“A ética em um mundo de consumidores" é o novo livro de Zigmunt Bauman traduzido para o italiano. Nele, o pensador da “modernidade líquida” reflete sobre a ditadura do presente. O jornal italiano La Repubblica, 15-02-2010, publica um extrato do livro. A tradução é de Alessandra Gusatto.
Eis o texto.
Foi Stephen Bertman que cunhou o termo “cultura do momento” e “cultura da pressa” para definir o nosso modo de viver nesta sociedade.
São definições idôneas e que são extraordinariamente cômodas cada vez que procuramos apreender a natureza da condição humana líquido-moderna. A minha tese é de que tal condição se caracteriza principalmente pela sua tendência (um caso até aqui único) de renegociar o significado de tempo.
O tempo, na era líquido-moderna da sociedade de consumo, não é nem cíclico nem linear, como era normalmente para as outras sociedades conhecidas pela história moderna ou pré-moderna. Eu diria que do contrário é pontilhada, fragmentada em uma série de pedacinhos diferentes, cada um reduzido a um ponto que se assemelha sempre mais à sua idealização geométrica de não dimensionalidade. Como devem-se recordar, nas aulas de geometria os pontos não são longos, largos ou profundos: existem, se poderíamos dizer, antes do espaço e do tempo; isto se o espaço e o tempo ainda não começaram.
Mas como aquele único ponto, segundo as teorias cosmogônicas mais avançadas, precedia o Big Bang que deu início ao universo, presume-se que cada contenha um potencial infinito de expansão e uma infinidade de possibilidades que podem explodir se devidamente detonadas. E recordemos que no momento que precede precede a erupção do universo não se tinha nada que pudesse fornecer, ainda que um mínimo sintoma, de que estava chegando o momento do Big Bang.
Os cosmólogos dizem um monte de coisas sobre o que aconteceu nas primeiras frações de segundo depois do big bang; mas mantém um odioso silêncio sobre os segundos, os minutos, as horas, os dias, os anos ou os milênios anteriores. Cada ponto-tempo (mas não tem jeito de saber antecipadamente qual) poderia – conter em si a possibilidade de outro Big Bang, até se desta vez em uma escala bem mais modesta, de “universo individual”, e os pontos sucessivos continuariam a ser vistos como pontos que continham tal possibilidade, independentemente daquilo poder ter acontecido com os pontos anteriores.
Não obstante a experiência acumulada mostrar que a maior parte das possibilidades é normalmente prevista de maneira errada, negligenciada ou faltosa, a maior parte dos pontos se revela infrutífera e a maior parte da agitação morre ao nascer. Um mapa da vida pontilhada, se um dia fosse traçado, se assemelharia a um cemitério de possibilidades imaginárias ou irrealizadas. Ou, dependendo do ponto de vista, seria um cemitério de ocasiões perdidas: em um universo pontilhado, as taxas de mortalidade infantil e de gestações abortadas da esperança são muito elevadas.
É exatamente por está razão que uma vida “do momento” normalmente é uma vida “de pressa”.
A possibilidade que poderia estar contida em cada ponto o seguirá na tumba: por aquela única, extraordinária possibilidade não teremos uma “segunda chance”. Cada ponto pode ser vivido como um novo início, mas muitas vezes a linha de chegada será um pouco depois da partida, e no meio terá acontecido quase nada. Somente uma aglomeração, uma expansão desenfreada, de novos inícios pode – simplesmente pode – compensar a profusão de falsas partidas. Somente as vastas extensões de novos inícios que estamos convencidos nos esperem mais adiante, somente uma multidão esperada de pontos dos quais a possibilidade de big bang ainda não foram colocadas à prova, e que por isso ainda não foram desacreditadas, podem salvar a experiência com os destroços das conclusões prematuras e dos inícios abortados.
Como eu disse antes, na vida “agorista” do ávido consumidor de novas ‘Erlebnisse’ (experiências vividas), a razão de apressar-se não é adquirir ou colecionar o mais possível, mas destruir e substituir o mais que se pode. Há uma mensagem latente por trás de cada comercial que promete uma nova oportunidade inexplorada de felicidade: não faz sentido chorar o leite derramado. Ou o big bang acontece exatamente agora, neste exato momento e na primeira tentativa, ou parar um pouco naquele exato ponto não faz mais sentido: é hora de mover-se para outro ponto.
Na sociedade dos produtores que já está desaparecendo da memória (pelo menos do nosso lado do planeta), o conselho, em um caso similar, teria sido: “insista”.
Mas não na sociedade dos consumidores: aqui, os utensílios ineficazes devem ser abandonados, não afiados e testados com mais competência, mais empenho e melhores resultados. E se deixam pra trás também aqueles eletrodomésticos que não conseguiram fornecer a “plena satisfação” prometida por aquelas relações humanas que produziram um “bang” menos “big” do que se esperava. A pressa deve ser máxima quando se trata de correr de um ponto (que desiludiu, que está desiludindo, que está começando a desiludir) a outro (ainda não aferido). Dever-se-ia relembrar a amarga lição do Fausto de Christopher Marlowe: acabar no inferno por ter desejado que o momento, somente por ser prazeroso, durasse para sempre.
Dada a infinidade de oportunidades prometidas e presumidas, que transformam em “pontos” esmigalhados a mais atraente novidade do tempo, uma alteração que se pode estar seguros deveria ser abraçada avidamente e explorada com paixão, é a dupla expectativa ou esperança de prever o futuro e neutralizar o passado. Conseguir colocar à mostra um duplo sucesso deste tipo, depois de tudo, é o ideal da liberdade. (...) Partimos da extraordinária empreitada de neutralização do passado. Essa se reduz a uma única mudança na condição humana, mas uma mudança realmente milagrosa: a possibilidade de “renascer” com facilidade.
De agora em diante, não são somente os gatos que podem ter sete vidas. Durante aquele espaço de tempo terrivelmente breve que passamos sobre a terra, nos queixando não faz muito tempo pela sua odiosa brevidade e que desde então não se prolongou mais tanto, os seres humanos – como os proverbiais gatos – agora tem a capacidade de esgotar muitas vidas, uma série infinita de “recomeços”.
Renascer significa que o/os nascimento/s precedente/s, juntamente com as respectivas conseqüências, é/ são anulado/s: parece o advento da omnipresença de tipo divino, sempre sonhada, mas até agora nunca experimentada. O poder de determinação causal pode ser desarmado, e o poder do passado de limitar as opções do presente pode ser contido drasticamente, talvez abolido de vez.
Aquilo que eras ontem não impede mais a possibilidade de tornar-se alguém totalmente diferente hoje.
A partir do momento que cada ponto no tempo, relembremos, é cheio de potencial, e que cada potencial é diferente e único, se pode ser diferente de maneiras realmente incontáveis: é algo que suplanta até a surpreendente multiplicidade de permutações e a maravilhosa variedade de formas e aspectos que os encontros casuais de gênios conseguiram até agora e provavelmente continuarão a produzir no futuro da espécie humana. Aproxima-se àquela capacidade de eternidade que assusta, na qual, considerando a sua infinita duração, cada coisa pode/ deve, cedo ou tarde, suceder, e em cada caso poderá ou será, cedo ou tarde, feita.
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