Trabalhando a toque de caixa num "projeto de desenvolvimento" para o país, o filósofo Roberto Mangabeira Unger diz que a atual prosperidade brasileira, decantada em prosa e verso por seu chefe, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é "aparente", "superficial" e "frágil". Ela é muito dependente, diz o ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos, do boom dos preços de commodities e da exportação de produtos primários. Se nada for feito, alerta, o Brasil se transformará no resultado da combinação de uma "grande fazenda" com uma "grande maquiladora". A reportagem é de Cristiano Romero e publicada pelo jornal Valor, 14-04-2008.
"Essa prosperidade superficial e frágil não nos deve enganar a respeito da situação em que estamos. Ainda não encontramos o caminho necessário da reconstrução industrial", sustenta o ministro, que embarcou há oito meses no governo sob o olhar desconfiado do próprio presidente da República, que o nomeou num gesto de deferência ao vice-presidente José Alencar, colega de partido de Mangabeira - o PRB. Graças à sua ligação com o empresário Daniel Dantas, arquiinimigo de petistas próximos de Lula, o professor quase foi desconvidado na véspera da posse.
O mal-estar da nomeação, segundo atestam assessores diretos do presidente, foi superado. Mangabeira teria conquistado Lula durante reunião, realizada no início do ano, em que fez uma apresentação do esboço do seu projeto de desenvolvimento, baseado em cinco pilares - oportunidade econômica, educação, qualidade da gestão pública, Amazônia e defesa. O presidente, que antes o considerava um "bicho estranho", nas palavras de um auxiliar, passou a festejar sua presença no governo.
A mudança de prestígio é tal que já há, no Palácio do Planalto, quem cogite o nome de Mangabeira para ser o vice da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, numa possível candidatura à sucessão de Lula, em 2010. "A pessoa mais interessada e entusiasmada com o meu trabalho é o presidente. Ainda bem! Ele sabe que não estamos tratando apenas do futuro do país, mas do legado institucional de seu governo", diz o ministro. Seus principais aliados no governo são os ministros da Defesa, Nelson Jobim, da Educação, Fernando Haddad, da Ciência e Tecnologia, Sérgio Resende, e da Cultura, Gilberto Gil. Fora do aparato do Estado, informa, os cientistas, a igreja e as Forças Armadas.
"Há atributos comuns a esses três grupos: eles se identificam com a perspectiva nacional e estão fora do mundo do dinheiro", justifica. Os militares são os mais animados. Mangabeira desembarcou em Brasília, virou ministro, mas não tinha uma sala para trabalhar. O Comando do Exército lhe cedeu um andar inteiro no prédio do extinto ministério da força.
Adversário ferrenho da atual política econômica, Mangabeira evita falar de macroeconomia. "Não vou mentir aqui e dizer que mudei de idéia. Não mudei, mas não estou tratando disso." Suas críticas, no entanto, vão além. Ele sustenta que o coração do sistema industrial brasileiro é refém de um "fordismo tardio". "Alcança padrões de excelência fabril, mas é relativamente retrógrado no seu cerne organizativo e tecnológico. Ele se mantém competitivo à base de uma restrição dos setores ao fator trabalho", critica.
Na avaliação do ministro, o Brasil cresce tradicionalmente por meio de alguns setores avançados e internacionalizados, que geram riqueza. Parte dessa riqueza é apropriada pelo governo para financiar programas sociais, como o Bolsa-Família. É muito pouco, diz ele. "Agora, a nação e o governo querem mais. Querem transformar a ampliação de oportunidades econômicas e educativas no próprio motor do crescimento. Para isso, é preciso inovar nas instituições, inclusive naquelas que definem a economia de mercado, e essa é uma prática a que nós nunca nos acostumamos", explica.
Como tem restrições ao atual modelo industrial, amparado na concessão de incentivos fiscais e crédito subsidiado a grandes empresas, Mangabeira informa que seu projeto cria uma política industrial "paralela", voltada para pequenas empresas. "Culturalmente, somos caracterizados por um pendor para o improviso, a anarquia criadora e construtiva. Por todas as razões, deveríamos instrumentalizar essa multidão de empreendimentos emergentes com acesso a crédito, tecnologia e conhecimento", defende.
Para atingir esse objetivo, são necessárias, diz o ministro, três medidas: formar práticas e quadros; ampliar o crédito ao produtor; e promover o que chama de "extensionismo tecnológico". No primeiro caso, ele acha que o país avançou com o Sebrae. Quanto ao segundo, conta que está trabalhando com os bancos públicos para "compreender" os obstáculos que impedem a ampliação do crédito.
Nesse ponto, o professor critica formulação bastante disseminada no governo Lula: a de que o país passou a enriquecer à base da ampliação do crédito ao consumidor e da massificação do mercado de consumo, sem antes ter democratizado o acesso ao trabalho e à produção. "Como se olhássemos para a experiência dos EUA e da Europa nas últimas décadas do século XX, sem perceber que aquela massificação do consumo foi antecedida por gerações de luta a respeito da democratização dos acessos aos instrumentos de trabalho e da produção", pondera.
O plano de Mangabeira para o "extensionismo tecnológico" prevê a criação do que chama de "Embrapa industrial". Não se trata de uma empresa unitária, como a atual Embrapa, mas da criação de uma rede de instituições federais e estaduais, além de universidades, destinadas a disseminar novas tecnologias e técnicas de inovação entre pequenas empresas. Esta seria uma forma, diz ele, de romper com o "fordismo" e evitar que o Brasil se transforme na "grande fazenda e maquiladora" do mundo.
A transição do "fordismo" já teria começado a acontecer, segundo o ministro, no centro industrial do país, onde há formas de produção mais flexíveis, densas em conhecimento e sobretudo vocacionadas para a inovação permanente. O desafio, diz ele, é fazer a travessia, "na vasta periferia econômica do país", do pré-fordismo para o pós-fordismo, sem ter que passar pela etapa intermediária. "O país não tem que primeiro virar a São Paulo de meados do século XX para, depois, virar outra coisa", observa.
O projeto de Mangabeira prevê também mudanças profundas no sistema de trabalho, fundado no período Vargas. Seu diagnóstico é pessimista. Segundo ele, a economia brasileira está ameaçada de ficar imprensada entre as economias de trabalho barato e as de produtividade alta. A situação teria se complicado mais ainda porque países de trabalho barato, como a China, estão se tornando também economias de produtividade elevada.
"Isso cria uma situação extremamente negativa para nós, cuja gravidade é disfarçada por essa prosperidade superficial que estamos vivendo", adverte. "Um dos nossos interesses nacionais mais básicos é escapar dessa prensa pelo lado alto, de valorização do trabalho e de escalada da produtividade, e não pelo lado baixo, de aviltamento salarial, não tentar ser apenas uma China com menos gente. Para isso, precisamos reorganizar as relações entre capital e trabalho."
Mangabeira informa que a discussão desse tópico está focada em três temas: informalidade, participação dos salários na renda nacional e regime sindical. No primeiro caso, o principal objetivo é promover uma desoneração "radical" da folha de pagamento das empresas. A contribuição para o Sistema S e o salário-educação sairiam da folha e os benefícios diretos, como as férias remuneradas, ficariam. O financiamento da previdência social, principal item de custo das empresas, sairia da folha e passaria a ser feito por outros tributos.
Quanto à participação dos salários na renda, Mangabeira lembra que ela vem caindo há quase meio século. Trata-se de de uma tendência internacional, mas ele sugere que o problema seja enfrentado por meio de iniciativas institucionais e não apenas por políticas que influenciem o salário nominal, como vem fazendo o governo com o salário mínimo. Sua proposta é que o sistema tributário se torne neutro na base da hierarquia salarial, de forma a não castigar quem emprega e qualifica trabalhadores mais pobres. Para o topo da hierarquia, recomenda a generalização progressiva do princípio constitucional da participação nos lucros, o que, segundo ele, só funcionará se os sindicatos puderem ter acesso à contabilidade das empresas.
No caso do regime sindical, Mangabeira aplaude a legalização das centrais e diz que elas podem desempenhar papel importante na negociação de temas nacionais, como a vinculação de aumentos salariais à elevação da produtividade. "Os países onde é possível negociar esse tipo de vínculo são os que têm estruturas sindicais centralizadas, como os escandinavos. Esse é um papel que as centrais podem exercer no Brasil", aposta. O ministro também se junta às centrais na defesa de que o setor empresarial reconheça o princípio de que, no local do trabalho, o sindicato preponderante represente todos os trabalhadores. "É um exemplo de convergência entre os defensores e os opositores do princípio da unicidade", diz ele.
Por recomendação do presidente Lula, Mangabeira vem conversando com as centrais. Ele diz que, apesar das convergências que tem visto nesse diálogo, não se ilude. "Sei que, quando forem acesos os holofotes da discussão pública, uma parte dessa convergência vai evaporar, mas, se uma parte sobreviver, já será uma grande coisa para o país."
No tema "qualidade da gestão pública", o professor defende a profissionalização de todas as carreiras. Ele conta que se surpreendeu ao chegar a Brasília e descobrir que a maioria dos ministérios não possui funcionários de carreira. "São ministérios fantasmas. Temos ilhas de profissionalismo burocrático, como a Receita Federal e o Itamaraty, flutuando num oceano de discricionarismo político", critica.
Mangabeira combate a idéia de que criar uma burocracia profissional e meritocrática é inchar o Estado. "Criou-se uma antipatia com a idéia de burocracia no Brasil. A direita é contra porque supostamente o mercado é sufocado pela burocracia. O mercado depende da burocracia. A esquerda é contra porque a burocracia é contra a democracia, a radicalização democrática. A radicalização da democracia exige a burocracia. Ambas estão equivocadas", conclui.
Paralelamente à profissionalização, o ministro propõe a criação um órgão independente para avaliar os serviços prestados pelo setor público. Essa entidade não atuaria de forma punitiva, como o TCU, mas para auxiliar os vários órgãos a rever suas práticas.
Em seu modelo institucional, Mangabeira prega a redefinição das relações entre Estado e mercado, escapando dos dois modelos existentes - o americano, em que o Estado apenas regula o setor privado à distância; e o do Nordeste asiático, onde o Estado, por meio de um aparato burocrático, formula uma política industrial-comercial unitária e a impõe de cima para baixo.
O terceiro modelo, que ele deseja fundar no Brasil, prevê a "coordenação estratégica, descentralizada, pluralista, participativa e experimental entre Estado e empresas". O velho conflito entre o Estado e o mercado, diz ele, está morrendo e sendo substituído por um novo que diz respeito às formas alternativas da economia de mercado e da democracia política. "Não é aquele modelo liberal único, que ainda nos fascina - quanto mais Estado, menos mercado; quanto mais mercado, menos Estado. É a idéia de que o mercado não cria seus próprios pressupostos institucionais. Eles são criados na política e no direito. O Estado atua para criar mais mercados abertos a mais pessoas, de mais maneiras, portanto, inovando nas formas institucionais que definem a economia de mercado", teoriza.
O projeto de longo prazo de Mangabeira começa agora. Professor licenciado da Universidade de Harvard, ele diz que não deixou nos EUA sua família, seus livros e seu salário (cinco vezes maior do que o atual) para servir de "enfeite" em Brasília. Se por um lado faz críticas ao modelo econômico vigente, por outro diz que o momento atual é "mágico". "(Seu projeto) é uma visão de país, mas ela tem que estar ancorada em coisas concretas que comecem já. Não acredito no contraste entre o curto e o longo prazo. O único longo prazo que é para valer é o que começa já. O que importa é o caminho, a direção."
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