viomundo - publicado em 17 de julho de 2013 às 10:29
Yasuyoshi Chiba/AFP: PM atira em manifestantes em Fortaleza
É a conjuntura, estúpido
por José Arbex Jr., especial para o Viomundo
“Seria mais fácil explicar os protestos quando eles ocorrem em países
não democráticos, como no Egito e na Tunísia, em 2011, ou em países
onde a crise econômica elevou a índices assustadores o número de jovens
desempregados, como na Espanha e na Grécia, do que quando eles ocorrem
em países com governos populares e democráticos – como no Brasil, que
atualmente exibe os menores índices de desemprego de sua história e uma
expansão sem paralelo dos direitos econômicos e sociais. Muitos
analistas atribuem os recentes protestos à rejeição da política. Creio
ser precisamente o contrário: eles refletem o desejo de ampliar o
alcance da democracia, de encorajar as pessoas a participarem de uma
maneira mais plena.”
O diagnóstico é feito pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em artigo de sua autoria, publicado no jornal estadunidense The New York Times (clique aqui para ler), em 16 de julho. Lula está certo. Os jovens que tomaram as ruas querem mais do que aquilo que já têm.
O desejo se reflete na palavra de ordem “queremos escolas (e
hospitais, postos de saúde, serviços públicos) com padrão Fifa”. A
alusão à Fifa não é um aspecto secundário das manifestações.
Ao contrário: mostra que, no Brasil contemporâneo, o próprio circo
pegou fogo. Estamos a um milhão de anos luz do inglório 1970, quando a
conquista do tricampeonato mundial deu fôlego à ditadura em sua fase
mais sangrenta, sob as botas do general Emílio Garrastazu Médici.
Embalados pelos inestimáveis serviços prestados ao regime pela Rede
Globo, os brasileiros cantavam o hino oficioso “90 milhões em ação / pra
frente Brasil / do meu coração”, enquanto agentes da ditadura
torturavam e assassinavam nos presídios oficiais e nas masmorras
clandestinas.
Já não é assim. “Fifa”, hoje, virou sinônimo de imperialismo, e “Copa
do Mundo” de corrupção, mamata e desperdício do dinheiro público.
Não por acaso, as sedes da Globo em São Paulo e no Rio foram objeto de repúdio dos manifestantes.
Mesmo Pelé teve que vir a público explicar que sua majestade nada
tinha contra as “jornadas de junho”, após o seu apelo patético, gravado
em vídeo, para que todos esquecessem as manifestações e apoiassem a
seleção, durante a Copa das Confederações.
“Pelé calado é um poeta”, respondeu o ex-jogador e atual deputado
federal Romário, que denuncia a imensa farra com o erário possibilitada
pela Copa de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016.
Os tempos, pois, são outros. Um claro sinal disso é dado pela
seguinte comparação: em 1995, a heroica greve dos trabalhadores
brasileiros do petróleo, iniciada em 3 de maio, morreu
melancolicamente, 32 dias depois, sem ter logrado atrair a solidariedade
ativa do movimento sindical e da sociedade, abrindo o caminho para
Fernando Henrique “Thatcher” Cardoso impor todas as reformas que
pretendia ao mundo do trabalho; quase exatos 18 anos depois, no início
de junho, um pequeno grupo intitulado Movimento pelo Passe Livre,
convoca atos para protestar contra o aumento de 20 centavos no preço do
transporte urbano, em algumas das principais cidades do país, para
detonar um movimento que acabaria levando pelo menos 2 milhões às ruas. É
isso que deve ser explicado: porque, em 1995, o movimento iniciado por
uma das mais poderosas e organizadas categorias do país foi incapaz de
atrair as simpatias da população, ao passo que, em 2013, o MPL incendiou
o Brasil.
A resposta está na conjuntura. Não está na vontade dos dirigentes
partidários, sindicais, dos movimentos sociais e nem mesmo do MPL – que
foram tão pegos de surpresa quanto qualquer outro cidadão. Não está em
manobras e articulações palacianas, nem da “direita” nem da “esquerda”.
Está no conjunto complexo, contraditório, profundo e extremamente
poderoso que constitui o tecido das relações econômicas, sociais,
políticas, ideológicas, sociais e morais de uma determinada época.
Não é só no Brasil que isso acontece, é óbvio. Dificilmente o
vendedor ambulante tunisiano Ahmed Buazizi teria consciência de que ao
atear fogo ao próprio corpo, em 17 de dezembro de 2010, estaria com isso
incendiando o Oriente Médio.
Quantos Bouazizis fizeram gestos extremados, antes dele, sem com isso
causar o menor distúrbio social? Porque justamente aquele gestou
produziu a assim chamada “primavera árabe”? A resposta está na
conjuntura.
A revolucionária Rosa Luxemburgo notou isso, ao comparar uma greve
espontânea, organizada pelos trabalhadores de Batumi, na Geórgia
(situada no Cáucaso), em 1902, com movimentos liderados, na mesma época,
pelas poderosas centrais sindicais social-democratas na Alemanha: a
greve dos trabalhadores de Batumi acabou desembocando, três anos depois,
no Soviete de São Petersburgo, um dos grandes impulsionadores da
Revolução Bolchevique de 1917; os movimentos na Alemanha mal foram
notados.
Novamente: o que faz com que uma greve espontânea, numa região tão
secundaria, do ponto de vista econômico, acabe sendo o motor de uma das
mais importantes revoluções da história, enquanto movimentos operários
organizados num país central para a economia capitalista não surta
grandes efeitos? A própria Rosa explica: a resposta está na conjuntura.
Lula está certo, ao dizer que a juventude quer mais. O Programa Bolsa
Família, o aumento real do salário mínimo, os programas de inclusão
social (como o Luz para Todos), na esfera da educação (como o Prouni) e o
da casa própria (Minha Casa Minha Vida) colocaram milhões de
brasileiros na esfera do consumo, a qual foi artificialmente ampliada ao
máximo com a concessão de créditos fáceis aos consumidores.
Milhões e milhões de brasileiros, antes relegados às margens do
sistema econômico, agora aprenderam, com os mais variados graus de
consciência ou intuição, que não têm que se conformar com a precariedade
do sistema público de educação e saúde; que a corrupção pode e deve ser
punida; que o sistema de transporte público é entregue a empresas
privadas, embora fartamente subsidiado pelos impostos que todos pagam;
que não há dinheiro para a segurança, para as escolas e para a saúde,
mas há para imensos estádios de futebol.
O que Lula não diz em seu artigo é que boa parte dos problemas que
hoje afligem a população brasileira também é resultado das políticas
adotadas pelo seu governo e mantidas por aquela que preenche os
contornos de seu espectro refratado no Planalto, a senhora Dilma
Rousseff.
Lula não diz, por exemplo, que o programa Bolsa Família equivale a
escassos 10% do total dos juros da dívida pública anualmente pagos ao
capital financeiro; que os investimentos feitos pelo governo federal em
educação e saúde são um dos menores do mundo, quando comparados ao PIB;
que o governo adotou uma política irresponsável de promover o
crescimento econômico com base no endividamento das famílias, que hoje
enfrentam o fantasma da inadimplência; que, ideologicamente, o lulismo
privilegiou uma concepção neoliberal que confunde “progresso social” com
“enriquecimento dos indivíduos”, assim criando um abismo intransponível
entre o eventual maior bem-estar que cada família passou a experimentar
da porta de sua casa para dentro e o desastre absoluto verificado da
porta para fora (insegurança, medo, poluição, caos urbano, guerras entre
gangues, etc.); e que o”lulismo” transformou o PT e a CUT, símbolos das
esperanças que mobilizaram milhões de brasileiros no final dos anos 70,
em condutos forçados de negociatas do mercado persa chamado Congresso
Nacional.
O Brasil chegou a um ponto de basta. Esse “ponto de basta” apenas
aparentemente se apresenta como que do nada, uma espécie de raio em céu
azul.
Ele vem se anunciando há tempos, embora só retrospectivamente os
sinais ganhem visibilidade adequada: no elevado índice de abstenção e
voto nulo nas eleições de 2010; em revoltas explosivas, como a ocorrida
no canteiro de obras na usina de Jirau (Amazônia), em março de 1911; nas
inúmeras greves do funcionalismo público, nas revoltas em bairros da
periferia, na longa paralisação que envolveu quase 100% das
universidades federais em 2012, seguida pela greve dos professores do
ensino municipal e estadual durante os primeiros meses de 2013.
Ninguém aguenta mais o inferno em que se transformou a vida nas
grandes cidades, o espetáculo perdulário dos gastos públicos com a Copa,
o descaso das autoridades com as pessoas que, diariamente, morrem ou
padecem nas filas do SUS.
É esse sentimento de basta que explica aquilo que, de outra maneira,
permaneceria incompreensível: quanto mais a polícia usa da violência,
mais as pessoas vão às ruas. Seria de se esperar o oposto.
De fato, a polícia também foi surpreendida pela decisão da população.
Ao contrário do que sempre aconteceu, a violência, por si só,
mostrou-se incapaz de conter ou impedir os protestos. Trata-se de uma
situação conjuntural em que os “de cima” – a burguesia e os seus
representantes – já não conseguem governar como sempre governaram, ao
passo que os “de baixo” – os trabalhadores, a juventude, a maioria da
nação – já não suportam mais viver como sempre viveram.
Vladimir Ilitch Lênin assim descreve uma conjuntura que pode desembocar numa crise revolucionária.
Não se trata, aqui, de fazer futurologia. Potencialmente, o Brasil
vive hoje uma situação conjuntural que pode desembocar numa crise
revolucionária.
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Isso aconteceu, por exemplo, na Argentina, no começo do século,
quando os trabalhadores e a população expulsaram o presidente Fernando
de La Rúa e sucedâneos a pontapés da Casa Rosada, aos gritos de “que se
vayan todos”; e tudo para acabarem, melancolicamente, elegendo o
peronista Néstor Kirchner, que ainda teve tempo de conduzir a sua
mulher, a inefável Cristina, à chefia da Casa Rosada, antes de morrer.
O que acontecerá no Brasil? É claro que ninguém sabe. Mas é uma
questão que preocupa, pelas dimensões que o país ocupa no cenário
mundial.
O Brasil ostenta o 7º maior PIB do planeta (2,5 trilhões de dólares),
é um dos pilares dos BRICs e peça importante de um edifício econômico
cujas bases estão solapadas pela crise que se arrasta desde 2007.
Do ponto de vista do capital financeiro mundial, a conjuntura ideal
seria aquela que lhe permitisse manter taxas de lucro astronômicas no
Brasil (como as exibidas pelos bancos), numa situação de “ordem” e
estabilidade social.
Se uma pequena ilhota como o Chipre (PIB de 25 bilhões) foi capaz de
colocar o mundo em polvorosa – tamanha a fragilidade da Zona do Euro -,
imagine o que acontecerá se o “gigante” começar a dar passos de anão.
Mas rimar paraíso financeiro com ordem social não será mais possível
no Brasil. O capital não pode abrir mão da taxa de lucros, ainda que
isso signifique pressionar o governo para arrancar da população as
poucas conquistas sociais já alcançadas (por exemplo, com investimentos
ainda menores nos setores de educação e saúde, para assegurar a
remuneração do capital, por meio do superávit primário).
Dilma está entre a cruz e a espada. Para atender ao capital, terá que
enfrentar a população nas ruas; para atender às demandas da população,
terá que romper, ou pelo menos resistir ao capital.
Os prazos são cada vez mais curtos, como mostra a valorização
crescente do dólar (mais de 10% em dois meses), e com ela o preço do
petróleo importado, dos insumos agrícolas e das máquinas que empregam
tecnologia de ponta, com todas as consequências para a vida.
Até quando o governo federal conseguirá manobrar para impedir que a população sinta em cheio os efeitos da crise econômica?
Dilma procura “enquadrar” o movimento das ruas, canalizando as
energias para as vias institucionais, configuradas pelas propostas de
Constituinte (que teve curtíssima vida) e de plebiscito sobre a reforma
política (incapaz, até o momento, de agregar um núcleo capaz de lhe dar
forma concreta e eficaz).
Claro que a “oposição de direita” (aqui entendida como os patéticos
senhores agregados no PSDB e redondezas) tenta bombardear qualquer
proposta oriunda do Planalto.
A “esquerda”, ou o que sobrou dela, agrupada principalmente no PSOL, mostra-se impotente para apontar alternativas.
Todos os partidos estão de olho nas eleições presidenciais de 2014, e
jogarão as suas fichas para colher os máximos de dividendos da crise.
A “direita”, que nada tem a propor, tenta alimentar a erosão da base
governista, ao passo que faz o elogio da “ordem” nas manifestações
(novamente, a Rede Globo, secundada por emissoras de menor importância, é
providencial na tarefa de criar um consenso nacional segundo a qual só
é legítima a manifestação que respeita estritamente os limites da
propriedade privada e o respeito supersticioso à “autoridade
constituída”).
A mediocridade da oposição “de direita” e a impotência da “esquerda”
ainda dão fôlego ao governo Dilma, que, claramente, oscila ao sabor dos
acontecimentos.
Lula acompanha à distância a evolução da conjuntura. Assiste de camarote à “fritura” de Dilma.
Não por acaso, escolheu o NYT, porta-voz do
establishment financeiro liberal dos Estados Unidos, para dar o seu
recado: ele ainda faz parte do jogo, ainda é capaz de mover as peças,
ainda pode ser o Bonaparte que surge a cavalo, no alto do Planalto, para
tentar recompor a confiança da juventude e dos trabalhadores na forma
partidária da representação política.
Em seu artigo, ele acena com a necessidade de uma “transformação profunda do PT”.
O que isso significa, talvez nem o próprio Lula saiba. Ainda.
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