"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 31/01/07

De volta para o futuro, A esquerda da América Latina. Artigo de José Luís Fiori

"A ira e o desencanto dos liberais de direita e de esquerda tem sua razão de ser. De repente tudo mudou, e o cenário ideológico latino-americano ficou diversificado e repleto de idéias e propostas. Podem dar certo ou errado, mas não há como impugná-las, como vem acontecendo, pelo simples fato de serem projetos antigos", escreve José Luís Fiori, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ, em artigo publicado hoje, 31-1-2007, no jornal Valor.

Segundo ele, "todos tem raízes profundas na história latino-americana e não se pode dizer que fracassaram, porque sempre foram interrompidos pelos golpes da direita liberal".

Eis o artigo.

"Chama a atenção a ira dos conservadores. Mas também chama a atenção o desconcerto e a crítica da esquerda ao comportamento e às posições dos novos presidentes sul-americanos, em particular da Venezuela, Bolívia e Equador. No caso dos conservadores, por razões óbvias, de interesse imediato, mas no caso da esquerda, por motivos menos explícitos e com argumentos mais sinuosos que, em geral, escondem um preconceito profundo contra estes novos líderes indígenas, sindicalistas ou soldados que não conhecem o manual das boas maneiras do "esquerdista perfeito". Quase todos estes intelectuais já gostaram dos personagens e enredos fantásticos de Alejo Carpentier, Garcia Marques e Vargas Llosa, mas muito poucos conseguem entender e se relacionar com o mundo real das sociedades hispano-indígenas e com seus líderes que não são iluministas, nem intelectuais de salão. De qualquer maneira, durante os primeiros anos todas as divergências e críticas pareciam reduzir-se a um problema de excentricidades pessoais. Até ali, os novos governos de esquerda da América do Sul pareciam condenados à mesmice, como se todos fossem prisioneiros perpétuos da "verdade científica" da economia neoclássica e da "modernidade inevitável" das reformas neoliberais.

A origem deste pesadelo é bem conhecida: na década de 90, as teses neoclássicas e as propostas neoliberais transformaram-se no senso comum dos governos e de uma boa parte da intelectualidade sul-americana. Foram os "anos dourados" das privatizações, da desregulação dos mercados e da crença no fim das fronteiras e na utopia da globalização. Mas, mesmo depois das derrotas dos neoliberais, os novos governos de esquerda, recém-eleitos, mantiveram o mesmo "modelo econômico". Eles não tinham objetivos estratégicos próprios e sua política econômica seguia sendo a mesma dos governos anteriores. Mas este quadro começou a mudar depois das nacionalizações do governo de Evo Morales. Num primeiro momento, pareciam medidas pontuais e indispensáveis à fragilidade fiscal do governo boliviano. Mas depois foi ficando claro que se tratava de uma ruptura mais profunda e estratégica com o passado neoliberal da Bolívia, e um anúncio do novo projeto de "socialismo do século XXI", que seria proposto, uns meses depois, pelo presidente Hugo Chavez, da Venezuela. E eis que de repente, não mais que de repente, acabou a mesmice e rompeu-se a "concertação por antagonismo" entre a "mão invisível" neoliberal, e a "esquerda pasmada". Goste-se ou não, foi assim que ressurgiu, na América do Sul, a palavra e o projeto socialista - e, depois disto, ao contrário do que muitos previam, a esquerda não se dividiu. Pelo contrário, clarificou a sua diversidade interna e explicitou a multiplicidade dos seus caminhos sul-americanos. Como se pode ver, por exemplo :

1) No caso do projeto "socioliberal", do governo chileno de Michelle Bachelet, que vem modificando gradualmente o modelo econômico ortodoxo das últimas décadas, mas ainda se mantém muito distante do projeto socialista do governo de Salvador Allende. Assim mesmo, é cada vez maior o seu parentesco com as políticas da Frente Popular, que governou o Chile entre 1936 e 1948 com o apoio dos socialistas, radicais e comunistas, privilegiando as políticas de universalização, "com qualidade", dos serviços públicos universais de saúde e educação.

2) No caso do projeto de "new deal keynesiano" do governo argentino de Nestor Kirchner, cada vez mais distante do "modelo econômico" do governo Menem. Depois da moratória argentina, o presidente Kirchner redefiniu suas relações com a "comunidade financeira internacional" e transformou em prioridade absoluta do seu governo a criação de empregos e a recuperação da massa salarial da população argentina, utilizando-se da formula clássica da social-democrata européia, da "concertação social", para conter a inflação. Além disto, voltou a proteger a indústria, estatizou vários serviços públicos e lançou, recentemente, um programa de reestatização opcional da própria Previdência.

3) No caso do projeto de "socialismo do século XXI", anunciado pelo presidente Hugo Chavez e apoiado pelos governos da Bolívia e Equador, retomam-se idéias e políticas que vêm da Revolução Mexicana e que fizeram parte dos programas de vários governos revolucionários ou nacionalistas do continente, culminando com a experiência de "transição democrática ao socialismo" do governo de Salvador Allende, no início da década de 70. Em todos os casos o ponto central foi o mesmo: a criação de um núcleo produtivo estatal, com capacidade estratégica de liderar o desenvolvimento do país, na perspectiva da construção de uma sociedade mais igualitária. Uma espécie de "capitalismo organizado de Estado" onde convivam o grande capital estatal e privado com as pequenas cooperativas da economia indígena, dentro de um sistema o comunal de participação democrática.

4) Por fim, no caso do "desenvolvimentismo com inclusão social" do segundo governo Lula, suas primeiras medidas e propostas são muito claras: seu objetivo estratégico não é construir o socialismo, é "destravar o capitalismo" brasileiro para que ele alcance altas taxas de crescimento, capazes de criar empregos e aumentar os salários de forma sustentada, fortalecendo a capacidade fiscal de investimento e proteção social do Estado brasileiro. Com este objetivo, o governo Lula está retomando o velho projeto desenvolvimentista que remonta à década de 30 e que só foi interrompido nos anos 90. Mas, ao mesmo tempo, está querendo criar uma vontade política através de uma grande coalizão social e econômica que reúna as várias vertentes do desenvolvimentismo brasileiro, conservadoras e progressistas, que estiveram separadas durante a ditadura militar.

Resumindo: a ira e o desencanto dos liberais de direita e de esquerda tem sua razão de ser. De repente tudo mudou, e o cenário ideológico latino-americano ficou diversificado e repleto de idéias e propostas. Podem dar certo ou errado, mas não há como impugná-las, como vem acontecendo, pelo simples fato de serem projetos antigos. Todos tem raízes profundas na história latino-americana e não se pode dizer que fracassaram, porque sempre foram interrompidos pelos golpes da direita liberal."


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