O que está em jogo no México . Um artigo de Enrique Krauze
"O México é um país ao mesmo tempo pré-moderno, moderno, antimoderno e pós-moderno. Esta situação pode ter certas vantagens, como bem sabem os que apreciam o mosaico cultural do México, mas às vezes pode ser não apenas difícil, mas explosiva", escreve Enrique Krauze, sociólogo mexicano em artigo publicado no Washington Post, El País, 28-11-2006 e hoje, 29-11-2006, no jornal Estado de S. Paulo. O intelectual mexicano, conforme os leitores das Notícias Diárias devem se lembrar, apoiou a candidatura de Felipe Calderón em entrevista e artigos aqui publicados.
"O México é um país ao mesmo tempo pré-moderno, moderno, antimoderno e pós-moderno. Esta situação pode ter certas vantagens, como bem sabem os que apreciam o mosaico cultural do México, mas às vezes pode ser não apenas difícil, mas explosiva", escreve Enrique Krauze, sociólogo mexicano em artigo publicado no Washington Post, El País, 28-11-2006 e hoje, 29-11-2006, no jornal Estado de S. Paulo. O intelectual mexicano, conforme os leitores das Notícias Diárias devem se lembrar, apoiou a candidatura de Felipe Calderón em entrevista e artigos aqui publicados.
Eis o artigo.
" México é um país ao mesmo tempo pré-moderno, moderno, antimoderno e pós-moderno. Esta situação pode ter certas vantagens, como bem sabem os que apreciam o mosaico cultural do México, mas às vezes pode ser não apenas difícil, mas explosiva.
Na segunda-feira da semana passada (aniversário do início da Revolução Mexicana de 1910, que durou dez anos e custou 1 milhão de vidas), a política moderna do México foi silenciada por uma aliança entre os pré-modernos e os antimodernos, num espetáculo pós-moderno que pode levar à revolta social generalizada e tem impedido o progresso democrático do país. Andrés Manuel López Obrador - o caudilho carismático que acredita ser o Messias encarnado do México - reuniu seus fiéis para sua consagração como o “presidente legítimo” do país.
Embora tenha perdido muito apoio por causa de seu comportamento pós-eleitoral, López Obrador ainda controla várias organizações que se mostram capazes de paralisar parte da Cidade do México com manifestações e ocupações. São sindicatos de funcionários públicos, mascates da economia informal, taxistas não oficiais e centenas de grupos radicais. De onde eles tiram seu dinheiro? Até agora, foram suficientes as fontes orçamentárias do Distrito Federal da Cidade do México, administradas segundo os critérios do Partido Revolucionário Democrático (PRD), de López Obrador, conforme ensinou seu irmão mais velho, o Partido Revolucionário Institucional (PRI). Estes grupos misturam-se a movimentos militantes antimodernos, que não são exatamente forças de guerrilha, mas representam uma espécie de “revolução suave”.
É uma mobilização de contingentes assalariados que não só vai pressionar o novo presidente, Felipe Calderón, e seu gabinete, como também tentará atrapalhar o dia-a-dia dos moradores das regiões mais sensíveis do país. O pretexto será uma suposta “resistência pacífica” contra a “usurpação” que muitas pessoas ainda acreditam ter ocorrido na acirrada eleição de julho, mas que López Obrador e seu partido (que obteve vitórias impressionantes no Congresso) não conseguiram provar nos tribunais.
Esta revolução suave é inimiga da vida democrática e poderá até mesmo transformar em letra morta as leis eventualmente aprovadas pelo Congresso Nacional. Se o PRI (a terceira força, que funciona como contrapeso na balança do Congresso) decidir apoiar Calderón e seu Partido Ação Nacional (PAN) nas reformas necessárias para a criação de empregos, os militantes de López Obrador ainda serão capazes de boicotá-las saindo às ruas para bloquear o trânsito e atrapalhar o comércio. Na versão mais extrema, eles poderiam tentar repetir o que vem ocorrendo há seis meses em Oaxaca, onde um grupo revolucionário de professores, infiltrado pelas forças guerrilheiras residuais que sempre existiram nas montanhas do sul do México, reencena em pequena escala o roteiro da Revolução Cultural de Mao Tsé-tung.
Há a alternativa do uso restrito e legítimo da força pública, mas este ponto é extremamente delicado no México, graças ao trauma do massacre de estudantes de 1968. Assim, o objetivo do movimento de López Obrador será tornar o país ingovernável e obter a eventual renúncia de Felipe Calderón. Seu sucesso é improvável, mas não impossível.
Parte da solução desta delicada situação está nas mãos do presidente Calderón. Caso mostre rapidamente ser o líder que seu antecessor, Vicente Fox, não pôde ou não quis ser, Calderón conseguirá remover a sombra da ilegitimidade e estabelecer a base para um governo estável. Ele precisa de um gabinete capaz, que adote medidas nas áreas mais sensíveis (segurança, emprego, corrupção). Calderón parece um político inteligente, tem experiência parlamentar e prioridades claras.
Mas estou convencido de que o tão necessário consenso depende de outras coisas além dele.
Neste aspecto, a esquerda tem a maior responsabilidade, especialmente aquela parte da esquerda com ligações com o PRD nos governos do Distrito Federal e de vários Estados, os deputados e senadores e uma multidão de jornalistas, acadêmicos e intelectuais. Estas pessoas precisam se distanciar do caudilho e modernizar sua plataforma ideológica nos moldes da social-democracia européia.
Existem precedentes para esse tipo de transformação. Na Espanha, quando chegou ao poder, em 1978, Felipe González renunciou ao dogma marxista e abraçou a economia de mercado, o que foi uma condição para o ingresso do país na Comunidade Européia e seu impressionante desenvolvimento obtido desde então. No Chile, o socialismo evoluiu para idéias modernas e governou num período de crescimento e bem-estar social impressionantes. Estas são duas reformas de grande sucesso, ambas contrárias ao anacrônico “socialismo do século 21” de Hugo Chávez e Fidel Castro. Contudo, na Espanha e no Chile, o processo de amadurecimento ocorreu depois de guerras civis e ditaduras. Seria uma tragédia se o México precisasse passar por esse inferno para que sua esquerda se modernizasse. Infelizmente, ao menos agora, a possibilidade de tal transformação parece remota. Uma vez eu disse que o último marxista da história morreria numa universidade latino-americana. Ainda acredito nisso.
O espetáculo pós-moderno ocorrido no centro histórico da Cidade do México é bizarro e agourento, mas também muito sério. Não se trata de um “gabinete de oposição” britânico, no qual políticos monitoram individualmente os vários setores do partido no poder. López Obrador diz que o poder pertence só a ele, em nome do povo. Ele leva a sério seus planos: forçar a renúncia de Calderón e tomar o poder por proclamação, aquele ritual do passado mexicano. O momento perfeito seria 2010, o centenário da revolução.
Se este cenário de pesadelo realmente se realizasse, as implicações para os EUA também seriam ameaçadoras: uma onda de refugiados que ofuscaria a atual migração ilegal, impulsionada pelo colapso da economia mexicana, pela fuga de capital e pela disseminação da violência no estilo de Oaxaca.
Os EUA devem lembrar que existe um país, não no Golfo Pérsico e sim no Golfo do México, que deu um passo gigantesco rumo à maturidade política ao adotar um sistema democrático no período de apenas uma geração - e o fez de um modo prático, sem experiência histórica. E devem encontrar maneiras palpáveis e diretas de apoiar a economia do México, assim como a União Européia apoiou a Espanha. Construir pontes, não muros. Trazer o México para a democracia é o mesmo que levar a democracia a toda a América Latina - um triunfo considerável no mundo de hoje e amanhã."
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