A guerra global contra o terrorismo chega à América do Sul; as forças políticas progressistas ameaçam o domínio territorial dos EUA, segundo Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 12-03-2008. Segundo ele, "a estratégia está, pois, delineada: transformar os movimentos indígenas na próxima geração de terroristas e, para os enfrentar, seguir as receitas indicadas no relatório: tolerância zero; reforço das despesas militares; estreitamento das relações com os EUA".
Eis o artigo.
Sobre a incursão do Exército colombiano em território do Equador para eliminar um grupo de guerrilheiros das Farc parece estar tudo dito, tanto mais que é um caso encerrado - e bem encerrado. Na verdade, assim não é. O que sobre ela se revela é tão importante quanto o que se oculta.
Primeira ocultação: os processos políticos na América Latina estão pondo em questão o controle territorial continental que os EUA precisam para garantir o livre acesso aos recursos naturais do continente. Trata-se de uma ameaça à segurança nacional dos EUA que, perante o iminente fracasso das respostas "consensualizadas" (comércio livre e concessões de bases militares), tem de ter uma resposta musculada e unilateral. Ou seja, a guerra global contra o terrorismo chega ao continente -chegou com o Plano Colômbia, mas a "deriva" no Oriente Médio provocou algum atraso- e assume aqui as mesmas características que tem assumido em outros continentes:
1) utilizar um aliado privilegiado - seja Colômbia, seja Israel, seja Paquistão -, a quem ao longo dos anos são fornecidas ajuda militar e informação de espionagem sofisticada que o põem ao abrigo de represálias e lhe permitem ações dramáticas de baixo custo e êxito certo;
2) incitá-lo ao isolacionismo regional como preço a pagar pela aliança hegemônica. A guerra contra o terrorismo inclui ações de grande visibilidade e ações secretas. Entre estas estão os atos de espionagem e de desestabilização de que a Bolívia, a Venezuela e a tríplice fronteira (Paraguai, Brasil e Argentina) são os alvos privilegiados. Na Bolívia, bolsistas norte-americanos da Fundação Fulbright são chamados à Embaixada dos EUA para dar informações sobre a presença de cubanos e venezuelanos e movimentos suspeitos dos indígenas, enquanto os separatistas extremistas de Santa Cruz são treinados na selva colombiana por paramilitares. Fato novo: nas ações de desestabilização, podem participar empresas militares e de segurança privadas, contratadas pelos EUA ao abrigo do Plano Colômbia, dotadas de imunidade diplomática e, portanto, impunidade perante a Justiça nacional.
Segunda ocultação: a verdadeira ameaça não são as Farc. São as forças progressistas e, em especial, os movimentos indígenas e camponeses. De fato, a permanência das Farc é fundamental para manter a justificativa da guerra contra o terrorismo e criar o clima de medo e a lógica belicista que bloqueiam a ascensão das forças progressistas, nomeadamente do Pólo Democrático na Colômbia. Pela mesma razão, a intervenção humanitária a favor dos reféns teve de ser dinamitada para que dela não tirasse dividendos políticos Hugo Chávez.
As forças políticas progressistas ameaçam a dominação territorial dos EUA com medidas que procuram fortalecer a soberania dos países sobre os recursos naturais e alterar as regras de repartição dos benefícios da sua exploração. Mas a maior ameaça provém daqueles que invocam direitos ancestrais sobre os territórios onde estão esses recursos, ou seja, dos povos indígenas. É eloquente a esse respeito o relatório "Tendências Globais 2020", do Conselho Nacional de Informação dos EUA, sobre os cenários de ameaça à segurança nacional do país. Nele se afirma que as reivindicações territoriais dos movimentos indígenas "representam um risco para a segurança regional" e são um dos "fatores principais que determinarão o futuro latino-americano".
"No início do século 21, há grupos indígenas radicais na maioria dos países latino-americanos, que em 2020 poderão ter crescido exponencialmente e obtido a adesão da maioria dos povos indígenas (...) Esses grupos poderão estabelecer relações com grupos terroristas internacionais e grupos antiglobalização (...) que porão em causa as políticas econômicas das lideranças latino-americanas de origem européia."
À luz disso, não surpreende que o presidente do Peru se pergunte "se não haverá uma internacional terrorista na América Latina". Tão pouco surpreende que já hoje centenas de líderes indígenas do Peru e do Chile estejam incriminados ao abrigo de leis antiterroristas promulgadas nesses e noutros países (por pressão dos EUA) por defenderem os seus territórios.
A estratégia está, pois, delineada: transformar os movimentos indígenas na próxima geração de terroristas e, para os enfrentar, seguir as receitas indicadas no relatório: tolerância zero; reforço das despesas militares; estreitamento das relações com os EUA. A responsabilidade das forças políticas progressistas é fazer com que essa estratégia falhe.
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