Adeus à classe média. Um artigo de Marcio Pochmann
"Não há espaço para a reprodução da classe média, que atualmente representa somente dois a cada dez brasileiros", escreve Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade de Campinas, em artigo publicado hoje, 30-11-2006, no jornal Valor. Segundo ele, "de todos os empregos gerados desde 2000, 90% são até dois salários mínimo mensais, ao mesmo tempo em que o Brasil lidera uma inédita redução do custo do trabalho em dólar no mundo".
"Não há espaço para a reprodução da classe média, que atualmente representa somente dois a cada dez brasileiros", escreve Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade de Campinas, em artigo publicado hoje, 30-11-2006, no jornal Valor. Segundo ele, "de todos os empregos gerados desde 2000, 90% são até dois salários mínimo mensais, ao mesmo tempo em que o Brasil lidera uma inédita redução do custo do trabalho em dólar no mundo".
Eis o artigo.
"No Brasil, o adensamento da classe média brasileira resulta do ciclo de industrialização e urbanização vigente entre as décadas de 1930 e 1970. Antes disso, o modo de ser da classe média, representado pela combinação entre elevado nível educacional, consumo conspícuo e emprego intermediário na estrutura ocupacional, era privilégio de somente um a cada 10 brasileiros. Com a dinâmica do desenvolvimento estabelecida fora do país, tendo em vista o predomínio do modelo primário-exportador, a riqueza gerada não dependia fundamentalmente do consumo interno, mas da demanda externa. Para manter-se competitivo na produção primária (alimento e matéria-prima), o Brasil abusou da monocultura e do uso intensivo de mão-de-obra mal paga. Tanto assim que várias medidas que foram compor a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943, já existiam desde o começo do século XX, eram letras mortas (ou para inglês ver, como se dizia à época).
A partir da vontade da Revolução de 30 de fazer o Brasil grande por meio do desenvolvimento do seu mercado interno, o rápido e sustentado crescimento econômico tornou possível a expansão do assalariamento formal, inclusive nos postos de trabalho de intermediárias da estrutura ocupacional de empresas públicas e privadas. Em menos de meio século, o patamar da classe média passou a ser de três a cada 10 brasileiros. Diante da significativa mudança na estratificação sócio-ocupacional do país, ganhou destaque o avanço no padrão de consumo de bens duráveis centrados na casa própria e no automóvel (além dos eletrodomésticos). Ademais, com a ampliação dos anos de estudo foi possível combinar com a postergação do ingresso dos jovens no mercado de trabalho, necessárias para permitir a ascender profissionalmente às vagas mais altas dos planos de cargos e salários.
Quando a classe média parecia viver o milagre da multiplicação entre as décadas de 1970 e 1980, o Brasil optou por transformar-se numa economia do "primeiro mundo". Romper com a produção das carroças automobilísticas foi um dos primeiros passos para a globalização do padrão de consumo e a desterritorialização da riqueza dos endinheirados (abertura da conta de capitais). Mas para isso, o modelo econômico centrado no mercado interno precisou ser revisto. Havia a possibilidade de uma inserção econômica pelo alto, fundada na produção de bens e serviços de maior valor agregado e alto conteúdo tecnológico, o que permitiria continuar reproduzindo postos de trabalho de classe média a partir da convergência entre a expansão da oferta e da demanda de mão-de-obra mais escolarizada e melhor remunerada. Mas isso seria complexo e mais difícil, pois passaria pela modernização democrática da economia, com a execução de reformas civilizadoras do capitalismo brasileiro (tributária, fundiária e social). Também seria necessário remodelar o Estado, com a reconstituição do aparelho produtivo justamente onde seria estratégico para alavancar o ciclo de crescimento econômico centrado nos bens e serviços tecnologicamente mais avançados. Ou seja, uma espécie de contra-corrente da tese da tecnoglobalização, que tem tornado os países pobres em meros compradores de tecnologia no mercado mundial.
Como se sabe, a opção escolhida não foi essa. Pelo contrário, preponderou, mais uma vez, a via da modernização autoritária, responsável pelo realinhamento da economia nacional à velha lógica patrimonial da financeirização da riqueza e da sofisticação da especialização produtiva redirecionada à exportação. As principais iniciativas, couberam, com sempre, ao Estado. Para sustentar o ciclo da financeirização da riqueza, os governos de plantão promoveram um enorme ajuste patrimonial em cima do setor público, a partir de duas medidas fundamentais.
A primeira referiu-se à transferência de cerca de 15% do Produto Interno Bruto a reduzidos grupos econômicos na forma de uma privatização selvagem, enquanto a segunda medida foi viabilizada no contínuo ajuste fiscal responsável pelo aumento da carga tributária em cima dos pobres (em mais de 12 pontos do PIB) e pela geração de superávit primário nas contas públicas a partir da despesa social. Dessa forma, tornou-se possível criar as condições necessárias para manter ativo um dos maiores programas de transferência de renda aos ricos financeirizados do país.
No caso da especialização produtiva voltada à geração de excedentes externos, várias também foram as medidas tomadas por conta do Estado. Uma delas refere-se à modalidade nacional de levar adiante a flexibilização do trabalho, responsável pela redução na participação da massa de rendimento do trabalho de 50% para 36% da renda nacional. De um lado, a liberalização da terceirização selvagem, que já responde por quase 40% do total da ocupação. A remuneração média dos empregos terceirizados encontra-se bem abaixo de um terço do padrão de salário decorrente do emprego diretamente contratado. De outro, a promoção da desregulamentação do modelo de contratação salarial por tempo indeterminado gerou o frankenstein da legislação social e trabalhista. São inúmeras leis responsáveis pela degradação do estatuto salarial no Brasil, cuja principal sinalização provêm da enorme diversificação contratual centrada nas diversas modalidades de trabalho autônomo (free-lancer, personalidade jurídica, consultoria, cooperativado, entre outros).
Tudo isso permitiu que fosse valorizado o esforço de tornar competitiva a economia nacional no comércio internacional. Como a base das exportações encontra-se fundada nos produtos intensivos em recursos naturais e mão-de-obra, não é desprezível considerar que o diferencial de competitividade imponha-se sobre a compressão do custo do trabalho, quando não na degradação ambiental. Nesse contexto, não há espaço para a reprodução da classe média, que atualmente representa somente dois a cada dez brasileiros. De todos os empregos gerados desde 2000, 90% são até dois salários mínimo mensais, ao mesmo tempo em que o Brasil lidera uma inédita redução do custo do trabalho em dólar no mundo.
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