O economista Luiz Gonzaga Belluzo é um homem muito preocupado com a conjuntura internacional e seus reflexos sobre o Brasil. Acha que a crise na economia americana está longe do fim e que exigirá um reformulação na ordem econômica mundial, em moldes preconizados há décadas por John Maynard Keynes, um dos pais da macroeconomia, de forma a impedir que o mundo fique à mercê de flutuações de mercado, como no caso da inflação no preço dos alimentos. Participa de um seleto grupo de personalidades que mantém discussões informais, mediadas pelo presidente Lula, sobre a situação da economia nacional e internacional. Talvez a partir dessa condição, revela que o Banco Central está agindo com força no mercado de derivativos, movimentando posição da ordem de US$ 23 bilhões, para tentar impedir a continuidade ou amenizar a valorização ainda maior do real diante do dólar e assim evitar uma situação de caos, que seria o crescimento do déficit em conta corrente aliado a um resultado negativo na balança comercial. A reportagem e a entrevista é de Ubirajara Loureiro e publicada pelo Jornal do Brasil, 29-06-2008.
Na semana depois de falar sobre O capitalismo financeiro global na entrada do século XXI, no auditório do Ipea, no Rio, já no táxi rumo ao aeroporto para voltar a São Paulo, foi apresentado ao motorista:
– Este é o homem que queria caçar o boi no pasto na época do Plano Cruzado...
– Não, eu era contra. Eu queria era quebrar os caras que operavam no mercado de papel, vendendo pesado para acabar com eles. Mas não fui ouvido – disse Belluzzo.
Eis a entrevista.
Dificuldades nos EUA
"Diante da crise que aconteceu e que ainda não terminou nos Estados Unidos, é muito provável que tenhamos pela frente um período difícil de reformas e resistência às reformas. Não está muito claro que tipo de política econômica será executada nos EUA, nem quais interesses ela vai atender, ou quais interesses ela vai ferir".
Risco sem aviso
"Se há uma percepção por parte dos mercados de que é insustentável a situação do balanço de pagamentos, eles não esperam você exaurir suas reservas. Eles saem com tal rapidez que eles mesmos promovem a exaustão das reservas. Tenho este temor, por exemplo, diante da hipótese de, no ano que vem, apresentarmos déficit na balança comercial, o que não é uma impossibilidade. Se nos aproximarmos dessa situação, uma desvalorização abrupta seria precipitada pelos investidores que se antecipam e saem antes".
Busca de rumos
"Vamos ter uma grande discussão nos próximos anos a respeito de como regulamentar este sistema financeiro que está aí, à solta. Será necessário um movimento de desconstrução do capitalismo desgovernado, e isto não vai ser resolvido pela razão econômica. Estamos num momento importante de mudanças, que não vai depender da sabedoria dos economistas, que talvez só ajudem marginalmente, sugerindo soluções para as forças sociais em jogo".
Bolha hipotecária 1
"A história prova que estes processos especulativos que observamos não podem sustentar-se sem que se emita crédito bancário para seu suporte. Nos EUA, no caso das hipotecas, os bancos emitiam os certificados chamados CDOs ( Credit Debt Obligations) com base no crédito original. Como não havia regulamentação ou controle, começaram a catar na rua tomadores para os chamados créditos ninja (no income, no job, no assets) , porque o titular do crédito não tinha salário, trabalho ou bens de garantia".
Bolha hipotecária 2
"Depois da valorização anormal das bolsas, que durou de 1995 a 2001, mais ou menos, ficou evidente que a lógica desse período é que a valorização dos ativos comanda o consumo. Mas a bolha mesmo ocorreu com as hipotecas imobiliárias. Este processo produziu um efeito assustador, que é a relação dívida/renda disponível. Na crise de 1929, esta relação era de 45%. Hoje nos EUA, esta relação chega a 140% e, entre os 60% mais pobres, chega a 300%. Esta situação exigirá muito tempo para ser digerida. Há a suposição de que tudo continuará como antes, depois de o banco central americano ter evitado o crash do sistema financeiro. Então nada será como antes, pois o grau de endividamento das família é uma coisa brutal. E o pior é que a taxa de desemprego americana começou a subir. E isto terá reflexos sobre o consumo que passou a ser o elemento mais dinâmico do crescimento do capitalismo".
Imprevisão
"Depois da euforia das hipotecas e da valorização em progressão geométrica dos preços dos imóveis nos EUA, surgiu algo que não tinha sido previsto pelas agências classificadoras de risco, que apontavam como bons, com a denominação AAA, os títulos hipotecários: o preço das casas começou a cair, porque o estoque começou a crescer mais rapidamente do que a demanda. Isto afetou diretamente aqueles que já não estavam comprando casas para morar, mas para especular, e que usavam as casas como garantia de crédito para consumo de outros bens".
Especulação
"Não se pode deixar que os mercados financeiros tentem recuperar suas perdas em cima da crise subprime, porque há posições especulativas muito fortes com os índices dos preços das commodities".
China & EUA
"A dependência dos americanos diante das importações chinesas é muito grande. Mas o modelo sino-americano está num momento difícil, porque não se pode continuar com o mesmo padrão de consumo de energia e alimentos. Será necessário um mecanismo de controle, sobretudo para formação de estoques reguladores para os preços dos produtos agrícolas".
"Há risco de levarmos uma lambada" A situação do Brasil
"O Brasil nunca esteve numa situação mais resguardada contra riscos econômicos do que hoje. Mas tem que ficar de olho no balanço de pagamentos e na inflação e é isto, em boa medida, o que o governo está fazendo. Temos reservas, mas não podemos esquecer que temos também ativos líquidos que podem ser convertidos rapidamente. E não podemos nos iludir: não são os estrangeiros que saem primeiro, são os brasileiros que vão para outros ativos na moeda reserva. Agora corremos o risco de o Fed (banco central americano) subir a taxa de juros e nós levarmos uma lambada no câmbio. Além disso, num caso de agravamento da crise nos Estados Unidos sofreríamos conseqüências, porque haveria uma queda nos preços das commodities, que hoje sustentam nossas exportações. Aí, teríamos de nos proteger".
Risco potencial
"Há quem diga que o câmbio flutuante atenua situações de risco, pode atenuar movimentos de fuga de capitais. Eu tenho cá minhas dúvidas. A idéia de que o câmbio atenue este movimento está relacionada com o papel que ele pode ter numa situação em que não haja uma integração financeira tão grande como há hoje. Os mercados financeiros se ajustam muito mais rapidamente do que os mercados reais, comércio e produção. Então, se há um estoque de ativos líquidos domésticos muito alto, como hoje no Brasil, há risco potencial de desvalorização, independentemente de a taxa ser fixa ou flutuante".
Desindustrialização
"Alguns setores da indústria brasileira estão sendo muito afetados pela valorização do real, como o metal-mecânico e eletro-eletrônico e todos os que agora estão em déficit com a queda das exportações de manufaturas. O setor de bens de capital também está muito afetado no Brasil, a despeito do crescimento das taxas de investimento, pois as importações estão crescendo muito acima da produção doméstica. Os incentivos à importação estão atrofiando o setor de bens de capital em termos tecnológicos. Isto é uma coisa muito séria, e as conseqüências aparecem a longo prazo".
Restrição no crédito
"É necessário que se coloque alguma exigência de capital adicional em cima de alguns empréstimos, sobretudo para bens duráveis, para evitar que se adote uma medida geral de aumento dos depósitos compulsórios dos bancos no Banco Central. Isto prejudicaria as empresas ao afetar o giro do estoque de crédito. Teriam que ser adotadas medidas mais pontuais, que não são difíceis de tomar. Basta ter a vontade, porque isto é coisa costumeira em outros países".
Keynes atual
"No volume 27 das obras completas de Keynes encontra-se uma proposta extremamente contemporânea. Ele tinha como idéia fundamental, depois do crash dos anos 30, que o dinheiro, a energia e os alimentos não podiam ser deixados à administração do mercado. Defendia uma moeda internacional, com uma administração centralizada, a criação de um comitê para impedir flutuações excessivas nas cotações das matérias-primas e tinha um plano bem elaborado que previa que os preços fossem mudando ao longo do tempo.
"O que ele propôs foi o controle da finança, ou seja, a chamada repressão financeira, que é o estabelecimento de normas, regras e critérios prudenciais que impedissem que o sistema reproduzisse as práticas que levaram ao crash de 1929. Do ponto de vista dele, estas práticas começavam pela permissão para que os capitais se movimentassem livremente entre os países".
Rota de fuga
A crise nos Estados Unidos forçou os bancos de investimento a procurarem rendimentos mais altos. E buscaram países com taxas de juros mais altas, como aqui no Brasil, que tem lugar de honra no pódio dos juros altos. Além disso, a moeda se valorizava, e eles ganhavam duas vezes. Eu cheguei a ousar dizer isto ao presidente do BC: o problema não é aumentar os juros, o problema é aumentar uma taxa de juros que já era muito alta. Então, o Brasil pagou um preço por isto; o real valorizou-se muito e o resultado aí está: o primeiro déficit da indústria brasileira global, redução do superávit comercial (em julho, 47% abaixo do registrado no mesmo mês do ano passado), e aumento do déficit em conta corrente (a previsão do Banco Central para o ano foi elevada de US$ 12 bilhões para US$ 21 bilhões), configurando o pior resultado desde 2001, chegando a cerca de 1,5% do produto Interno Bruto. Boa parte desse aumento do déficit em conta corrente decorre da remessa de lucros e dividendos por investidores estrangeiros, que cresceu desmesuradamente, aproveitando o câmbio favorável para isto. (US$ 15 bilhões de janeiro a maio, quase o dobro do registrado no mesmo período do ano passado). O déficit na balança de turismo é assustador (US$ 4,5 bilhões até maio gastos por brasileiros no exterior, contra US$ 2,4 bilhões de gastos de estrangeiros no país)".
Ação nos derivativos
"Sobre o fluxo de capitais, tenho informações de que está relativamente baixo. E o Banco Central está comprando até acima do fluxo. O problema é que os investidores fazem operações com câmbio e juros nos mercados futuros. Então, não adianta o governo aumentar a aquisição de dólares, a menos que estimule a entrada por outra razão. Mas ele vai ter que operar com outros instrumentos, que afetem estas taxas de relação câmbio/juros, o cupom cambial, operando no mercado futuro com swaps e swaps reversos (operações complexas com potenciais taxas de valorização/desvalorização da moeda e dos juros e que, segundo o BC totalizam hoje algo em torno de US$ 23 bilhões) para forçar a valorização do dólar frente ao real. O governo tem que fazer estas operações, porque esta é a realidade dos mercados financeiros. Mas é preciso reconhecer que é difícil remar contra a maré quando a taxa de juros está muito alta e é muito difícil para o BC reverter as posições dos agentes, sobretudo dos bancos".
Abalo à vista?
"Não sei se há possibilidade de um abalo maior, a curto prazo, nos Estados Unidos. Até agora, os bancos centrais estão conseguindo impedir maiores turbulências. Mas os americanos vão ter que resolver a questão do estoque de dívida das famílias, o que não é uma coisa pacífica. Mas se eles não resolverem isto, a economia não terá força para crescer. Ficarão como o Japão nos anos 90, com a economia estagnada".
Obama & Roosevelt
"A eleição de Obama nos Estados Unidos não me entusiasma nem um pouco, porque não se trata de uma pessoa, mas de uma força social que está sendo gestada nos EUA, diante dessas famílias que já perderam ou ainda vão perder suas casas para morar em traillers, que vão ter que passar por um duro período de ajustamento. Aí lembro da difícil luta política do Roosevelt para levar adiante as reformas que concebeu durante a grande recessão e crise brutal posterior ao crash da Bolsa de Nova York em 1929. Não sei dizer se os Estados Unidos de hoje são melhores do que naquele tempo, mas desconfio que não, mesmo lutando contra o pessimismo, porque tenho dois filhos adolescentes".
Meta de gasto
"Recentemente me atribuíram a autoria de sugestão sobre uma meta de gasto público diretamente ligada ao crescimento do Produto Interno Bruto. Na verdade, eu só me referia a uma sugestão do Armínio Fraga. Esta é uma das formas de controlar a demanda agregada, que está excessivamente estimulada neste momento. Mas ela não basta em si mesma. O que eu sugeri foi um aumento no superávit primário, portanto esterilização de recursos fiscais. Ou seja, reduzir a velocidade de crescimento do gasto público. É verdade que isto significa reduzir o investimento, por isto seria recomendável que o governo tivesse – como procurou ter, mas não conseguiu – um orçamento de investimentos que ficasse preservado e reduzisse os gastos correntes na medida do possível".
Lições do passado
"Numa reunião do Fundo Monetário Internacional, no ano de 1979, em Belgrado, onde estava por acaso, os europeus fizeram uma proposta para substituir o dólar como reserva internacional por um ativo emitido pelo FMI, lastreado numa cesta de moedas, de acordo com a participação de cada um no comércio internacional. Os americanos não acharam aquilo nem um pouco engraçado e abandonaram a reunião no meio. Nosso amigo Paul Volker, então presidente do Fed, deve ter pensado: "Vocês estão querendo estabelecer uma ameaça ao dólar? Então vou mostrar quem tem poder". E, um dia depois de ter abandonado a reunião, elevou a taxa de juros de 6% para 12%. E, pouco tempo depois, para 14% e 21%. E nos quebrou. E os europeus tiveram de ajoelhar no milho. Com isto, os Estados Unidos recuperaram a hegemonia do dólar e também o domínio dos mercados financeiros americanos sobre o resto do mundo. Essa é a origem da desregulamentação e da globalização financeira. O Reagan valorizou brutalmente o dólar, sugou capitais de fora. Aqui, vivemos a década perdida. Nossas agruras deviam-se em boa parte ao fato de que tínhamos uma inflação alta, uma dívida externa imanejável, uma crise fiscal. Nessa penada, os EUA aumentaram brutalmente o déficit americano, que era uma brincadeira perto do que é hoje. Era 3% e hoje chegou perto de 7% do PIB. Corremos o risco de sermos ajustados pelo déficit americano. Hoje, as exportações brasileiras são apenas 15% do que foram no ano passado".
Companheiro Delfim
"Numa entrevista recente à Folha de São Paulo falaram que haveria um ministério do bem referência a um grupo que debate questões importantes com o presidente da República. Não há nada disso. São apenas encontros informais em que estas questões todas são discutidas com a maior abertura, sem restrição de tema. Quanto à convivência com o Delfim Netto (czar da economia durante boa parte do regime militar), ele é um aliado importantíssimo. Convivo com ele há muito tempo e temos opiniões muito parecidas. O Delfim nunca foi um ortodoxo monetarista".
Mais valia à chinesa
"A China já é uma economia que tem seu dinamismo puxado pelas exportações. Primeiro com produtos baratos, depois com graduação tecnológica das exportações. Exatamente como fizeram os japoneses há muitos anos: primeiro com radinhos baratos, depois com equipamentos eletrônicos sofisticados, competindo com os americanos hoje até no setor de automóveis. Só que a escala de transformação da China é muito maior. Isto permitiu que os americanos convivessem, sobretudo depois de 1995, com salários e rendimentos médios caindo, elevação do endividamento e com uma economia com grande desajuste, em que a demanda nominal, por conta do crédito, crescia à frente da renda e da produção. Sobre isto, brinquei com uns amigos do PCdoB que ficaram indignados: é a mais valia, a produtividade do trabalhador chinês, que permitiu o aumento do consumo nos EUA e a acumulação de reservas que, recicladas, servem para financiar o déficit do balanço de pagamentos americano, comprando títulos públicos e privados".
Uma ciência triste
"Acho que eu preferiria ser saxofonista, tocar sax tenor. Pelo menos assim daria alegria às pessoas. O problema do economista é que ele sempre tem que prever as coisas ruins, falar dos riscos, de crises. A economia, como dizia Carlile, é uma ciência triste".
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