Em setembro de 2007, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou por ampla maioria a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas. Após duas décadas de arrastados debates, o documento trouxe à luz uma série de garantias, como o direito de participação dos povos indígenas em tomada de decisões sobre temas que lhes digam respeito ou o desenvolvimento de mecanismos por parte do Estado para a proteção contra ações que visem a explorar ou a expropriar suas terras. Mesmo sendo signatário do documento, o Brasil, a exemplo do adágio popular, parece seguir acertando um golpe no cravo e outro na ferradura no que se refere a essa questão. A reportagem é de Márcio Sampaio de Castro e publicada pelo jornal Valor, 18-04-2008.
Por aqui, o recrudescimento de querelas que envolvem os índios vem ganhando notoriedade desde 2004, quando os cintas-largas foram acusados de matar 29 garimpeiros, entre os cerca de 5 mil, que buscavam diamantes no interior da reserva Roosevelt, em Rondônia. A descoberta de ouro e cassiterita no território ianomâmi, na fronteira com a Venezuela, também tem tirado o sono de muita gente. Daqueles que sonham em explorá-los e dos que lutam para a preservação de uma das últimas culturas aborígines relativamente preservadas no país.
Na lista de conflitos, a mais recente contenda vem ocorrendo em Roraima, desde o encerramento do processo de demarcação e homologação da reserva Raposa Serra do Sol há três anos. Ainda que não tenham a propriedade legal das fazendas construídas no interior do território, os rizicultores entraram em rota de colisão com os agentes da Polícia Federal incumbidos de removê-los nos primeiros dias deste mês. Nas palavras do senador pelo Estado, Morazildo Cavalcanti, do PTB, simpático à causa dos fazendeiros, "a demarcação do território seria um absurdo por haver ali mais minério do que índios". No dia 9, uma decisão do Supremo Tribunal Federal sustou o processo de retirada dos não-índios, empurrando a solução das pendências para data indeterminada.
Na opinião do antropólogo e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Mércio Pereira Borges, toda essa crescente tensão pode ser explicada por três fatores. O salto da população indígena de 100 mil para cerca de 500 mil pessoas nos últimos 40 anos, o avanço da agropecuária para o Centro-Oeste e a região amazônica e o paulatino enfraquecimento da Funai. Para Borges, o interesse pelas riquezas minerais e energéticas presentes em uma área sob controle indígena, que corresponde a mais de 12% do território nacional, faz que a animosidade dos não-índios, principalmente daqueles que vivem em regiões próximas às reservas, cresça significativamente em relação aos índios.
Por outro lado, a fundação criada há 40 anos para propiciar uma aproximação entre os chamados povos da floresta e o restante da sociedade brasileira vem se depauperando. Nas duas últimas décadas o quadro de funcionários encolheu mais de 60%. O vácuo deixado pela Funai vem sendo ocupado por organizações religiosas e ONGs, que nem sempre têm um compromisso com a preservação dos valores culturais daqueles grupos. Por fim, no interior das Forças Armadas pululam vozes que se dizem preocupadas com a cessão de vastas faixas de território, principalmente em áreas de fronteira, para a criação de reservas.
Com tantos interesses em jogo, projetos de lei desde há muito adormecidos no Congresso começam a sair das gavetas, nas quais somente o mofo ia visitá-los. A reforma do Estatuto do Índio, já com 15 anos de idade, e a aprovação de seu congênere três anos mais novo, o Projeto de Lei nº 1.610/96, vêm ganhando atenção crescente dos parlamentares nos últimos meses.
A reforma do estatuto, que prevê, entre outras medidas, o fim da tutela do Estado sobre os indígenas, promete discussões acaloradas, caso realmente vá para o plenário. Para alguns, o fim da tutela respeitaria os preceitos da Constituição, que reconhece a capacidade processual desses indivíduos. De quebra, permitiria a eles decidir, por exemplo, se deixariam ou não mineradoras, grupos religiosos e ONGs atuar livremente em seus territórios. Tudo isso é visto com horror por setores mais tradicionais da antropologia, como o capitaneado por Mércio Pereira Borges. "O marechal Rondon sempre acreditou que a integração do índio à sociedade brasileira deveria ser feita respeitando as características culturais de cada grupo. A política indígena deve ser feita para a integração harmoniosa do indígena e não simplesmente sob um conceito de inclusão social. A tutela não restringe o direito de escolha do índio. Se ele quiser abrir mão, pode fazê-lo a qualquer momento. Agora, eu pergunto, qual índio até hoje abriu mão dela?", pergunta o ex-presidente da Funai.
Aparentemente alheia a essa discussão conceitual, uma comissão de deputados federais vem trabalhando resolutamente para ajustar e aprovar o PL 1.610/96, já referendado pelo Senado. Independentemente do conceito de tutela, o projeto se vale da prerrogativa do Congresso de poder autorizar a lavra de recursos minerais em terras indígenas, mediante o pagamento de royalties às populações dos locais de extração. Na verdade, o que vem atravancando os debates são a definição das porcentagens e a maneira como os recursos devem ser revertidos para os índios. Em meio a todo esse cenário controverso, as sociedades indígenas brasileiras, que estiveram seriamente ameaçadas de extinção há algumas décadas, lutam agora para sobreviver culturalmente às cada vez mais complexas pressões econômicas e políticas de interlocutores que não têm mais o menor interesse em oferecer-lhes miçangas e espelhinhos em troca de simpatia.
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