Cada vez mais no centro dos debates está o tema dos confins. Onde eles se situam no mundo global? Muitas das antigas divisões desapareceram, da ciência à política. Mas muitas desigualdades nasceram em seu lugar. O contraste entre Norte e Sul se substituiu àquele entre colonizados e colonizadores. Nas grandes metrópoles os quarteirões ricos são opostos àqueles difíceis.
Marc Augé, conceituado antropólogo, publicou no jornal La Repubblica, 8-05-2007, o seguinte artigo:
"Se o conceito de fronteira é “bon a penser” é porque se encontra no coração da atividade simbólica que, com o aparecimento da linguagem – retomando Lévi-Strauss – se encarregou de dar significado ao universo, a dar um sentido ao mundo para torná-lo vivível. Pois bem, esta atividade é constituída em boa parte pelo contrapor categorias diversas, como masculino e feminino, quente e frio, terra e céu, seco e úmido, para simbolizar o espaço subdividindo-o em compartimentos.
É inegável que vivemos hoje um período histórico no qual a necessidade de subdividir o espaço, o mundo ou os seres vivos para conhecê-los, parece menos evidente. O pensamento científico não mais se baseia sobre contraposições binárias, mas procura antes individuar a continuidade por trás das aparências da descontinuidade, por exemplo, fazendo o possível para entender e talvez recriar a passagem da matéria à vida. A igualdade dos sexos é uma exigência do pensamento democrático, mas, além desta igualdade, existe a identidade das funções, dos papéis e das definições a ser postulada logo que se ponha o acento na preeminência do próprio conceito de ser humano. Enfim, a história política do planeta parece pôr em discussão as fronteiras tradicionais no momento mesmo em que se afirma um mercado liberal mundial, no qual as tecnologias da comunicação parecem, dia após dia, dissolver sempre mais os obstáculos ligados ao espaço e ao tempo.
Sabemos bem, no entanto, que as aparências da mundialização e da globalização escondem, na verdade, um bom número de desigualdades, e assistimos, em diferentes escalas, ao reaparecimento de fronteiras cuja existência já constitui por si um desmentido da tese do fim da História. A contraposição Norte/Sul se substituiu atualmente àquela entre Países colonizadores e Países colonizados.
Nas grandes metrópoles do mundo se contrapõem os quarteirões ricos aos quarteirões “difíceis” e, em tal contraposição reencontramos toda a diversidade do mundo, como também todas as suas desigualdades. Em diversos continentes existem até mesmo quarteirões privados e cidades privadas. As emigrações dos Países pobres para os ricos comportam com freqüência aspectos trágicos e são os Países liberais a erigirem muros para premunir-se no confronto com os imigrados clandestinos. De um lado, delineiam-se novas fronteiras, ou, para dizê-lo melhor, erigem-se novas barreiras, seja entre Países pobres e Países ricos, seja no próprio interior dos Países subdesenvolvidos ou emergentes entre os quarteirões ricos conectados à rede da globalização tecnológica e econômica e todos os outros. De outro lado, quantos almejam uma sociedade humana e consideram sua pátria o planeta inteiro não podem subestimar nem a força das inversões de rota em andamento em comunidades, nações, etnias ou ainda outros grupos que se propõem reconstruir as fronteiras, nem o expansionismo dos proselitismos religiosos que aspiram conquistar o planeta rompendo todas as fronteiras.
Num mundo supermoderno, sujeito à tríplice aceleração dos conhecimentos, das tecnologias e dos mercados, se acentua a cada dia mais a disparidade entre a representação de uma globalidade sem fronteiras – que permitiria a mercadorias, seres humanos, imagens e mensagens circularem sem limitações – e a realidade de um planeta dividido, fragmentário, no qual as divisões negadas pela ideologia do sistema se encontram no próprio centro daquele mesmo sistema. Por conseguinte, poder-se-ia contrapor a imagem da cidade-mundo – aquela “meta-cidade virtual”, para usar a expressão cunhada por Paul Virilio, constituída pelas vias de circulação e pelos meios de comunicação que abraçam o planeta inteiro em suas redes e difundem a imagem de um mundo a cada dia sempre mais homogêneo – às duras realidades da cidade-mundo na qual se encontram e eventualmente chegam a colidir entre si as diferenças e as desigualdades.
A urbanização do mundo é a dilatação do tecido urbano ao longo das costas e dos rios e ao mesmo tempo o crescimento sem limites das megalópoles, ainda mais relevante e conspícua no terceiro mundo. Este fenômeno é a verdade sociológica e geográfica daquela que nós chamamos de mundialização ou globalização, e se trata de uma verdade infinitamente mais complexa do que a imagem de uma globalidade sem fronteiras que funciona como álibi para uns e ilusão para os outros.
Conseqüentemente, devemos hoje pensar de novo na fronteira, nesta realidade incessantemente desmentida e incessantemente reafirmada. O fato é que com freqüência ela se reafirma em modalidades rígidas que atuam como proibições e comportam exclusões. É preciso indagar novamente o conceito de fronteira, se quisermos procurar entender as contradições que caracterizam a História contemporânea.
Uma fronteira não é uma barragem: é uma passagem. A fronteira assinala ao mesmo tempo a presença de outro e a possibilidade de reconciliar-se. Muitos mitos evocam a necessidade e os perigos ínsitos em tal travessia. Muitas culturas trataram simbolicamente do confim como também o cruzamento como lugares particulares nos quais algo da aventura humana leva a melhor quando um parte ao encontro do outro.
Existem fronteiras naturais (montanhas, rios, estreitos), fronteiras lingüísticas, fronteiras culturais ou políticas. A fronteira evidencia instantaneamente a necessidade de aprender a fim de compreender. Naturalmente o expansionismo arrastou alguns grupos a violarem as fronteiras para impor a outros a sua lei, mas também aconteceu que, como neste caso trazido como exemplo, que o ter cruzado as fronteiras não tenha sido de todo privado de conseqüências para os próprios autores da violação. A Grécia vencida civilizou Roma e contribuiu para expandir o próprio saber intelectual. Na África os vencedores tradicionalmente adotavam as divindades dos povos sobre os quais haviam obtido a melhor.
As fronteiras não se cancelam jamais: se redesenham. É isso que nos ensina o progresso do conhecimento científico, que desloca progressivamente as fronteiras do desconhecido sempre mais para lá. O saber científico jamais é absoluto: é isto que o distingue das cosmologias e das ideologias. O saber científico tem sempre novas fronteiras por horizonte. A fronteira, neste sentido, tem sempre uma dimensão temporal: é a forma do futuro e, provavelmente, da esperança. Eis o que jamais deveriam esquecer os ideólogos do mundo contemporâneo, os quais volta e meia sofrem – assim pelo menos me parece – ou de excessivo otimismo ou de excessivo pessimismo, e em ambos os casos de excessiva arrogância. Nós não vivemos num mundo absoluto e concluído, do qual nada mais nos resta fazer senão celebrar a perfeição. Não vivemos sequer, se é por isso, num mundo abandonado inexoravelmente à lei dos mais fortes ou dos mais loucos. Nós, antes de tudo, vivemos num mundo no qual ainda existe uma fronteira entre democracia e despotismo. No entanto, a própria idéia de democracia ainda é inacabada, ainda por conquistar até o fundo. Como também a da ciência, a grandeza da política consiste em saber fixar as fronteiras, para depois explorá-las e ultrapassá-las.
No conceito de globalização, naqueles que apelam para isso, existe uma idéia de completude do mundo e de fim do tempo que denota ausência de imaginação e agarramento ao presente, profundamente incompatíveis com o espírito científico e a moral política."
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