Elisabeth Roudinesco revê personagens da era medieval até o terrorismo islâmico. Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da USP, comenta o livro A Parte Obscura de Nós Mesmos - Uma História dos Perversos de Elisabeth Roudinesco. Ele critica o livro "que se propõe a falar sobre “a parte obscura de nós mesmos” é no mínimo estranho abandonar, sem maiores discussões, um debate profundo sobre “a parte obscura dos ideais do Iluminismo” a fim de, por um lado, afirmar que “apenas o acesso à civilização, à lei ou ao progresso permite corrigir essa parte de nós mesmos que não obstante escapa a qualquer domesticação”. O artigo foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 29-06-2008.
Eis o artigo.
Elisabeth Roudinesco é conhecida internacionalmente como uma das grandes historiadoras do movimento psicanalítico. Autora de obras importantes como História da Psicanálise na França e Jacques Lacan: Esboço de Uma Vida, História de Um Sistema de Pensamento, Roudinesco conseguiu, nestes casos, aliar sociologia das idéias, pesquisa historiográfica acurada e tentativa de reconstituição sistemática de uma das experiências clínicas intelectualmente mais ricas do século 20. Tais trabalhos são, hoje, documentos importantes para todos aqueles que se interessam por um eixo importante do pensamento contemporâneo.
Infelizmente, não é possível dizer que esse cuidado historiográfico exaustivo que lhe é característico esteja presente em seu último livro: A Parte Obscura de Nós Mesmos - Uma História dos Perversos. Aqui, encontramos Elisabeth Roudinesco não como historiadora, ou mesmo como psicanalista, mas sobretudo como ensaísta às voltas com as histórias “inomináveis, infames, minúsculas, anônimas, miseráveis” dos perversos. Pois tais histórias talvez permitissem responder à pergunta: onde começa afinal a perversão e quem são exatamente os perversos?
Tendo isso em mente, Roudinesco faz um longo sobrevôo que vai da era medieval, com seus santos míticos, flagelantes e criminosos como Gilles de Rais (o Barba-Azul) até o século XX com os nazistas (a autora dá atenção especial aos relatos do carrasco de Auschwitz Rudolf Höss) e o terrorismo islâmico. Sobra espaço ainda para o Marquês de Sade e para a grande constituição do quadro clínico das perversões sexuais em meados do século XIX, com os grandes trabalhos de Krafft-Ebing, Havelock Ellis. Alfred Binet, etc. No entanto, a forma ensaio não pareceu uma escolha feliz para o tratamento de todo esse material heteróclito. Muita coisa é apresentada de maneira demasiadamente panorâmica, o que impede uma reflexão clínica aprofundada sobre a perversão e suas coordenadas históricas.
Mas o ponto realmente delicado do livro aparece à ocasião das análises sobre o pathos do carrasco nazista. O século XX conheceu dois grandes textos críticos sobre os limites do projeto iluminista em moral: Kant Com Sade, de Lacan e Juliette ou Esclarecimento e Moral, de Adorno e Horkheimer. Ao aproximar a moralidade kantiana e a perversão sadiana, esses dois textos diziam basicamente a mesma coisa: que a perversão não era a expressão de uma natureza selvagem composta por pulsões não-socializadas ou a figura de algum “mal radical”. Ela era o resultado necessário de uma vontade que quer, acima de tudo, submeter-se ao puro princípio formal da lei e que, por isso, desqualifica e rebaixa todo vínculo ao sensível, tudo aquilo que não se conforma à pura forma. Adorno via nisso o gozo perverso de quem procura transformar a vontade em logos puro. Lacan via nisso o gozo perverso de quem quer ser o instrumento do desejo de um Outro que enuncia apenas a pura forma da lei.
Nesses dois casos, o esquema servia, entre outras coisas, para mostrar como os carrascos nazistas que diziam estar apenas realizando da maneira mais eficiente uma ordem recebida, assim como os torturadores que dizem ter apenas respeitado o princípio de obediência devida, eram o fruto de nosso próprio esclarecimento e que, por isso, exigiam um profunda autocrítica de nossas expectativas morais depositadas na modernidade. Longe de serem cavaleiros do mal radical, eles eram apenas o reverso de nosso próprio projeto racional.
Roudinesco passa por cima de toda essa tradição de reflexão ao afirmar que: “O criminoso nazista não poderia ser herdeiro do criminoso sadiano.” No fundo, a estratégia aqui é preparar o caminho para afirmar que o criminoso nazista é membro de um Estado “confinado ao mal radical”, fascinado pelo “gozo do mal” e trabalhando “em sentido contrário aos ideais do Iluminismo”. Em um livro que se propõe a falar sobre “a parte obscura de nós mesmos” é no mínimo estranho abandonar, sem maiores discussões, um debate profundo sobre “a parte obscura dos ideais do Iluminismo” a fim de, por um lado, afirmar que “apenas o acesso à civilização, à lei ou ao progresso permite corrigir essa parte de nós mesmos que não obstante escapa a qualquer domesticação” e, por outro, abraçar um desses conceitos que realmente não querem dizer nada, como “mal radical”, e que apenas indicam a incapacidade de pensar o que nos incomoda. Para quem escreveu uma biografia sobre Lacan, só nos restaria dizer: nada menos lacaniano.
Por fim, não deixa de causar um certo desconforto a maneira pouco econômica com que a autora utiliza o adjetivo “perverso”. Noam Chomsky teria uma “visão pervertida do direito à liberdade de expressão” por ter defendido o direito de alguém publicar um texto negacionista (ou seja, sua visão não é, por exemplo, equivocada, mas simplesmente pervertida), o modelo comunista não cessou de estimular o “gozo do mal” (o senador McCarthy não teria dito outra coisa), supressão de garras de gatos, amputação de asas de pássaros para impedi-los de voar seria “uma atitude perversa a respeito do corpo do animal”, a queer theory não passaria de uma “utopia sadiana”. Realmente, para um livro que se propõe discutir a parte obscura de nós mesmos, nada disso é exatamente claro em suas intenções. Da mesma forma, dizer que o terrorismo islâmico é uma “figura hedionda da perversão”, “incapaz de qualquer vislumbre da razão” parece mais uma maneira raivosa de discutir um assunto extremamente sensível. Lá onde poderíamos esperar uma análise sobre o potencial literalmente explosivo de situações sociais onde se misturam humilhação, promessas de modernidade desfeitas pelo próprio Ocidente, esvaziamento do campo político, pobreza e radicalismo religioso, temos apenas diatribes contra os monstros irracionais. Não parece a maneira com que, antes de Freud e Lacan, tratávamos os perversos? Poderíamos até mesmo dizer, parafraseando Lenin: para cada um o seu perverso, conforme a sua necessidade. Para aqueles que admiram os outros trabalhos de Roudinesco, só podemos esperar um retorno àquilo que ela fez de melhor.
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