Consiste na convulsão social e política que vai decorrer da destruição progressiva do chamado modelo social europeu – uma forma de capitalismo muito diferente da que domina os EUA – assentado na combinação virtuosa entre elevados níveis de produtividade e elevados níveis de protecção social.
Segue a íntegra do artigo de Boaventura de Sousa Santos publicado na Agência Carta Maior, 02-07-2008. Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
Um terremoto está a assolar a Europa. Não é detectável nos sismógrafos convencionais porque tem um tempo de desenvolvimento atípico. Não ocorre em segundos se não em anos ou talvez décadas. Consiste na convulsão social e política que vai decorrer da destruição progressiva do chamado modelo social europeu – uma forma de capitalismo muito diferente da que domina os EUA – assentado na combinação virtuosa entre elevados níveis de produtividade e elevados níveis de proteção social, entre uma burguesia comedidamente rica e uma classe média comedidamente média ou remediada; na eficácia de serviços públicos universais; na consagração de um direito de trabalho que, por reconhecer a vulnerabilidade do trabalhador individual frente ao patrão, confere níveis de proteção de direitos superiores aos que são típicos no direito civil; no acolhimento de emigrantes baseado no reconhecimento da sua contribuição para o desenvolvimento europeu, e das suas aspirações à plena cidadania com respeito pelas diferenças culturais.
A destruição deste modelo é crescentemente comandada pelas instituições da União Européia e pelas orientações da OCDE. Três exemplos recentes e elucidativos. A directiva européia que permite o alargamento da semana de trabalho até às 65 horas. A chamada Diretiva de Retorno, aprovada pelo Parlamento Europeu, que permite a detenção de imigrantes sem documentados até dezoito meses, incluindo crianças, o que virtualmente cria o delito de imigração.
As alterações ao Código do Trabalho em vias de serem aprovadas no nosso país, cujos principais objectivos são: baixar os níveis de proteção ao trabalhador consagrados no direito do trabalho, já de si baixos pelos níveis de violação consentida; transformar o tempo de trabalho num banco de horas gerido segundo as conveniências da produção por maiores que sejam as inconveniências causadas ao trabalhador e à sua família e com o objetivo de eliminar o pagamento das horas extraordinárias; desarticular o movimento sindical através da possibilidade da adesão individual às convenções coletivas por parte de trabalhadores não sindicalizados, o que objetivamente abre as portas a todo o sindicalismo dependente e de conveniência.
Há em comum nestas medidas dois fatos que escapam por agora à opinião pública. O primeiro é que, ao contrário do que aconteceu na legislação européia anterior (que procurou harmonizar pelo padrão dos países com proteção mais elevada), a atual legislação visa harmonizar por baixo, transformando os países mais repressivos em exemplos a seguir. O segundo fato é o objectivo de fazer convergir o modelo capitalista europeu com o norte-americano. A miragem das elites tecno-políticas européias – muitas delas formadas em universidades norte-americanas – é que a Europa só poderá competir globalmente com os EUA na medida em que se aproximar do modelo de capitalismo que garantiu a hegemonia mundial deste país durante o século XX. Trata-se de uma miragem porque concebe como causas da hegemonia norte-americana o que os melhores economistas e cientistas sociais dos EUA concebem hoje como causas do declínio da hegemonia norte-americana, fortemente acentuado nas duas últimas décadas.
A transformação do trabalhador num mero fator de produção e a transformação do imigrante em criminoso ou cidadão-fachada, esvaziado de toda a sua identidade cultural são as duas fraturas tectônicas onde está a ser gerado o terramoto social e político que vai assolar a Europa nas próximas décadas. Vão surgir novas formas de protesto social, muitas delas desconhecidas no século XX. A vulnerabilidade do Estado será visível em muitas delas, tal como aconteceu com a greve de caminhoneiros, vulnerabilidade reconhecida por um primeiro-ministro cuja eventual ignorância da história contemporânea foi compensada pela intuição política: foi a greve de caminhoneiros que precipitou a queda do governo de Salvador Allende.
A quem beneficiará o fim de um sindicalismo independente e agravamento caótico do protesto social? Exclusivamente ao Clube dos Bilionários, os 1125 indivíduos cuja riqueza é igual ao produto interno bruto dos países onde vive 59% da população mundial.
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