A epidemia da dengue revela o descalabro da saúde pública e responsabiliza indistintamente os três níveis de governo – federal, estadual e municipal. Além disso, os dados apresentados, ainda que sejam dramáticos, não refletem a realidade. A análise é de Eric Nepomuceno, jornalista e escritor, e que foi publicada no jornal argentino Página/12, 14-04-2008. A tradução é do Cepat.
Os números da epidemia de dengue no Rio de Janeiro parecem claros: até a tarde de sexta-feira (11-04) havia 84 mortos no Estado, 50 na capital. Em todo o Estado, nos primeiros 102 dias do ano, 78.579 pessoas foram contaminadas pelo vírus transmitido pelo mosquito aedes aegypti. Na capital, 47.463. Na segunda quinzena de março foram registrados dois mil novos casos por dia. Houve dias em que a média foi de dois casos por minuto. Na última semana do mês foram registrados 18.389 casos de dengue. Na primeira semana de abril surgiram os primeiros indícios de que a epidemia começava a baixar, mas o número de contaminados ainda supera o dobro do que as organizações internacionais de saúde consideram como níveis alarmantes.
Acontece que nenhum desses números merece confiança, já que não são nada claros. São muito mais os contaminados, são muito mais os mortos. Primeiro, porque hospitais e postos de saúde demoram para notificar oficialmente as autoridades. No mesmo dia em que foram confirmadas as 84 mortes, ficaram pendentes de determinar as causas de outras 76, das quais 43 eram da cidade do Rio.
Segundo, porque não são raros os casos de erro de diagnóstico. Agora mesmo, Estado e Município foram condenados a pagar uma indenização a familiares de uma adolescente morta por dengue em 2002 que havia sido diagnosticada como uma gripe comum. Há dezenas de casos similares na Justiça, correspondentes a surtos epidêmicos anteriores, e já se apresentaram outros relacionados com a epidemia atual. Um médico do Exército, infectado pelo mosquito, foi obrigado a cumprir plantão, sem nenhuma atenção, e morreu num hospital militar sem sequer ser examinado.
Para reforçar essa desconfiança nos números oficiais, há uma terceira razão: a crônica incompetência dos responsáveis. A confusão entre notificações da saúde municipal e estadual não faz mais que deixar claro que nem sequer sabem determinar quantos são os mortos de sua irresponsabilidade ampla e irrestrita.
Apesar de todas as advertências e indícios levantados por cientistas, pesquisadores e associações médicas, não se fez absolutamente nada para impedir a proliferação do mosquito e suas conseqüências. Não houve campanhas de alerta à população, nem vigilância alguma, e até em terrenos públicos o aedes encontrou amplo e confortável espaço para, sem ser molestado pelos fumigadores, se multiplicar sem cessar aproveitando o calor do verão que passou.
Enquanto as autoridades de todas as instâncias – nacional, estadual e municipal – se esforçam para repelir as responsabilidades, como se se tratasse de definir se o mosquito é federal, regional ou local, o que se confirma é que o descalabro da saúde pública no Brasil não tem limites. Comprova-se, além disso, que as lições do passado não servem para nada e que a irresponsabilidade é democrática – as autoridades de todos os níveis a exercem livremente –, mas a doença não: a imensa maioria dos contaminados com dengue é de bairros pobres, e mais da metade dos mortos tinha menos de 15 anos.
Não é a primeira epidemia de dengue no Brasil, especialmente no Rio. Em 2002, nessa cidade foram 140.408 os casos, com 65 mortos. Isso, em todo o ano. Desta vez, em menos de quatro meses o número de mortos já é bastante maior, e o total dos casos será facilmente superado.
Por esses dias, o Rio de Janeiro recebeu mais de cem médicos do sistema público de saúde de outros Estados e Municípios. Cada um receberá, por turno de 12 horas seguidas, cerca de 350 reais. Cumprindo três turnos semanais, ganharão mais do que ganham em seus trabalhos de origem [cerca de três mil reais mensais], e quatro vezes o salário base de um médico do Estado ou do município do Rio. Nos primeiros dias, esses voluntários não sabiam o que fazer, já que ninguém parecia ter claro quais seriam as suas funções. É como se de repente o governador Sérgio Cabral tivesse se dado conta de que faltam pediatras na rede estadual de saúde.
Já o prefeito César Maia, como de costume, luta contra a realidade: trata de mostrar, com dados nas mãos (todas tiradas ninguém sabe de onde), que não se trata de uma epidemia. Disse que não pode cumprir a determinação judicial de manter 84 postos de saúde abertos 24 horas por falta de segurança, especialmente nos bairros controlados pelo narcotráfico. Foi desmentido pelo governador, que mostrou que os postos estaduais funcionam 24 horas, e por porta-vozes do próprio narcotráfico, que estabeleceram “zonas de trégua” nos morros mais violentos da cidade enquanto durar a epidemia que o prefeito disse que não existe.
A enxurrada de notícias estarrecedoras, entretanto, não termina aí: para 2009 já se prevê uma epidemia ainda mais série, e que não estará concentrada num só foco. Os casos de dengue já começam a se multiplicar em outras latitudes do mapa brasileiro. Três cidades do próspero interior paulista já estão em alerta máximo.
O mosquito segue solto, os hospitais públicos continuam abarrotados de gente pobre que espera até oito horas para ser consultada, e o resto do país começa a se preparar para ver onde esse panorama de irresponsabilidade criminal e crônica se repetirá no ano que vem.
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