"Ofuturo do trabalho aparece com contornos muito sombrios. Os otimistas que tratem de torcer para estarmos aqui a ver fantasmas", escreve Gilberto Dupas, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI) e coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, em mais um artigo sobre o tema, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 17-11-2007.
Eis o artigo.
Terminaremos aqui o exame da profunda crise que enfrenta o trabalho estável e de boa qualidade no capitalismo global. Um dos paradoxos contemporâneos é que muitos dos que enfrentam o desemprego ou o subemprego receberam uma sólida educação; mas a máquina substituiu o homem ou o trabalho migrou para lugares onde se aceita trabalhar a preços vis.
Na pujante Coréia do Sul, orgulhosa de seu amplo e forte ensino superior, a queixa da juventude atual é constatar que essa conquista não é suficiente para garantir uma ocupação.
Na área de serviços, a automação transformou em realidade a melhor ficção científica. No Brasil, o moderníssimo e altamente rentável setor bancário se ampliou largamente nos últimos 20 anos e, apesar disso, reduziu pela metade seus postos de trabalho.
Na indústria pesada dos EUA - entre 1982 e 2002 - a produção de aço aumentou de 75 milhões para 102 milhões de toneladas, embora o número de operários metalúrgicos tenha caído de 290 mil para 74 mil. O grosso desses empregos não saiu do país, foi substituído por máquinas sofisticadas.
Os que mais sofrem são os jovens, que precisam entrar, e os “velhos”, que lutam por permanecer no mercado. Agora os dispositivos inteligentes de ativação de voz também ameaçam a recentíssima fronteira de empregos - ainda que de má qualidade - dos serviços de telemarketing. E os leitores de códigos de barra estão liquidando muitas funções em lojas e supermercados. Um dos poucos mercados para jovens que ainda permanecem em ampla expansão mundo afora, pasme-se, é o dos moto boys. Mas, em geral, as novas oportunidades não cobrem as crescentes perdas.
Richard Sennett, professor de Sociologia da London School of Economics, entrevistou, nos anos 1990, jovens e talentosos profissionais de publicidade na Europa. Eles tinham a sensação de estar “dobrando o cabo” aos 30 anos de idade e de ficar “fora do jogo” aos 40. Essa é uma das evidentes contradições do “progresso” no mundo globalizado. A nova medicina permite-nos viver e trabalhar por mais tempo, mas a extinção de capacitações se acelera e ninguém quer mais saber de “velhos”. Vivemos mais tempo, mas para quê? No atual padrão tecnológico, os especialistas em computação e os médicos precisam reaprender suas técnicas, no mínimo, três vezes em sua vida profissional. E isso vai piorar. O empregador aprendeu que é melhor contratar um jovem de 25 anos, barato e cheio de energia, que voltar a treinar um homem de 50 anos. Além do mais, um jovem imigrante turco europeu se comporta, em geral, de maneira prudente - quando tem problemas no emprego “sai de fininho” porque carrega menos “bagagem familiar”.
A extinção de capacitações é uma característica permanente do avanço tecnológico. A automação pouco precisa da experiência. Enfim, as forças do mercado fazem com que seja mais barato comprar novas capacitações do que pagar pelo retreinamento. Os Estados nacionais, por sua vez, pouco conseguem influir na geração de empregos formais; aprenderam a atender razoavelmente os que estão no desemprego absoluto, mas não sabem como lidar com o subemprego.
O processo de avaliação de talento depende agora da “aptidão potencial”, da capacidade de transitar de um tema a outro. Como os conteúdos do trabalho e a solução dos problemas estão em contínua modificação, qualquer aprofundamento exagerado é um desperdício, pois os projetos são sempre de curta duração. O conceito de trabalho em equipe muda. Não há tempo para conhecer bem os companheiros, pois daqui a pouco serão outros. A questão se resume em colocar logo um novo grupo em ação. A pressão é para obter resultados rápidos. Não há mais como aprender com os erros.
O ressentimento que os trabalhadores cultivavam, por conta das tensões do sistema econômico, nos anos do “capitalismo social”, persiste hoje ainda mais forte, agora por razões diferentes: sentimo-nos muito desprotegidos diante de Estados frágeis e ineptos; as empresas, cada vez mais pragmáticas, minimizam de toda forma a importância do trabalho; e os sindicatos se transformaram em trambolhos inúteis diante da dura realidade do emprego informal e flexível. Para alguns cientistas sociais, esse ressentimento pode explicar o fato de tantos trabalhadores que se posicionavam na centro-esquerda terem passado para a extrema-direita, transformando tensões materiais em símbolos culturais.
O que mais queremos são âncoras mentais e emocionais que nos amparem nas novas tormentas. Na falta delas, fica a busca aflita de uma proteção que não existe mais, e uma necessidade ainda maior de fabricar heróis salvadores. Isso gera fenômenos de massa estranhos, como os violentos filmes dos justiceiros americanos ou o sucesso de Tropa de Elite entre nós.
Diante desse quadro de cores pesadas, o lúcido Sennett enxerga três frágeis iniciativas “inovadoras”. Uma delas é fazer os sindicatos funcionarem como uma espécie de agência de empregos; e “comprarem” cotas de planos de aposentadoria complementar e assistência médica para “sortear” entre seus membros, oferecendo com isso um mínimo senso de solidariedade e comunidade, tão escasso no mercado de trabalho. Outra é sugerir às pessoas que tenham - se possível - sempre mais de um trabalho parcial para estarem mais preparadas quando da inevitável perda de um deles, preservando a auto-estima. Finalmente, antevê-se um Estado limitado a “bolsas-família” e programas de “renda mínima” para minorar o sofrimento mais radical.
Visto assim, o futuro do trabalho aparece com contornos muito sombrios. Os otimistas que tratem de torcer para estarmos aqui a ver fantasmas.
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