A quem pertence o DNA?
DNA Três letras para designar uma substância inquietante, misteriosa e quase imaterial que, contudo, está em cada uma das mais de cem trilhões de células dos nossos organismos. Sem dúvida, trata-se de algo real, dotado de uma massa – cerca de 200 gramas – e de uma forma – a famosa dupla-hélice. É desta concretude que eu parto para afirmar minha percepção européia e individualista sobre o tema, formada no respeito aos princípios da propriedade privada: da mesma maneira que eu poderia, eventualmente, vender meu rim a uma organização ligada ao tráfico de órgãos ou doá-lo para um familiar, o DNA do meu corpo também me pertence.
Entretanto, mesmo que eu optasse por comercializar meu conteúdo genético, não saberia quanto ele vale. Isso porque ignoro completamente o que meu DNA contém. E, ainda que conhecesse sua seqüência, precisaria da ajuda de um especialista para compreender alguma coisa. O mesmo acontece toda vez que nos separamos de um bem quase desconhecido, tal como um livro escrito numa língua estranha ou as bobinas de um filme impossível de ser visto: temos dificuldades em atribuir-lhes valor. Claro, sempre podemos usar o “truque” de um vendedor numa feira de bricabraque, que para não avaliar de maneira distorcida as mercadorias sobre as quais não têm nenhum conhecimento, tenta medir com maior precisão o perfil do comprador. Se este for bem vestido, vier de longe ou estiver acompanhado de um perito, o feirante pode razoavelmente supor que o bem cobiçado tem grande valor, e comprá-lo ou vendê-lo de maneira mais segura. No caso do DNA, as coisas funcionam mais ou menos da mesma forma. Só que os compradores podem ser pesquisadores que se deslocam até lugares remotos do planeta para coletar o código genético de certas populações humanas; ou funcionários de seguradoras norte-americanas, que andam sempre bem vestidos e à procura de uma seqüência portadora de alguma doença prejudicial à saúde financeira da companhia; e até mesmo a polícia, que investe quantias consideráveis na constituição de bancos de dados. Todos são grandes negociantes em potencial.
Podemos pensar que eles estão agindo movidos por um interesse geral, mas nada garante isso. Os geneticistas que solicitam uma amostragem do nosso DNA justificam em geral seu pedido apresentando razões científicas, que englobam as necessidades da pesquisa médica aplicada a patologias supostamente hereditárias. Conhecendo-se os vínculos genealógicos que unem certos indivíduos acometidos de uma mesma doença, pode-se determinar se esta é genética e identificar o fragmento de DNA responsável pelas disfunções. Em tal contexto, o interesse pessoal dos pesquisadores e seu desejo eventual de galgar degraus na carreira parecem irrisórios, se comparados ao bem que farão aos enfermos e à sociedade como um todo, que arca com os custos dos seus tratamentos. Neste caso, é bastante compreensível ceder seu DNA sem receber em troca qualquer compensação financeira. Isso se o geneticista estiver trabalhando para um hospital ou um centro público de pesquisas. Caso ele atue servindo uma companhia privada cujo lucro vem, em parte, das pesquisas médicas, é plausível questionar se a prestação de serviços proporcionada para os doentes e a sociedade será mesmo efetuada de maneira tão desinteressada quanto a doação da amostragem de DNA.
Na Islândia, colonizada pelos vikings, e nas Ilhas Norfolk, cuja população originou-se de um motim no mar, exemplos de populações consangüíneas que atraem pesquisas
Além disso, os cientistas interessados na pesquisa do código genético solicitam contribuições não apenas de indivíduos, mas também de coletividades. E até mesmo de países inteiros. Os vikings, por exemplo, que colonizaram a Islândia a partir do século 9, deixaram como herança uma tradição administrativa robusta o suficiente para que a genealogia da ilha estivesse quase integralmente disponível e remontasse a épocas muito distantes. Relativamente isolados por razões geográficas, os islandeses formam uma população homogênea, o que fez com que seu país fosse o lugar ideal para uma pesquisa sobre eventuais causas genéticas de doenças: nesse território, os vínculos de consangüinidade que existem entre dois doentes podem ser determinados com facilidade. Esta condição favorável não passou despercebida pelo grupo farmacêutico Hoffman-La Roche, que propôs ao governo, por intermédio da sociedade deCODE Genetics, a seguinte troca: o Estado forneceria o acesso aos dados médicos dos islandeses e, caso conseguissem desenvolver tratamentos, estes seriam disponibilizados gratuitamente para a população inteira.
Apesar da violação da vida privada que caracterizava esta operação, perpetrada por uma sociedade comercial, o Parlamento islandês decidiu, em 1998, centralizar o conjunto dos dossiês médicos da população, além das árvores genealógicas, e autorizar seu acesso exclusivo à deCODE Genetics para que os pesquisadores pudessem confrontar esses elementos com os dados genéticos coletados. Dessa forma, o DNA dos cidadãos islandeses adquiriu o status de uma espécie de propriedade coletiva, da qual os representantes legais – os parlamentares – puderam dispor, trocando-a pelos benefícios médicos pretendidos pelo grupo Hoffmann-La Roche. E não se tratava de um “empréstimo temporário”, conforme alguns dos participantes haviam acreditado, mas sim de uma cessão definitiva que não lhes dava direito algum de interferirem no curso dos eventos. Assim, um doador voluntário que decidisse voltar atrás e se retirar do acordo não tinha chance alguma de ganhar a causa. O registro da sua seqüência de DNA não seria apagado do banco de dados.
Aos olhos de um geneticista, os habitantes da ilha de Norfolk apresentam um interesse comparável aos islandeses. Situado entre a Nova Zelândia e a Austrália, este território dispõe de um governo autônomo, ainda que dependente de Camberra. Seus moradores descendem, em grande parte, dos amotinados da fragata inglesa HMS Bounty: em 1789, conforme bem mostra um célebre filme com Marlon Brando, vários marinheiros e um oficial revoltaram-se contra o terrível capitão William Bligh e se apoderam do navio. Bligh e seus seguidores foram abandonados numa chalupa no meio do Pacífico e depois de oito mil quilômetros navegando conseguiram alcançar a ilha de Timor. Já os amotinados, depois de um périplo pelo Tahiti, conheceram um destino mais difícil: caíram nas mãos da justiça inglesa. Apenas nove conseguiram escapar e se instalaram, acompanhados das suas mulheres polinésias, na obscura ilha de Pitcairn, onde fundaram uma comunidade. O grupo, cuja presença foi detectada pelos ingleses em 1808, foi abandonado à sua sorte. A situação permaneceu a mesma até 1856, quando a colônia foi deslocada para uma ilha maior e mais acessível, Norfolk.
Instituições como a Unesco e a OCDE tentam definir recomendações para que as pesquisas e coletas sejam realizadas de maneira aceitável do ponto de vista ético
Em 1999, 143 anos depois, eu ainda era um estudante à procura de um assunto para a sua tese e escrevi para o governo de Norfolk solicitando autorização para estudar o DNA dos ilhéus. Assim como na Islândia e também devido ao seu processo de colonização, existe une genealogia exaustiva da população. Oito meses mais tarde, o ministro da Saúde respondeu negativamente. A sua carta acrescentava que uma série de questões sensíveis, tais como as da propriedade da informação obtida, do seu controle e do respeito pela vida privada, além do temor de que os habitantes sejam considerados cobaias, havia motivado esta decisão da Assembléia Legislativa. Além de tudo, ele me proibiu de empreender demais contatos com os ilhéus, qualquer que fosse o motivo. Ou seja, os temores que haviam sido ignorados pela votação islandesa foram reconhecidos como legítimos em Norfolk. Legitimidade esta que desmoronou um ano mais tarde quando, sempre em nome do povo, a Assembléia Legislativa da ilha emitiu um parecer favorável à proposta da pesquisadora Lyn Griffiths, da universidade australiana Griffith. Seu projeto comportava um programa de saúde pública praticamente idêntico ao da Islândia. Tanto num caso como no outro, as duas assembléias pareceram agir em nome de um interesse geral do qual elas se consideravam depositárias.
Às margens da pesquisa médica, outras disciplinas estão envolvidas na coleta de DNA, como os estudos antropológicos que se focalizam na compreensão da história genética das populações humanas. Este campo, que se aparenta à arqueologia ou à paleontologia no que diz respeito às suas motivações científicas, em geral escapa das decisões governamentais, pois seus avanços não são tão relevantes quanto os proporcionados por áreas com a saúde pública. Por isso, estes outros pesquisadores preferem negociar diretamente com dirigentes locais – prefeitos, diretores de hospital ou chefes de aldeia – as condições do seu acesso à população. Uma vez que a questão científica foi debatida à exaustão e que essas pessoas chegam a um acordo em relação à relevância do estudo, os pesquisadores começam a convencer os possíveis doadores voluntários de DNA.
Instituições tais como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), ou a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), tentaram definir recomendações para que essas operações sejam realizadas de maneira aceitável do ponto de vista ético. Tudo se baseia na assinatura de um acordo, por meio do qual cada doador aceita ceder uma amostragem do seu DNA após o acesso a uma série de informações. Mas este ato não confere ao pesquisador, em teoria, o direito de operar cruzamentos dos resultados dos testes genéticos com informações individuais provenientes de outras fontes, eventualmente disponíveis em outros lugares. Ele teria que obter um novo consentimento para utilizar os dados já estocados. Além disso, as amostragens são anônimas e devem ser supostamente destruídas ao final das experiências.
Certos cidadãos bascos conferiram conteúdo político à especificidade genética que parece caracterizá-los. O Bene Israel, uma comunidade judaica da Índia, também
No quadro desta genética “antropológica” o peso das decisões individuais parece ser mais importante. Em relação à pesquisa médica, no entanto, a escala se altera: a genética das populações estuda grupos humanos de dimensão mais reduzida do que a dos habitantes de uma ilha ou de um país. Quando os objetivos almejados são corretamente explicados, torna-se claro para os doadores que o seu DNA poderia conter uma mensagem que será significativa no plano da comunidade. A informação genética é então considerada patrimônio comum, da mesma forma que uma tradição musical, artística ou culinária, conforme mostram as reações suscitadas pelos resultados de pesquisas locais.
Certos cidadãos bascos, por exemplo, conferiram um conteúdo político à especificidade genética que parece caracterizá-los. Da mesma forma, os integrantes da Bene Israel, uma comunidade judaica da Índia, associaram um conteúdo religioso aos testes genéticos que haviam demonstrado a similaridade do seu DNA com o de populações do Oriente Médio. Com essa similitude, eles viam as suas tradições serem confirmadas. Ao mesmo tempo, enquanto as análises genéticas parecem poder reforçar a identidade de um grupo, elas podem também vir a questioná-la ou apontar certas ressalvas. Este foi o caso de uma pesquisa sobre os caracalpaques, habitantes do Caracalpaquistão (região do Uzbequistão), que não conseguiu estabelecer nenhum embasamento genético próprio destas tribos, embora cada uma delas reivindicasse ser descendente de um ancestral único.
Resta definir até que ponto o DNA pode ser percebido como coletivo pelo próprio grupo interessado, uma questão diferente daquela do direito de uma assembléia legislativa de autorizar ou não o acesso a ele. Geneticamente falando, um grupo de pessoas possui um DNA tanto mais “coletivo” – ou seja, que apresenta fortes similitudes entre indivíduos nas seqüências que comportam as variações genéticas humanas – quanto os seus membros são consangüíneos. Embora esta noção faça sentido no plano familiar, ela se torna imprecisa à medida que o círculo se amplia e se complica ao sofrer interferências de fatores lingüísticos e religiosos. Não foi por acaso que as decisões tomadas pelas assembléias de Norfolk e da Islândia diziam respeito a duas comunidades isoladas e integradas: debates desta natureza passam a se focalizar na identidade do grupo e na legitimidade atribuída aos seus representantes.
Pesquisa ou intimidação? Na França, militantes anti-transgênicos militantes que destruíram uma plantação de milho transgênico foram submetidos à coleta do seu DNA
Entre os interesses coletivos que justificam uma coleta em grande escala de DNA estão as questões relativas à segurança, que ocupam um espaço importante. Na França, as forças da ordem estão autorizadas a colher o código genético de indivíduos detidos, no âmbito dos seus inquéritos. Este direito resultou na criação, em 1998, do Fichier National Automatisé des Empreintes Génétiques (FNAEG – Arquivo Nacional Automatizado das Impressões Genéticas), que fora concebido inicialmente para colher as impressões genéticas apenas de autores de crimes sexuais em crianças. De 2001 a 2007, seis substitutivos ampliaram o seu alcance para outras infrações, como a destruição ou a deterioração de bens [1]. Com base nessas novas disposições legais, militantes anti-OGM (organismos geneticamente modificados) que destruíram uma plantação de milho transgênico foram submetidos à coleta do seu DNA. Os que se recusaram viram-se obrigados a pagar uma multa de 15 mil euros (cerca de 40 mil reais), eventualmente acrescida de uma pena de um ano de prisão.
Os arquivos do FNAEG dizem respeito tanto aos condenados quanto a pessoas processadas e mais tarde inocentadas. Neste último caso, a lei prevê a possibilidade de exclusão da ficha, solicitado por meio de um requerimento perante o procurador da República. Mas o pedido não obtém ganho de causa automático e, além de tudo, o requerente não dispõe de meio algum para verificar se sua solicitação foi realmente cumprida. Com a entrada em vigor da lei sobre a segurança interna do território, de 2003, a decisão de proceder a uma coleta de DNA deixa de ser da alçada exclusiva do ministério público: a polícia pode também decidir sobre a questão. Além disso, os textos legais não determinam atualmente nenhum limite de idade para os alvos da coleta.
No começo de 2008, o FNAEG continha cerca de 717 mil fichas e seguia inchando, no ritmo de 30 mil novos perfis por mês [2]. Elas serão conservadas durante 40 anos no caso dos condenados, e por 25 anos nos de todas as outras pessoas fichadas. Este número elevado de informações resulta, em parte, do fichamento retroativo: uma pessoa que foi encarcerada por conta de fatos que, no momento em que foram cometidos, não eram enquadrados pela lei e não justificavam uma coleta, pode ter seu DNA requerido se a lei tiver sido alterada nesse meio-tempo. Não muda nada o fato do caso já ter sido julgado e de a coleta não representar outro interesse senão o de fichar o indivíduo. Em caso de recusa, a justiça sabe se mostrar convincente: as sanções por insubmissão aos testes de DNA prevêem a anulação das reduções de eventuais penas.
Em 2004, um matemático alemão demonstrou a falta de confiabilidade dos retratos falados elaborados pelo FBI nos Estados Unidos, a partir de um banco de dados genético
Este quadro coercitivo mostra que nós não podemos dispor como bem entendemos do nosso genoma. Por enquanto, a lei não autoriza (ainda) a coleta por meio da força. Contudo, ela admite que a polícia use algumas artimanhas que tornam o primeiro método desnecessário: um pequeno lenço, uma bituca de cigarro ou um fio de cabelo contêm DNA em quantidade suficiente para se obter uma impressão genética. A tendência, que já despontava com a pesquisa médica e com a genética das populações, se confirma na chamada luta contra o crime: o DNA é considerado como uma propriedade coletiva administrada pelos governantes de cada país. Não só o nosso DNA não nos pertence verdadeiramente, como ele não vale mais do que 15 mil euros, no melhor dos casos.
Desde a sua criação, a eficiência dos serviços franceses de identificação judiciária não parou de progredir. Ao que tudo indica, eles deverão lançar mão de uma utilização cada vez mais maciça do DNA – mesmo em casos que não estejam enquadrados pelo direito penal, como já ocorreu. Aos olhos do ministério do Interior, o DNA não passa de uma extensão das impressões digitais, mais confiável e poderosa. Seria o caso de se esperar das autoridades que elas empreendam uma reflexão científica, ética ou filosófica sobre a diferença entre as duas? Ou de temer que o DNA de uma prova de delito também seja utilizado para elaborar o “retrato falado genético” de um suspeito procurado (proveniência geográfica possível, origem étnica potencial), e não apenas para se assegurar de que um indiciado possui efetivamente um DNA idêntico àquele encontrado na cena do crime? Esta prática é oficialmente proibida na França, porém legal nos Estados Unidos. Se ela se generalizar, poderá provocar erros judiciários em grande escala, concentrando as investigações em pessoas consideradas potencialmente culpadas de um delito, por “terem um semblante genético suspeito”.
Em 2004, o matemático alemão Hans Jurgen Bandelt demonstrou a falta de confiabilidade dos retratos falados elaborados nos Estados Unidos pelo Federal Bureau of Investigação (FBI) a partir de um banco de dados genético [Bandelt et al., “Problems in FBI mtDNA Database”, Science, Washington, 2004. ]. Aliás, o próprio princípio da elaboração de perfis a partir de dados genéticos apresenta problemas. Em 1997, a análise do DNA de um grande número de pessoas cujo sobrenome era “Cohen” identificava um marcador genético que parecia ser característico de todas elas [3]. Alguns círculos religiosos viram nisso a confirmação científica de uma narrativa tradicional que identifica os Cohen como sendo os descendentes de uma casta de sacerdotes judeus chamada Cohanim. Contudo, pesquisas realizadas posteriormente apontaram que o tal marcador também era encontrado, em uma freqüência análoga, em populações orientais tais como os iemenitas, além de beduínos do deserto, os quais não tinham vínculo algum com os Cohanim.
Imaginemos agora que um crime tenha sido cometido em Nova York por um beduíno que tivesse se radicado nos Estados Unidos e que os investigadores resolvam estabelecer o perfil dos suspeitos por meio de testes de DNA. Se estudos mais aprofundados não tivessem sido conduzidos a respeito do marcador “Cohen”, a polícia concentraria em vão o seu inquérito no contexto da comunidade judaica mais próxima do local do crime.
[1] Artigo 29 da lei francesa de 18 de março de 2003, sobre a segurança interna do território.
Nenhum comentário:
Postar um comentário