“Os funcionários da empresa trabalham praticamente por comida, vivem dentro das fábricas, cozinham lá mesmo, durante o trabalho, têm as roupas penduradas lá também e à noite puxam uns colchões e dormem ali mesmo, para no outro dia acordarem e começarem a produção novamente. Trabalham em torno de 16 a 17 horas por dia. E esta é a vida deles, praticamente um trabalho escravo.”
O depoimento é de um executivo da área de comércio exterior de uma grande fabricante de calçados brasileira e faz parte de um relatório em formato PowerPoint que circula pela internet mostrando as condições precárias de trabalho em uma fábrica de calçados na Índia. A reportagem é de Marcelo Rehder e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-06-2008.
Ao lado da China, a Índia é um dos países que mais crescem no mundo, exportando produtos que tomam mercado de outros produtores, como o Brasil, por terem preços impossíveis de serem obtidos por quem emprega mão-de-obra dentro dos padrões mínimos estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O relatório é um documento interno da empresa brasileira, cujos dirigentes pedem para não ser identificada, que vazou na internet. No início do ano, funcionários da empresa fizeram uma viagem à cidade de Mumbai, na India, para negociar um contrato de parceria com um fabricante local chamado Catwalk. O documento foi feito com o objetivo de justificar a interrupção das negociações com a empresa indiana.
A Catwalk tem 130 lojas em toda a Índia, das quais 12 com sapatos mais caros destinados à classe A, que é minoria no país. Embora importe produtos da China, a maior parte dos calçados da empresa é produzido em fábricas próprias. A produção é de 800 a 900 pares por dia, com quadro de 200 funcionários, todos trabalhando nas condições descritas no relatório da empresa brasileira.
No documento, o executivo conta que o dono da marca fez questão de o levar à fábrica e apresentar o sistema produtivo, mostrando como eles conseguem preços tão baixos e lucros tão altos. “As únicas máquinas que vi na fábrica são de costura. O corte é feito a tesoura e toda a montagem é completamente artesanal.”
O relatório reúne fotos mostrando a total falta de condições de trabalho a que os funcionários são submetidos. Em uma delas, trabalhadores sem camisa, sentados no chão, passam cola com os dedos na sola dos calçados. As imagens revelam também que crianças trabalham nessas fábricas. Para ter mais espaço nos galpões de produção, os funcionários trabalham em duplas nas bancadas, um sentado em cima da mesa da bancada e o outro embaixo, sentado no chão. O custo do produto acabado é inferior a US$ 7, segundo o relatório.
Como acontece com as condições de trabalho, a empresa não tem nenhuma preocupação com o controle de qualidade. O índice de rejeição por defeitos é de menos de 1% da produção, embora os sapatos sejam feitos nas condições descritas.“Parece mentira, mas é a pura realidade da Catwalk e da maioria das empresas de Mumbai, que são nossas concorrentes”, relata o executivo brasileiro.
Assim não dá para concorrer, diz diretor da Fiesp
O relatório sobre as condições precárias de trabalho na fábrica de sapatos indiana já chegou, por e-mail, ao governo brasileiro e a entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Estamos muito preocupados com essas condições subumanas de trabalho e de concorrência desleal”, diz Roberto Giannetti da Fonseca, diretor do Departamento de Relações Internacionais e de Comércio Exterior da Fiesp. Ele recebeu o documento de um informante e repassou o e-mail a seus pares na entidade.
“A gente sempre tem muito receio de colocar isso na OMC (Organização Mundial do Comércio) porque pode ser usado de forma ilegítima pelos países envolvidos, mas o fato é que Índia e a China praticam condições de trabalho que não são aceitáveis no mundo ocidental”, afirma Giannetti da Fonseca. “Não há como concorrer com empresas que usam desses expedientes”.
Segundo ele, a China responde hoje por 75% das vendas de calçados no mundo. Dos 12 bilhões de pares comercializados mundialmente por ano, o país asiático produz 9 bilhões de pares. Os fabricantes indianos vêm em seguida, com 910 milhões de pares. O Brasil não está muito longe da Índia, com uma produção anual de cerca de 800 milhões de pares. “A Índia, contudo, ainda vai crescer muito”, observa o diretor da Fiesp.
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