Le Monde
Às vésperas da cúpula do G20 em Toronto (Canadá), o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, fala sobre o futuro da globalização e de sua governança, a regulação, a crise do euro e os outros grandes assuntos econômicos do momento.
A entrevista é de Arnaud Leparmentier, publicada pelo jornal Le Monde e traduzida pelo portal Uol, 25-06-2010.
Eis a entrevista.
Que decisões serão tomadas pelo G20?
O G20 não “decide”. No G20, os dirigentes terão uma discussão política sobre orientações. Não é o governo do mundo, mas um elemento do atual sistema de governança mundial: o G20 dispõe da capacidade de impulsionar; a ONU tem a legitimidade; as organizações internacionais oferecem seu conhecimento, sua capacidade de decretar as regras e mobilizar recursos.
O espetáculo do G20 é primeiramente destinado às opiniões públicas de cada país. Não há um eleitor internacional. Mas estar no G20 é também compartilhar seus problemas, aprender a considerar as consequências internacionais de seus atos. O que importa não são as grandes declarações finais, mas as decisões nacionais que não foram tomadas pois teriam sido contrárias ao interesse coletivo.
O G20 foi mais eficaz a partir da reunião de Washington em novembro de 2008?
O primeiro teste do G20 foi enfrentar a crise. Foi preciso colocar US$ 1 trilhão sobre a mesa. Os governos o fizeram em condições de cooperação correta. O segundo assunto, a regulação financeira, é mais difícil. Nada estará totalmente pronto para o Canadá. Na melhor das hipóteses, será preciso esperar pela reunião de Seul, em novembro. Não acredito muito em uma taxa expiatória sobre os bancos: no fim, o consumidor pagará no lugar do contribuinte. O importante é construir um quadro prudencial internacional restritivo, sabendo que a superrentabilidade da indústria financeira anterior à crise será diminuída por um bom tempo.
Toda vez, os dirigentes pedem para concluir a Rodada de Doha. O presidente da República, Nicolas Sarkozy, questiona sua utilidade.
Os dirigentes sabem que o sistema da OMC aguentou bem. Todos pensavam que a violência econômica e social do choque da crise provocaria um choque protecionista. Isso não aconteceu. Eis um sucesso invisível do G20, sobretudo para os países em desenvolvimento que são mais dependentes de um comércio internacional aberto.
A Rodada de Doha ainda não terminou, mas 80% do trabalho está feito. É preciso concluí-lo. Os acordos bilaterais não são uma solução para resolver problemas como os subsídios agrícolas, ou as barreiras não tarifárias.
Não foi um erro querer desregulamentar a agricultura, especialmente a europeia?
A primeira verdadeira reforma da PAC [política agrícola comum], em 1992, visava esvaziar os “lagos de leite” e os estoques de manteiga e de carne europeus. O apoio pelos preços garantidos aos agricultores levou a superproduções custosas. Estimou-se que era melhor que os agricultores pudessem reagir mais aos sinais do mercado. Mas não vamos caricaturar as restrições da OMC. Assim que a Rodada de Doha for concluída, os americanos e europeus poderão ainda sustentar sua agricultura com até 100 bilhões de euros por ano cada um. Os direitos alfandegários continuarão sendo três a quatro vezes maiores do que os da indústria. Então a especificidade da atividade agrícola é de fato reconhecida. Mas é preciso que os países menos desenvolvidos possam valorizar mais seus potenciais agrícolas. O mundo precisa disso.
Justamente, tem-se a impressão de que a globalização não é mais um jogo onde todos saem ganhando, e que toda a renda é captada pela China.
Os chineses substituíram os japoneses dos anos 1970 nos pesadelos ocidentais. Se um trabalhador chinês recebe dez vezes menos que um trabalhador europeu, é antes de tudo porque são necessários oito chineses para produzir o que o europeu produz. A China é uma grande fábrica de montagem de produtos fabricados em outros lugares. Pegue um iPod: ele é fabricado na China, mas seu custo é composto 5% por salários chineses, 15% de impostos americanos, e 40% de valor agregado japonês, pois é lá que se produz o chip eletrônico de base. A ideia de que os trabalhadores europeus ou americanos estão em concorrência individual direta com seus colegas chineses não corresponde à realidade. Mas a percepção permanece.
Sim, mas eles acabarão nos alcançando...
É claro que eles se aproximarão aos poucos dos países ricos, todo mundo quer isso. Mas a regra de base da divisão internacional do trabalho permanece: você ganha em eficácia ao se especializar; e há lugar para todo mundo se a pobreza for reduzida. Essa eficácia se chama crescimento, e portanto possibilidade de reduzir a pobreza.
A estratégia alemã de fazer uma corrida pela produtividade não é destrutiva?
Se a Alemanha é hoje a principal exportadora agrícola e de alimentos na Europa, não é por causa de um dumping monetário, salarial ou ambiental. É a produtividade, a inovação que fazem o crescimento.
Tem reinado um sentimento pouco favorável à globalização na Europa.
A globalização provoca reações identitárias, modeladas pela ideia de que se tem do futuro. Os países mais pró-globalização são os mais pobres. Os mais otimistas. Os europeus são os mais pessimistas: de longe, eles têm o melhor modelo social. Para mantê-lo, eles só podem contar com o crescimento e a população. Eles não têm nenhum dos dois. Para compensar, eles só têm três soluções: fazer cortes em seu sistema social, aceitar a imigração, fazer reformas estruturais que aumentem o potencial de crescimento. É mais fácil falar do que fazer! Nenhum outro continente tem uma equação tão difícil de resolver.
A crise questiona os benefícios da globalização?
A globalização é, entre outras coisas, a abertura das economias umas às outras. Essa crise não se originou na interdependência. Ela se explica pelo fato de que a indústria mais globalizada, o setor financeiro, não se submete a disciplinas restritivas. A prova: o Canadá, cuja economia é imbricada com a dos Estados Unidos, atravessou a crise com tranquilidade, enquanto o sistema americano ruía. Nos Estados Unidos, o setor financeiro é mal regulado, diferentemente do Canadá. Portanto o problema não era de abertura, mas sim de regulação.
O sr. não se equivocou ao defender a globalização feliz?
Eu nunca falei em globalização feliz. Sempre falei da necessidade de controlá-la. Com a revolução das tecnologias de informação, nós vivemos uma revolução comparável à invenção da máquina a vapor ou da eletricidade: um crescimento inédito, impulsionado pela tecnologia e pela expansão territorial das economias. O resultado está aí: centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza.
Em contrapartida, é preciso combater a desigualdade. Se quisermos que a política alcance a economia, é preciso ter mais regulação e redistribuição nacional e, se possível, supranacional. Esse salto é muito difícil. O objetivo da ajuda ao desenvolvimento é de 0,7% do PIB. O orçamento europeu é inferior a 1%. Os orçamentos nacionais, entre 20% e 50%. Só existe efetivamente a redistribuição quando o sentimento de se pertencer a uma comunidade é forte.
Mas os países da zona do euro convergiram muito menos do que o esperado desde Maastricht.
Veja o que aconteceu com a Grécia, Portugal e Espanha em vinte anos, e os países do Leste desde a queda do Muro: em matéria de infraestrutura, de educação, de saúde, todos esses países se beneficiaram muito com a integração europeia. Os dirigentes e os países da União Europeia decidiram sabiamente que a Grécia permaneceria no euro.
Os alemães estão visceralmente ligados ao euro?
Os alemães estão visceralmente ligados a uma moeda estável que os protege da inflação. A Europa tem um grande problema demográfico com uma população que vem envelhecendo. Não vejo uma população como essa aprovando a inflação! A Europa vem vivendo uma réplica sísmica da falência dos Lehman Brothers. A força do euro mascarou um certo número de desequilíbrios, que foram causados pelo relaxamento deliberado das disciplinas do pacto de estabilidade, que deu a mão aos mercados.
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