores.

Não obstante a experiência acumulada mostrar que a maior parte das possibilidades é normalmente prevista de maneira errada, negligenciada ou faltosa, a maior parte dos pontos se revela infrutífera e a maior parte da agitação morre ao nascer. Um mapa da vida pontilhada, se um dia fosse traçado, se assemelharia a um cemitério de possibilidades imaginárias ou irrealizadas. Ou, dependendo do ponto de vista, seria um cemitério de ocasiões perdidas: em um universo pontilhado, as taxas de mortalidade infantil e de gestações abortadas da esperança são muito elevadas.

É exatamente por está razão que uma vida “do momento” normalmente é uma vida “de pressa”.

A possibilidade que poderia estar contida em cada ponto o seguirá na tumba: por aquela única, extraordinária possibilidade não teremos uma “segunda chance”. Cada ponto pode ser vivido como um novo início, mas muitas vezes a linha de chegada será um pouco depois da partida, e no meio terá acontecido quase nada. Somente uma aglomeração, uma expansão desenfreada, de novos inícios pode – simplesmente pode – compensar a profusão de falsas partidas. Somente as vastas extensões de novos inícios que estamos convencidos nos esperem mais adiante, somente uma multidão esperada de pontos dos quais a possibilidade de big bang ainda não foram colocadas à prova, e que por isso ainda não foram desacreditadas, podem salvar a experiência com os destroços das conclusões prematuras e dos inícios abortados.

Como eu disse antes, na vida “agorista” do ávido consumidor de novas ‘Erlebnisse’ (experiências vividas), a razão de apressar-se não é adquirir ou colecionar o mais possível, mas destruir e substituir o mais que se pode. Há uma mensagem latente por trás de cada comercial que promete uma nova oportunidade inexplorada de felicidade: não faz sentido chorar o leite derramado. Ou o big bang acontece exatamente agora, neste exato momento e na primeira tentativa, ou parar um pouco naquele exato ponto não faz mais sentido: é hora de mover-se para outro ponto.

Na sociedade dos produtores que já está desaparecendo da memória (pelo menos do nosso lado do planeta), o conselho, em um caso similar, teria sido: “insista”.

Mas não na sociedade dos consumidores: aqui, os utensílios ineficazes devem ser abandonados, não afiados e testados com mais competência, mais empenho e melhores resultados. E se deixam pra trás também aqueles eletrodomésticos que não conseguiram fornecer a “plena satisfação” prometida por aquelas relações humanas que produziram um “bang” menos “big” do que se esperava. A pressa deve ser máxima quando se trata de correr de um ponto (que desiludiu, que está desiludindo, que está começando a desiludir) a outro (ainda não aferido). Dever-se-ia relembrar a amarga lição do Fausto de Christopher Marlowe: acabar no inferno por ter desejado que o momento, somente por ser prazeroso, durasse para sempre.

Dada a infinidade de oportunidades prometidas e presumidas, que transformam em “pontos” esmigalhados a mais atraente novidade do tempo, uma alteração que se pode estar seguros deveria ser abraçada avidamente e explorada com paixão, é a dupla expectativa ou esperança de prever o futuro e neutralizar o passado. Conseguir colocar à mostra um duplo sucesso deste tipo, depois de tudo, é o ideal da liberdade. (...) Partimos da extraordinária empreitada de neutralização do passado. Essa se reduz a uma única mudança na condição humana, mas uma mudança realmente milagrosa: a possibilidade de “renascer” com facilidade.

De agora em diante, não são somente os gatos que podem ter sete vidas. Durante aquele espaço de tempo terrivelmente breve que passamos sobre a terra, nos queixando não faz muito tempo pela sua odiosa brevidade e que desde então não se prolongou mais tanto, os seres humanos – como os proverbiais gatos – agora tem a capacidade de esgotar muitas vidas, uma série infinita de “recomeços”.

Renascer significa que o/os nascimento/s precedente/s, juntamente com as respectivas conseqüências, é/ são anulado/s: parece o advento da omnipresença de tipo divino, sempre sonhada, mas até agora nunca experimentada. O poder de determinação causal pode ser desarmado, e o poder do passado de limitar as opções do presente pode ser contido drasticamente, talvez abolido de vez.

Aquilo que eras ontem não impede mais a possibilidade de tornar-se alguém totalmente diferente hoje.
A partir do momento que cada ponto no tempo, relembremos, é cheio de potencial, e que cada potencial é diferente e único, se pode ser diferente de maneiras realmente incontáveis: é algo que suplanta até a surpreendente multiplicidade de permutações e a maravilhosa variedade de formas e aspectos que os encontros casuais de gênios conseguiram até agora e provavelmente continuarão a produzir no futuro da espécie humana. Aproxima-se àquela capacidade de eternidade que assusta, na qual, considerando a sua infinita duração, cada coisa pode/ deve, cedo ou tarde, suceder, e em cada caso poderá ou será, cedo ou tarde, feita.

Agora aquela excepcional potência da eternidade parece ter sido comprimida no intervalo de tempo, tudo menos eterno, de uma única vida humana. Conseqüentemente, a empreitada de remover o detonador e neutralizar a capacidade do passado de limitar as escolhas sucessivas, e, portanto de circunscrever pesadamente as possibilidades de “renascimentos”, rouba da eternidade o seu atrativo mais sedutor. No tempo pontilhado da sociedade líquido-moderna, a eternidade não é mais um valor e um objeto de desejo, ou melhor, aquilo que era o seu valor e que a tornava objeto de desejo foi apagado e transplantado no momento presente. Conseqüentemente, a “tirania do momento” da tardia modernidade, com o seu preceito do carpe diem, gradativamente, mas constantemente, e talvez imparavelmente, restitui a tirania pré-moderna da eternidade, com a sua divisa do memento mori.

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