“O capitalismo globalizado está destruindo a capacidade de os indivíduos se tornarem independentes.” Esta é uma das conclusões a que o sociólogo francês Robert Castel chegou através de seus estudos sobre a sociedade e a crise da modernidade. Castel é um dos conferencistas do Simpósio Internacional O futuro da autonomia, organizado pelo Instituto Humanitas. A IHU On-Line, com o apoio do professor Benno Dischinger, entrevistou Castel pessoalmente.
Na entrevista, Castel fala em como construir uma sociedade autônoma sem criar indivíduos individualistas, analisa também o futuro da autonomia e as conseqüências da crise na modernidade e o lugar do trabalho e dos suportes sociais. “O indivíduo isolado não chega a lugar algum”, pois precisa de “proteções promovidas por uma sociedade coletiva”, conclui Castel.
Robert Castel é sociólogo e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, França. É autor de inúmeros livros, dentre eles "As metamorfoses da questão social" (Editora Vozes: Petrópolis, 1998) e "A insegurança social. O que é ser protegido?" (Vozes: Petrópolis, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como construir uma sociedade de indivíduos sem criar indivíduos cada vez mais individualistas?
Robert Castel – Essa é uma questão fundamental, embora muito difícil de ser respondida. A tendência atual é que as pessoas se considerem membros de uma sociedade de indivíduos, ou seja, de uma sociedade individualista. Isso é verdadeiro, pois o indivíduo é de fato um valor de referência para a modernidade, mas ele sozinho não consegue existir positivamente. O indivíduo isolado é, de alguma maneira, levado “pelas águas” e não chega a lugar algum.
O importante é procurar articular esses valores individuais dentro de uma dimensão do coletivo no qual o indivíduo se encontra. Então, somente dentro desse coletivo ele pode se proteger e ser protegido da competição, constante e mesmo louca, que vem existindo. Dentro de um coletivo é que ele consegue conquistar realmente o seu lugar, a sua classe. Como articular a dimensão do indivíduo dentro de um coletivo é uma questão imensa e muitíssimo difícil.
IHU On-Line – É possível pensar na autonomia dentro dessa construção de uma sociedade de indivíduos?
Robert Castel – O indivíduo não é algo que cai do céu com capacidade de decidir sem ajuda externa. Portanto, ele não é um indivíduo autônomo que surge dentro da sociedade de forma inesperada, pois necessita de condições para poder existir. Para se alimentar, por exemplo, ele não é autônomo, isto é, precisa encontrar esse alimento em algum lugar, depende quase sempre de outrem. Ele também tem necessidade de direitos sociais, promovidos por uma sociedade onde ele possa ser amparado por inúmeras proteções, como a aposentadoria. O trabalhador que não tem mais condições de trabalhar e não possui este amparo passa por uma situação terrível, pois não sabe quem vai mantê-lo. Ele está condenado, muitas vezes, a pedir esmola, a quase morrer, a ficar num abrigo de indigentes, entre outras situações devastadoras.
Hoje, a França é um exemplo de país privilegiado em relação a outros, pois nele há o direito a ter uma pensão, e oferece uma aposentadoria àqueles que não tem mais condições ou idade para trabalhar. Este trabalhador aposentado tem um sustento que não vai torná-lo rico, mas lhe permite que tenha condições positivas mínimas, próprias de uma pessoa equilibrada dentro de um contexto social no qual ele se encontra.
No Brasil, esse benefício é apenas para um número limitado de pessoas. Não há direito a um salário mínimo que possa suprir as necessidades básicas dos cidadãos. Na França, a pensão dá condições de uma vida decente.
IHU On-Line – Poderia apontar as conseqüências que a crise na modernidade trará ao futuro da autonomia?
Robert Castel – Nós vivemos uma grande transformação, pois mudamos o regime do capitalismo. Há cerca de 30 anos, saímos do capitalismo industrial, que, entre prós e contras, chegou a um final construído por um compromisso que ele assumiu com a sociedade. De um lado, o compromisso era com os direitos dos empresários, dos investidores, dos produtores e da necessidade do próprio mercado, e, de outro, dava-se garantia ao direito dos trabalhadores, que deveriam ter o mínimo de condições para se manterem, como também poderem ajudar suas famílias. Isso o capitalismo conseguiu satisfazer.
Já com esse capitalismo atual, que é altamente competitivo, corre-se o risco de desfazer aquele equilíbrio que tinha surgido. Este capitalismo, com o desenvolvimento das tecnologias e com sua abrangência cada vez maior (representada pela globalização), está mais está agressivo, investidor. Nesse sentido, ele começa a romper o equilíbrio que o capitalismo industrial tinha obtido e destrói com a possibilidade de um indivíduo dependente, como um trabalhador assalariado, ser autônomo, pois retira desse, cada vez mais, até os direitos básicos. Diante disso, o que diremos do direito de alguém de se tornar autônomo?
IHU On-Line – Qual é o lugar do trabalho e dos suportes sociais dentro dessa construção dessa sociedade autônoma?
Robert Castel – Essa é uma questão bastante difícil também. O que se nota é uma modificação das condições de trabalho, ou seja, uma individualização, no sentido de valorizar o trabalhador com seus direitos individuais e suas iniciativas, aproveitando-as dentro do contexto no qual se insere. Para que isso mude, é preciso formar uma solidariedade coletiva.
De certa forma, há alguma coisa de irreversível nessa evolução do capitalismo globalizado. Essa tecnologia avançada e a concorrência exacerbada precisa sofrer uma certa restrição em relação ao mundo do trabalho. É preciso criar novas legislações, novos dispositivos de administração dessa exploração do trabalho individual, para que haja realmente um equilíbrio. Então, essa nova organização de direitos não pode se apoiar no Estatuto do Trabalhador, porque este perdeu a sua estabilidade. Ela deve se basear em outras dimensões, no sentido que garanta essa busca da capacidade individual do trabalhador. Hoje se nota que a proteção de direito dos trabalhadores está mais ligada à pessoa do trabalhador do que ao Estatuto do Trabalhador, que já é tradicionalmente aceito, mas está enfraquecido.
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