Roberto Marchesini, estudioso de ciências biológicas e de epistemologia, escritor e ensaísta, publicou vários artigos e pesquisas sobre o relacionamento entre homens e animais nas aplicações didáticas. Presidente da sociedade italiana das Ciências Comportamentais Aplicadas e diretor da Scuola di Interazione Uomo Animale, ele também ensina Ciência Comportamental Aplicada em algumas instituições italianas. Entre seus livros publicados, citamos: Bioetica e scienze veterinarie (ESI, 2000), Lineamenti di zooantropologia (Edagricole-Calderini, 2000), Post-human (Bollati Boringhieri, 2002), Imparare a conoscere i nostri amici animali. Guida per insegnanti (Giunti, 2003), Nuove prospettive nelle attività e terapie assistite dagli animali (Edizioni Scivac, 2004), Canone di Zooantropologia Applicata (Apeiron, 2004), Fondamenti di Zooantropologia. Zooantropologia applicata (Alberto Perdisa Editore, 2005).
Confira, a seguir, a entrevista que Marchesini concedeu, por e-mail, com exclusividade para a revista IHU On-Line, no. 200, 16-10-2006, na qual afirma que “a tecnociência não é uma celebração do homem, mas um meio para favorecer a conjugação do homem e para conhecer melhor e apreciar o não-humano”.
IHU On-Line - Como o homem contemporâneo vive a dicotomia de permanecer o único protagonista do universo e a necessidade de mergulhar e deixar-se moldar pela alteridade tecnológica?
Roberto Marchesini - O paradigma pós-humanístico coloca em discussão a visão antropocêntrica, portanto não lê a tecnociência como uma atividade para aumentar o domínio do homem, mas sim como um modo para aumentar o laço da nossa espécie com o mundo, por meio do conhecimento e da responsabilidade operativa. A lógica pós-humana não se baseia na superação do homem, mas na admissão de que as qualidades humanas se constroem na realização com o não-humano, por exemplo, com os outros animais. As qualidades humanas são, portanto, consideradas fruto da relação com os outros seres viventes, assim, o homem deve reconsiderar tal relação, incentivando-a e valorizando as alteridades. O que é rejeitado é exatamente a pretensão de considerar o homem como único protagonista do universo. Segundo o pós-humanismo, o erro é considerar o homem como centro e medida da realidade, ideal humanístico que nos vê como especiais porque somos separados dos outros seres viventes, auto-suficientes na realização ontológica e totipotentes, com o próprio destino firmemente em nosso poder. Esta visão nega qualquer forma de alteridade não humana, seja terrena ou divina - até mesmo Deus existe enquanto e na medida em que é pensado pelo homem - e condena o homem ao total isolamento e à presunção de ser suficiente a si mesmo. O pós-humanismo rejeita esta idéia: a tecnociência não é, portanto, uma celebração do homem, mas um meio para favorecer a união do homem e para conhecer melhor e apreciar o não-humano.
IHU On-Line - Como a técnica auxilia na construção da identidade do sujeito contemporâneo?
Roberto Marchesini - A ciência é uma grande experiência educativa antes mesmo de ser portadora de conhecimento e de aplicações técnicas. Explico-me melhor: graças à ciência, o homem sai dos preconceitos e principalmente da visão da realidade por meio da projeção, ou seja, afasta-se do antropocentrismo mediante uma obra de descentralização. Isso é muito importante na concepção da identidade: o nosso perfil - individual, cultural, humano - nasce do encontro e do acolhimento do outro, e não da sua exclusão. Acredito que o grande risco para o homem contemporâneo seja o de considerar a técnica como uma casca que o separa do mundo; ao contrário, é necessário compreender que o saber não nos torna mais auto-suficientes, e sim mais necessitados um do outro. O saber conjugativo do enfoque pós-humanístico é muito diferente do saber de domínio de tipo baconiano. Precisamos aprender a usar mais seguidamente o nós - toda vez que conhecemos nos declinamos, ou seja, hospedamos a alteridade - e isso deveríamos aprender com os cães, que vivem perto de nós em uma dimensão co-extensiva.
IHU On-Line - A técnica criou sujeitos “pós-humanos”? Vivemos um novo conceito de humanidade?
Roberto Marchesini - A questão não se refere tanto ao que somos, mas a como nos percebemos. O homem do mundo antigo se sentia parte de um conjunto de tensões gravitadas em um ponto final, sustentado pelo fato; obviamente a sua percepção de si era muito diferente da do homem moderno, completamente responsável pelo próprio percurso e propenso a submeter o mundo aos seus objetivos. O nosso tempo, por meio das tecnologias, torna o homem uma entidade mais conexa, e isso reforça a expressão multiforme da pessoa, quer dizer, a percepção de uma entidade múltipla e mutante: o multivíduo no lugar do indivíduo. Entretanto, isso não é uma simples expressão de poder, ao contrário, transforma a pessoa em uma raiz declinável ou, se preferirmos, em um palco onde o não-humano faz surgir novos roteiros. Se confrontarmos estes temas com o velho paradigma humanístico, não os compreenderemos: a nossa tecnociência nos tornou mais híbridos, está dando espaço ao não-humano, faz-nos ver sob uma nova luz. Somos pós-humanos simplesmente porque compreendemos que ser homens significa acolher os outros, que se fazer animais significa progredir, e não regredir, que as máquinas não são externas, mas nos modificam.
IHU On-Line - Como propor uma ética universal com base nesta realidade? É ainda possível pensar em ética no contexto em que vivemos?
Roberto Marchesini - A ética é a reflexão sobre as tensões que o homem sente na sua relação com o mundo: essa é ao menos a minha visão, e neste sentido não posso evitar a religiosidade. Obviamente, cada técnica interpreta um modo particular de enfocar a religiosidade. Para algumas religiões, a realidade terrena é somente um rascunho, ou até mesmo é contrastante à elevação moral: isso leva ao abandono do laço com os outros seres vivos e a sonhar com uma outra dimensão, o paraíso, por exemplo. Junto com essa visão sempre houve uma religiosidade fundada no revelar as leis do mundo como um ato de humildade e de fé: penso no pensamento de Demócrito , Epicuro , Plutarco , Francisco de Assis , Espinoza, Bruno, Einstein . Essa ética se baseia no estupor, no amor pelo mundo e na responsabilidade. Considero que todo bom cientista no fundo esconde no seu coração esta tensão, mas é evidente que este êxtase com relação ao mundo é da arte, da música e de toda atividade da cultura.
IHU On-Line - Podemos aproximar o conceito de pós-humano ao do além-do-homem nietzschiano, responsável pela construção da vida como obra de arte, sem amarras religiosas e metafísicas?
Roberto Marchesini - Acho que Nietzsche entendeu antes de todo o mundo o declínio do humanismo e não teve medo disso, ao contrário de Heidegger. Todavia, as raízes humanísticas do homem demiurgo são ainda fortes nele, e o além-do-homem se realiza por meio de um ato individual e não da hibridação: essa é a diferença. No pós-humano, eu sou porque fui invadido pela alteridade e não porque me realizo solipsisticamente. Não acredito, no entanto, que o abandono da metafísica corresponda à renúncia da religiosidade: podemos sentir o êxtase até mesmo abraçando um cavalo, como fez Nietzsche, ou na compaixão pânica pelas criaturas, como nos ensinou Leopardi. Ir além do homem é a diretriz pós-humanística, não para destruir o homem, mas para doar-lhe uma dimensão relacional, para superar aquela arrogância destruidora que é a verdadeira blasfêmia contra toda forma de religiosidade. O além-do-homem, como o pós-humano, é um ato de amor e de hospitalidade, e não um modo para elevar-se sobre os outros.
IHU On-Line - É possível compreender o pós-humano com base na experiência niilista da morte de Deus? A técnica ocupa hoje o lugar da religião?
Roberto Marchesini - Se a idéia de Deus for aquela mesma antropomórfica de muitas religiões - Deus feito à imagem e semelhança do homem - acredito que esteja se consumindo um divórcio profundo, não ainda explícito, mas em um rápido suceder-se. Perdendo a idéia de homem como medida, também esta forma de religiosidade é destinada a desaparecer. A tecnociência não toma o lugar de Deus, mas acrescenta em nós o estupor em relação ao mundo, torna-nos de algum modo panteístas, faz-nos enfocar a religião de um modo menos projetivo. Devo dizer que talvez esta seja a minha esperança, porque constato com horror como o antropocentrismo, também na religião, esteja destruindo o mundo e desvalorizando o homem.
IHU On-Line - O que seria o antropocentrismo ontológico? O pós-humano é a exacerbação do conceito de homem, que não depende de nada e a nada deve dar satisfações?
Roberto Marchesini - Este é o ponto nevrálgico do assunto. O antropocentrismo ontológico significa considerar o homem autofundado, quer dizer, acreditar que para reforçar as qualidades humanas se deva purificar o homem do não-humano. Acredito que as coisas estejam caminhando em um sentido inverso: os predicados humanos se realizam na medida em que o homem acolhe o mundo e se faz menos auto-referido. Parece um paradoxo, mas nós realizamos as nossas qualidades antropo-decentrando-nos, ou seja, não desligando-nos do mundo e fechando-nos em nós mesmos, mas assumindo outras perspectivas. A cultura é o exemplo mais claro do nosso débito com relação aos animais: a dança, a arte, a moda, a música, a técnica, são formas de hibridação com os animais. As máquinas são o melhor exemplo da nossa fusão com as outras espécies; as máquinas são quimeras, meio homens e meio animais são instrumentos que se animam, e o universo das outras espécies é a grande fonte inspiradora da taxonomia maquínica. Superar o antropocentrismo ontológico significa entender este débito e respeitá-lo. É um pouco como o egocêntrico que não cresce se não supera a falsa impressão de que o mundo gira ao seu redor. O conhecimento nos faz híbridos, não nos purifica; nos torna mais dependentes, não mais autônomos.
IHU On-Line - Como fica a alteridade nesse cenário? E a representação democrática, se o homem é auto-referente?
Roberto Marchesini - O pós-humanismo reforça o valor da alteridade e tolhe ao homem aquela auto-referência que o humanismo lhe havia consignado. As alteridades constroem a nossa identidade, isso significa que, destruindo as alteridades, nós colocamos uma pesada hipoteca sobre as nossas possibilidades de identidade. Quem tinha bem entendido isso era o escritor Philip Dick, que afirmava que não poderia haver um futuro para o homem além da relação com os animais, e é por isso que também os seus replicantes sonham com ovelhas, mesmo que elétricas. O homem não é um compasso para o mundo, a idéia de Leonardo teve o seu tempo, e hoje corre o risco de transformar o mundo em um deserto. Aí sim é que a tecnociência se tornaria uma arma perigosa e devastadora.
IHU On-Line - Essa concepção auto-referente pode ser a base para entendermos as inúmeras intolerâncias que ainda persistem, como a religiosa, a sexual e racial?
Roberto Marchesini - O mito da pureza, a submissão dos animais ao homem, a idéia existencialística da forma perfeita, foram as bases de toda a forma de discriminação. Santo Agostinho já havia entendido isso, pois onde há discriminação humana versus não-humano e maltrato aos outros viventes, há o modelo para submeter o homem ao homem. Não é por acaso que o operador discriminativo sempre apelou à natureza zoomorfa do discriminado: o louco, a mulher, a criança, o estrangeiro sempre foram representados como animais ou como portadores de uma maior dose de animalidade. Para entender as máquinas, precisamos começar a entender melhor as nossas relações com os outros seres vivos e sair desta solidão de espécie. O pós-humanismo é o contrário da auto-referência, é a celebração da hibridação, é a consciência de que o homem não apenas não é a medida do mundo, mas não é nem mesmo a medida de si mesmo.
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