Vendidos exageradamente como a solução para deter a mudança climática, os biocombustíveis ainda não convencem de todo: contrariamente da energia solar ou da eólica, que são tomadas diretamente da natureza, a energia gerada pelos biocombustíveis requer por sua vez energia para semear, colher, produzir e "fabricar" estes biocombustíveis, às vezes a um custo bastante elevado. Não bastasse isso, são promovidos pelo próprio Bush, num contexto em que, diante da falta de energias verdadeiramente alternativas, o cartel do petróleo não colapsa e o negócio continua, inalterado, nas mesmas mãos.
A grande conclusão do artigo de Sergio Federovisky é que a matriz energética dos biocombustíveis é a mesma do petróleo. A distribuição dos biocombustíveis continua nas mãos dos que dominam a distribuição da gasolina e do diesel. Dessa maneira, segundo o autor dá a entender, produz-se uma nova divisão internacional mediante a qual os países em desenvolvimento entram não mais como simples fornecedores de matérias-primas, mas como fornecedores de energia (biocombustíveis) para os países ricos.
Eis a íntegra do artigo publicado Página/12, 19-05-2007. A tradução é do Cepat.
Parece que o mundo, de repente tão angustiado com a mudança climática, descobriu magicamente a porta de saída do inferno. Da mão do midiático e agora apreciado Al Gore (a derrota sempre enaltece, mais ainda quando é por mãos de um obtuso), parece que temos confirmado que o problema é a gasolina e que é preciso encontrar a forma de encher o tanque do carro com um combustível "ecológico" para descansar tranquilamente e não nos sentirmos responsáveis por colaborar com o aquecimento global.
Ao influxo de seu documentário "Uma verdade inconveniente" (cinematograficamente bom e academicamente correto, é preciso dizê-lo), Al Gore introduziu um termo que parecia familiar, mas não tanto. O termo é biocombustível.
A palavra "biocombustível" tem um problema estritamente semântico. Ao ter o prefixo "bio", outorga a todo aquele que a escuta uma sonoridade que conota o suposto benefício que todo o derivado do natural traz. Em conseqüência, se produz uma enunciação automática que faz deduzir que a solução para tudo está nas mãos dos biocombustíveis.
Quem esclarece que isto não é obrigatoriamente assim não é um ecologista: Ed Kerschner, chefe do departamento de Pesquisa do Citigroup Investment, diz que é um erro identificar de modo automático as práticas energéticas que tentam frear a mudança climática como opções ecológicas. Uma coisa é o alternativo e outra é o ambientalmente sustentável, esclarece e exemplifica: "A energia nuclear é 100% alternativa, já que não gera gases de efeito estufa; no entanto, é ambientalmente questionável, já que produz resíduos radiativos, cuja disposição ainda não tem resolução tecnológica".
Nesse cenário aparecem os biocombustíveis, que são marqueteados como alternativos (sua incidência direta na emissão de gases de efeito estufa é pouco inferior à combustão de petróleo ou carvão), mas de modo algum podem ser classificados como "ecológicos", supondo que não provocam alterações ambientais no planeta.
A questão é que aparece George W. Bush - a quem por antonomásia lhe adjudicamos um olhar maligno (ou ao menos contrário aos interesses populares, e mais inclinado a favorecer interesses setoriais) - e ao reivindicar os biocombustíveis e anunciar que aceita o desafio da mudança climática e promover este produto como solução, nos obriga a repensar se se está no caminho certo.
Efeitos colaterais
No meu livro O meio ambiente não importa a ninguém exponho a idéia (tomada por sua vez de diversos economistas que analisaram a variável ecológica do desenvolvimento) de que os problemas ambientais na verdade não existem, mas que são "efeitos colaterais" das decisões econômicas. O que na hora de esmiuçar cada episódio os converte prontamente em problemas econômicos: a bacia do rio Salí-Dulce que está perfurando a vida útil da represa do Rio Hondo em Santiago del Estero não foi contaminada porque os empresários que foram atraídos à sua beira sejam intrinsecamente perversos, mas porque houve uma equação econômica que justificou a liberação dos dejetos industriais sem tratá-los.
Também exponho ali que em relação aos problemas ambientais globais é a mesma equação que rege a base fática das relações entre a sociedade e o ambiente. O buraco na camada de ozônio pôde ser abordado institucionalmente apenas quando a indústria encontrou substitutos com viabilidade de mercado para substituir os danosos gases refrigerantes CFC.
Dito em termos quase escatológicos, o mercado (que, como dizia o Marx de O Capital, não tem nem pátria nem bandeira) não está nem aí se a humanidade se espatifar contra as conseqüências ambientais do êxito da economia capitalista. 95% dos 800 milhões de veículos que rodam sobre o planeta são movidos pela combustão de combustíveis fósseis (leia-se gasolina, derivada do petróleo). Sabe-se, além disso, que o setor de transporte é responsável por quase 40% das emissões de gases de efeito estufa, principalmente dióxido de carbono. Daí que encontrar um substituto para a gasolina que tenha condições de competitividade no mercado é imprescindível para que o capitalismo creia - e se autoconvença -que encontrou a solução para a mudança climática.
Talvez essa capacidade de penetração no mercado seja o que explica que se exiba como novidade os biocombustíveis, quando na realidade são uma forma tecnologicamente antiga de obtenção de energia e, inclusive, estão presentes como álcool que funciona como substituto ou aditivo da gasolina há ao menos três décadas em países como o Brasil.
O primeiro sinal amarelo a respeito dos biocombustíveis e sua viabilidade ecológica reside em sua equação energética. Diferentemente da energia solar ou da eólica, que são tomadas diretamente da natureza, a energia gerada pelos biocombustíveis requer por sua vez energia para semear, colher, produzir e "fabricar" estes biocombustíveis. E o rendimento não é o mesmo, variando conforme o cultivo: o biocombustível obtido da soja, por exemplo, produz três vezes mais energia que a utilizada para a sua fabricação; ao contrário, no caso do etanol obtido do milho, David Pimentel, professor da Universidade de Cornell, em Nova York, e Tad Patzek, professor de engenharia química na Universidade de Berkeley, na Califórnia, revelam que com os atuais métodos de processamento se gasta mais energia fóssil para produzir o equivalente energético em biocombustível: é mais "caro" produzir o biocombustível que a economia energética que supostamente permite.
Vendidos como alternativos, os biocombustíveis estão longe de serem etiquetados como "ecológicos".
O cobertor curto
Diferentemente das energias absolutamente renováveis e limpas como a eólica e a solar, e mesmo de modo diferente que no caso do gás, do petróleo ou do carvão, os biocombustíveis não se recolhem da natureza. Portanto, é preciso estudar muito bem o custo - econômico e ambiental - que a sua produção implica.
Atribuem a um histórico diretor técnico brasileiro do San Lorenzo campeão de 1968, Tim, a frase que indica que o futebol é um cobertor curto: se te cobres a cabeça (ou seja, se atacas, por exemplo) te descobres os pés. E vice-versa. Os biocombustíveis podem entrar sem temor no conceito de cobertor curto.
Um argumento seguro nesse sentido é o balanço alimentar que, se bem que soa com tambores setecentistas, não deixa de ter sentido se se recorda que a filosofia de Thomas Malthus e seus seguidores contemporâneos como Paul Erlich questionava a capacidade do planeta para produzir alimentos diante do crescimento geométrico da humanidade. Sabe-se que a resposta a esse apocalipse alimentar está no lado da desigual distribuição da riqueza. Mas, até esse sensato esquema cambaleia quando se sabe que - só para citar um exemplo - para fazer funcionar com biodiesel os automóveis da Inglaterra é preciso recolher 26 milhões de hectares de cultivos (cinco vezes mais que a superfície cultivada do Reino Unido). A Argentina tem 17 mil hectares semeados de soja, que não são destinados para o biocombustível e com um altíssimo custo ambiental. Não parece ser obrigatório discutir acerca da opção maniqueísta de "alimentar pessoas ou alimentar autos". Mas soa lógico introduzir o balanço alimentar na equação. A Europa se colocou como meta chegar em 2020 com 20% do parque automotivo alimentado com biodiesel e é um dado complementar que não se pode esquivar o fato de que "é muito pouco provável que destine seus solos a este tipo de cultivos, já que o custo do biocombustível é bem mais baixo se os cultivos energéticos forem produzidos em outros países", segundo os estudos da ONG World Rainforest Movement. É quase uma conseqüência irremediável que o aumento de demanda por parte da Europa para alcançar aqueles 20% de biocombustíveis vá construir uma espécie de "cerealduto" a partir da América Latina, onde será muito mais rentável semear para os tanques dos carros europeus do que para os estômagos locais.
Aí se deve situar a explicação para a viagem de Bush ao Brasil, para onde - também cavalgando em sua promessa de chegar em dez anos a 20% da energia gerada a partir de biocombustíveis - viajou seguramente para comprar a futuro a energia que tirará do setor rural brasileiro sem pôr em risco o abastecimento de alimentos de sua própria população. De acordo com o World Resources Institute, cerca de 50% do cultivo de cana-de-açúcar no Brasil é destinado a prover combustível para 40% de seu parque automotivo. Cristal Davis, o autor do estudo "Tendências globais dos biocombustíveis", assinala que a futura e sustentada demanda norte-americana será uma condenação à morte da Amazônia, que será vista mais que como pulmão do planeta como futuro ilimitado plantio de cana-de-açúcar. Algo similar, quase com toda certeza, acontecerá com a Argentina: se atualmente a febre da soja (destinada a alimentar a balança comercial depois de ser exportada para alimentar porcos chineses e europeus) levou a um desmonte equivalente a um hectare por hora, pode se prognosticar que, se for negócio vender grão para produzir biodiesel, não ficará sequer um gerânio em pé.
Davis, mesmo com o olhar piedoso do Primeiro Mundo, também intervém na discussão alimentar: "À medida que o mercado de biocombustíveis competir crescentemente com os mercados de alimentos em torno dos mesmos cultivos, os preços das commodities alimentares - pão, óleo de cozinha, frangos - subirão, provavelmente com graves conseqüências para cerca de 800 milhões de pessoas que enfrentam uma fome persistente no mundo".
Toda essa discussão, não obstante, tem como base a existência de um suposto axiomático: que o uso do biodiesel é, em oposição aos combustíveis tradicionais, a solução para frear a mudança climática que tanto nos afetará.
Fazendo de conta que sim, convém recordar sucintamente o que aconteceu nos últimos cinco anos para que as grandes potências, desinteressadas do assunto do aquecimento global (mais ainda, dispostas a discuti-lo e negá-lo, como no caso de Bush) desempoeirassem do fundo do baú da tecnologia os biocombustíveis como se fossem uma novidade.
Os últimos cinco verões literalmente incendiaram a Europa: dezenas de milhares de aposentados mortos na França, recorde de incêndios florestais em Portugal, crise de abastecimento de água potável devido a secas sem precedentes na Espanha. Os líderes europeus, que supunham que os efeitos dos gases, majoritariamente lançados pelo mundo desenvolvido à atmosfera, se verificariam primeiro no submundo africano e asiático (o que é quase equivalente a que não existem), perceberam o aquecimento global não como uma ameaça para seus ecossistemas, mas para a reprodução de seu poder. Foram bater na porta de Tony Blair, para exigir que instasse seu colega Bush a incorporar - ao menos no discurso - a mudança climática como uma preocupação. E ali foi Bush anunciar sua repentina preocupação com o clima do planeta e começar a fazer contas sobre os biocombustíveis. No entanto, aquele axioma não aceitado pela ciência parece vigente: considerando toda a energia comprometida com a produção de biocombustíveis, o WorldWatch Institute concluiu que de acordo com o cultivo a quantidade de emissões de gases de efeito estufa só se veria reduzida entre 15% e 40%, comparada com o uso dos atuais combustíveis.
Mas - poderia perguntar um leigo esperto - se o problema são os gases, e o setor do transporte contribui com entre 30% e 40% das emissões, por que só se está discutindo sobre o que se joga no tanque de um carro e não também sobre a geração de energia em termos gerais?
Uma vez mais o mercado dá a resposta.
Não é novidade que o processo de geração de energia está dominado pelo cartel do petróleo, que cobre mais de 70% da produção de energia no mundo. Inclinar-se para o lado de energias verdadeiramente alternativas faria solapar economicamente esse cartel, que ainda não criou um papel substitutivo para si próprio no mercado. Mas sabe aproveitar a tendência ecológica e por isso aceita exumar os biocombustíveis. Os mecanismos de distribuição de combustíveis para transporte estão nas mãos do mesmo cartel petroleiro: se em vez de abastecer com gasolina abastecer com biodiesel passa a formar parte de um sistema ambientalmente não questionável e o negócio continua nas mesmas mãos.
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