Há uma crise militar que, no entanto, não ameaça a autoridade do presidente, constata especialista
Há, sim, uma crise militar, embora não estejam ameaçadas nem as instituições nem a autoridade do presidente da República. Três fatos distintos caracterizam essa crise, surgida com a rebelião dos sargentos na sexta-feira. Primeiro, a quebra de hierarquia, quando eles se recusaram a cumprir ordens superiores. Segundo, a decisão dos oficiais de se recusar a continuar comandando os insurretos. Terceiro, a atitude do governo de escalar um ministro civil - o do Planejamento, Paulo Bernardo - para negociar diretamente com os rebeldes e tomar decisões que desprezam os procedimentos militares. A definição é do cientista político Eliezer Rizzo de Oliveira, especialista em assuntos militares e autor do livro Democracia e Defesa Nacional, em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 3-04-2007.
Aposentado como professor de Ciência Política na Unicamp, Rizzo dirige agora o Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Em maio, lançará, ao lado de outros estudiosos - entre os quais o ministro-chefe Jorge Armando Félix, do Gabinete de Segurança Institucional, e o jornalista Roberto Godoy, do Estado, o livro Segurança e Defesa Nacional.
Uma das saídas para o atual conflito, adverte ele, “é o presidente da República parar de atuar sindicalmente e agir como chefe de Estado”. “E isso começa por não deixar que se cortem verbas, como se a defesa nacional fosse negociável.”
Eis a entrevista.
Os acontecimentos ocorridos desde sexta-feira configuram uma crise militar?
Sim, temos uma crise militar. Se algo semelhante acontecesse no sistema financeiro ou na cúpula política, seria entendido e tratado como crise. O que vem ocorrendo não corresponde à normalidade, às regras e rotinas da instituição militar. Portanto, é uma crise.
Como o sr. a descreveria?
Há dois focos para defini-la. Primeiro, uma situação de desobediência de subordinados, que são sargentos e se rebelaram contra o comando de operações do controle aéreo. E segundo, os oficiais que se recusaram a continuar comandando esses insurretos. Há aí uma diferença sutil, curiosa. Ao descumprir ordens, os sargentos quebraram a hierarquia. Já a rebelião dos oficiais foi por eles concebida para preservar a hierarquia. Assim como os altos comandantes da Aeronáutica desistiram da demissão, na sexta-feira, para não aprofundar a crise, esses oficiais se recusam a trabalhar com os insurretos para preservar essa hierarquia e impedir que se abram precedentes e surjam no futuro problemas mais graves.
Como os civis entram nesse episódio?
O lado civil também contribuiu para a crise. O presidente da República tomou medidas que inegavelmente lhe competem, constitucionalmente, na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas. No entanto, estruturalmente, era necessário que ele encaminhasse suas decisões por intermédio de um ministro da Defesa. Isso não aconteceu. O que o presidente fez foi acionar seu ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Criou-se uma situação excepcional, que a hierarquia militar não tem como resolver: um ministro civil escalado pelo presidente para solucionar o conflito, acima dessa hierarquia militar.
Isso representou um grande estrago?
Certamente. Os sargentos exigiram que não houvesse nenhuma punição, e o ministro do Planejamento concordou. Depois, pediram que militares não participassem da negociação, o que foi também aceito. Terceiro, que as punições anteriores não fossem efetivadas. Também foram atendidos. Não há dúvida: tudo isso junto constitui uma crise. Não é de estranhar o que ocorreu em seguida: as cúpulas do Exército e da Marinha ficaram solidárias com a da Aeronáutica.
Isso pode significar, como no passado, um gesto de contestação ao sistema?
Esta não é uma crise militar nos moldes da que ocorreu em 1964 ou outras antes dela. O que temos é uma crise de comando, política. Não há nenhuma contestação ao regime democrático nem à autoridade presidencial. Mas houve, sim, uma contestação à autoridade da Aeronáutica, partida primeiro dos sargentos e depois do ministro Paulo Bernardo. Há no País muitas associações militares ativas, que fazem reivindicações trabalhistas. Imagine se, em alguma unidade da Marinha, tomarem a decisão de não fazer um navio funcionar...
Como resolver o conflito?
Há uma saída emergencial e outra de mais longo prazo. A emergencial: o presidente da República precisa imediatamente deixar de atuar sindicalmente e atuar como chefe de Estado. E isso começa por não deixar que se cortem verbas, como se a defesa nacional fosse negociável. Isso é uma imprevidência. Outra coisa, uma mudança rápida no comando do Ministério da Defesa, no qual é indispensável entrar alguém com capacidade real de operação.
O ministro Waldir Pires não tem essa capacidade?
Ele deveria ter sido tirado pelo simples fato de ter tomado posição no episódio. Era fundamental que se mantivesse eqüidistante, como mediador. Ele entendeu que os sargentos tinham direito sindical a rebelar-se. Não tinham.
Qual a providência de longo prazo?
Criar e implantar uma política de defesa nacional. O controle aéreo é parte disso. Se o presidente Lula quer que o controle passe para os civis, tem todo o direito de fazê-lo, mas não em detrimento da estrutura militar.
Desde o fim do regime militar, em 1985, praticamente não houve protesto ou conflito partido dos quartéis. Este é um episódio isolado?
Que eu saiba, nesses 27 anos não houve uma única rebelião importante. E isso aconteceu porque nossos militares têm organizações de gente na reserva, muito ativas, que atuam como poros. Eles têm insatisfações e as manifestam em almoços, homenagens, mas sempre obedecendo à hierarquia.
Os militares administraram mal o tráfego aéreo, nos últimos anos?
Vem sendo feito um trabalho para mostrar que eles são incapazes para essa tarefa. Falta explicar por que estava tudo bem até seis meses atrás, quando caiu o Boeing com 154 pessoas em Mato Grosso. E por que essas pessoas não responsabilizam também o ministro do Planejamento, ou o da Fazenda? Estes agem como semiditadores, cortando verbas sem se dar conta da gravidade desse gesto. O presidente também tem responsabilidades, pelo modo como utiliza as medidas provisórias. Aliás, ele jamais usou esse instrumento para resolver a crise aeronáutica. Lembro aqui o que faz o Chile, onde é obrigatória, por lei, a transferência, todo ano, de um porcentual fixo da exportação de cobre, diretamente para o orçamento das Forças Armadas. Isso garante recursos estáveis, no longo prazo, e suas Forças Armadas são bem modernas.
É possível diminuir o caos nos aeroportos rapidamente?
O que é necessário, com urgência, é obrigar as empresas aéreas a cumprir suas obrigações e a respeitar o cidadão. Eu estava no Aeroporto Tom Jobim na sexta-feira e vi o caos e o despreparo. As empresas não têm estrutura, ou não querem ter, para coisas básicas, como dar lanches e informações. Parece que estão interessadas em manter os passageiros como carneiros.
Aposentado como professor de Ciência Política na Unicamp, Rizzo dirige agora o Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, no Memorial da América Latina, em São Paulo. Em maio, lançará, ao lado de outros estudiosos - entre os quais o ministro-chefe Jorge Armando Félix, do Gabinete de Segurança Institucional, e o jornalista Roberto Godoy, do Estado, o livro Segurança e Defesa Nacional.
Uma das saídas para o atual conflito, adverte ele, “é o presidente da República parar de atuar sindicalmente e agir como chefe de Estado”. “E isso começa por não deixar que se cortem verbas, como se a defesa nacional fosse negociável.”
Eis a entrevista.
Os acontecimentos ocorridos desde sexta-feira configuram uma crise militar?
Sim, temos uma crise militar. Se algo semelhante acontecesse no sistema financeiro ou na cúpula política, seria entendido e tratado como crise. O que vem ocorrendo não corresponde à normalidade, às regras e rotinas da instituição militar. Portanto, é uma crise.
Como o sr. a descreveria?
Há dois focos para defini-la. Primeiro, uma situação de desobediência de subordinados, que são sargentos e se rebelaram contra o comando de operações do controle aéreo. E segundo, os oficiais que se recusaram a continuar comandando esses insurretos. Há aí uma diferença sutil, curiosa. Ao descumprir ordens, os sargentos quebraram a hierarquia. Já a rebelião dos oficiais foi por eles concebida para preservar a hierarquia. Assim como os altos comandantes da Aeronáutica desistiram da demissão, na sexta-feira, para não aprofundar a crise, esses oficiais se recusam a trabalhar com os insurretos para preservar essa hierarquia e impedir que se abram precedentes e surjam no futuro problemas mais graves.
Como os civis entram nesse episódio?
O lado civil também contribuiu para a crise. O presidente da República tomou medidas que inegavelmente lhe competem, constitucionalmente, na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas. No entanto, estruturalmente, era necessário que ele encaminhasse suas decisões por intermédio de um ministro da Defesa. Isso não aconteceu. O que o presidente fez foi acionar seu ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Criou-se uma situação excepcional, que a hierarquia militar não tem como resolver: um ministro civil escalado pelo presidente para solucionar o conflito, acima dessa hierarquia militar.
Isso representou um grande estrago?
Certamente. Os sargentos exigiram que não houvesse nenhuma punição, e o ministro do Planejamento concordou. Depois, pediram que militares não participassem da negociação, o que foi também aceito. Terceiro, que as punições anteriores não fossem efetivadas. Também foram atendidos. Não há dúvida: tudo isso junto constitui uma crise. Não é de estranhar o que ocorreu em seguida: as cúpulas do Exército e da Marinha ficaram solidárias com a da Aeronáutica.
Isso pode significar, como no passado, um gesto de contestação ao sistema?
Esta não é uma crise militar nos moldes da que ocorreu em 1964 ou outras antes dela. O que temos é uma crise de comando, política. Não há nenhuma contestação ao regime democrático nem à autoridade presidencial. Mas houve, sim, uma contestação à autoridade da Aeronáutica, partida primeiro dos sargentos e depois do ministro Paulo Bernardo. Há no País muitas associações militares ativas, que fazem reivindicações trabalhistas. Imagine se, em alguma unidade da Marinha, tomarem a decisão de não fazer um navio funcionar...
Como resolver o conflito?
Há uma saída emergencial e outra de mais longo prazo. A emergencial: o presidente da República precisa imediatamente deixar de atuar sindicalmente e atuar como chefe de Estado. E isso começa por não deixar que se cortem verbas, como se a defesa nacional fosse negociável. Isso é uma imprevidência. Outra coisa, uma mudança rápida no comando do Ministério da Defesa, no qual é indispensável entrar alguém com capacidade real de operação.
O ministro Waldir Pires não tem essa capacidade?
Ele deveria ter sido tirado pelo simples fato de ter tomado posição no episódio. Era fundamental que se mantivesse eqüidistante, como mediador. Ele entendeu que os sargentos tinham direito sindical a rebelar-se. Não tinham.
Qual a providência de longo prazo?
Criar e implantar uma política de defesa nacional. O controle aéreo é parte disso. Se o presidente Lula quer que o controle passe para os civis, tem todo o direito de fazê-lo, mas não em detrimento da estrutura militar.
Desde o fim do regime militar, em 1985, praticamente não houve protesto ou conflito partido dos quartéis. Este é um episódio isolado?
Que eu saiba, nesses 27 anos não houve uma única rebelião importante. E isso aconteceu porque nossos militares têm organizações de gente na reserva, muito ativas, que atuam como poros. Eles têm insatisfações e as manifestam em almoços, homenagens, mas sempre obedecendo à hierarquia.
Os militares administraram mal o tráfego aéreo, nos últimos anos?
Vem sendo feito um trabalho para mostrar que eles são incapazes para essa tarefa. Falta explicar por que estava tudo bem até seis meses atrás, quando caiu o Boeing com 154 pessoas em Mato Grosso. E por que essas pessoas não responsabilizam também o ministro do Planejamento, ou o da Fazenda? Estes agem como semiditadores, cortando verbas sem se dar conta da gravidade desse gesto. O presidente também tem responsabilidades, pelo modo como utiliza as medidas provisórias. Aliás, ele jamais usou esse instrumento para resolver a crise aeronáutica. Lembro aqui o que faz o Chile, onde é obrigatória, por lei, a transferência, todo ano, de um porcentual fixo da exportação de cobre, diretamente para o orçamento das Forças Armadas. Isso garante recursos estáveis, no longo prazo, e suas Forças Armadas são bem modernas.
É possível diminuir o caos nos aeroportos rapidamente?
O que é necessário, com urgência, é obrigar as empresas aéreas a cumprir suas obrigações e a respeitar o cidadão. Eu estava no Aeroporto Tom Jobim na sexta-feira e vi o caos e o despreparo. As empresas não têm estrutura, ou não querem ter, para coisas básicas, como dar lanches e informações. Parece que estão interessadas em manter os passageiros como carneiros.
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