“Se fôssemos escarafunchar nas essências do Ocidente (Deus, homem, mundo), descobriríamos uma série de interesses inconfessáveis (poder, domínio, dinheiro), cujo preço foi declarar descartáveis outros elementos conceituais menos glamourosos (o sofrimento, a pobreza, a escravidão)”. A constatação é do filósofo espanhol Reyes Mate.
A filosofia, diz, “deveria retornar sobre seus passos e tirar as conseqüências do uso político da violência”. Pois, “já sabemos que a tomada revolucionária do poder em nome do povo não significa reconhecer a cada membro do povo domínio sobre o próprio destino; que não é a mesma coisa mandar na vida dos outros e tomar o poder sobre a própria vida. Sabemos, pois, que não basta libertar-se de um tirano para sacudir a tirania”.
Reyes Mate é professor do Instituto de Filosofia do CSIC (Conselho Superior de Pesquisas Científicas) e autor do livro Justicia de las víctimas. Terrorismo, memoria, reconciliación. Barcelona: Anthropos, Editorial del Hombre, 2008, entre outros. Em português se pode encontrar Memórias depois de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. Segue a íntegra do artigo publicado no El País, 30-06-2008. A tradução é do Cepat.
O azar quis que a chegada ao poder da guerrilha colombiana de um filósofo ou antropólogo, Alfonso Cano, coincidisse com a reunião, em Medellín, de 500 filósofos ibero-americanos para refletir sobre a convivência em tempos violentos. A filosofia tem uma dívida para com a violência que vem de longe, mas se intensificou na América Latina a partir dos anos 50. Que os ideais iniciais de justiça social e defesa dos excluídos se metamorfoseassem em crimes indiscriminados, não tira responsabilidade dos cultivadores da filosofia. Pelo contrário.
Filósofos como Levinas ou Rosenzweig chamam a filosofia de ideologia da guerra. A crença de que pensar é apropriar-se do componente mais importante da coisa – a chamada essência – jogando ao lixo outros elementos menos importantes, que chamamos de acidentes, é um violento gesto intelectual que condenou à morte o mais frágil da existência. Pois bem, se fôssemos escarafunchar nas essências do Ocidente (Deus, homem, mundo), descobriríamos uma série de interesses inconfessáveis (poder, domínio, dinheiro), cujo preço foi declarar descartáveis outros elementos conceituais menos glamourosos (o sofrimento, a pobreza, a escravidão).
Nisso a filosofia não foi original. Relatos fundantes da nossa civilização como a Ilíada e a Bíblia estão fascinados pela violência profana ou sagrada. Homero canta a grandeza da guerra, a grandeza de seus heróis no combate, a beleza das feridas que ele se representa como cinzeladas por um sábio artesão. E o primeiro relato de uma morte na Bíblia é o assassinato de Abel.
É verdade que a filosofia enfatizou essa história declarando a violência parteira da história – Marx dixit – razão pela qual os movimentos políticos nele inspirados tenham servido de parteiras sem má consciência. Os movimentos revolucionários na Ibero-américa, desde os anos 50 em diante, levavam na mochila uma teoria filosófica com a qual explicavam a maldade da situação de fato e um pouco de bálsamo de Fierabrás que tudo cura. Se nunca foi bom que os filósofos oficiassem de reis, menos ainda quando o que propunham eram doses de violência adquiridas na farmácia de Platão onde, como se sabe, só se tratavam idéias e não sofrimentos humanos. A América Latina conseguiu, desta maneira, um recorde de revoluções que não trouxeram mais justiça social ainda que sim alguns experimentos notáveis, como na Colômbia, onde os marxistas de outrora se tornaram os prósperos traficantes de hoje.
A filosofia que, a seu momento, legitimou esses movimentos e que, em seguida se desentendeu com suas conseqüências, invertendo-se na teoria deliberativa de Jürgen Habermas e neocontratualista de John Rawls, esquecendo que isto são poções para sociedades mais desenvolvidas e igualitárias, deveria retornar sobre seus passos e tirar as conseqüências do uso político da violência. Já sabemos que a tomada revolucionária do poder em nome do povo não significa reconhecer a cada membro do povo domínio sobre o próprio destino; que não é a mesma coisa mandar na vida dos outros e tomar o poder sobre a própria vida. Sabemos, pois, que não basta libertar-se de um tirano para sacudir a tirania.
Mas há algo mais decepcionante ainda. A luta contra a injustiça, que na teoria poderia explicar o encolhimento da liberdade em nome do bem-estar material, aumentou o sofrimento das pessoas ao somar à pouca eficácia econômica a épica do lutar ou morrer. Naturalmente, deve haver causas pelas quais se sacrificar, mas essas causas, em minúscula, consistem em evitar o sofrimento dos demais, e não em causá-los; em desmontar uma tirania, e não em reinventá-la; em denunciar a existência miserável e não em sublimá-la com apelações estupendas.
É preciso passar de uma épica filosófica, que subordinava os sofrimentos do homem à conquista de grandes palavras, a uma filosofia pobre, como dizia Georg Lukács em seus bons tempos. Não parece que seja dado à filosofia salvar o homem, mas em indignar-se diante do fato de que se chame destino o que é maquinação humana ou de que haja quem confunda o sangue da guerra com o ketchup dos filmes de Hollywood.
Já que não nos é dado rebobinar a história, os participantes do III Congresso Ibero-americano de Filosofia, que acontece nestes dias em Medellín, podem retificar o rumo, enfrentando-se rigorosamente com o que Benjamin chamava de “violência mítica”. O que aprendemos de nossos erros e o que de positivo as catástrofes humanitárias do século XX acrescentaram é que as estratégias políticas que valorizam mais as causas do que as vítimas não podem encontrar amparo na ética. Revolucionário é o quinto mandamento. Não é um programa menor já que se exigirá de qualquer promessa de salvação uma memória dos custos humanos e sociais dos quais nenhuma filosofia poderá se esquivar.
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