Algumas pesquisas de remédios são realizadas em países pobres com medidas de segurança bem menores. Os países ricos criam registros que evitam que um voluntário seja demasiado exposto. O artigo é de Tereixa Constenla e está publicado no El País, 06-04-2008. A tradução é do Cepat.
Valoriza-se a saúde quando ela se esfuma e os medicamentos quando estes faltam. Mas os remédios nem sempre estiveram aí, ao alcance dos doentes. Antes da penicilina (1928), a pneumonia matava em poucos dias. Até um século atrás havia produtos eficazes apenas para curar ou aliviar patologias. A relação entre infecção e morte foi estreita até que a revolução dos medicamentos fez o milagre. E por trás dos milagres quase sempre há um complexíssimo enredo. Um laboratório teve que investir milhões para pesquisar a eficácia de um determinado medicamento e sua segurança antes de colocá-lo no mercado, algo que na Espanha consome entre 10 e 12 anos. E muitas pessoas, doentes ou não, ofereceram seu próprio organismo para experimentar os efeitos do remédio quando ainda é uma incógnita e um risco. Sem voluntários que se exponham ninguém se beneficiaria da revolução dos remédios.
Por que alguém oferece algo tão singular, como seu corpo, para um experimento? Na maioria dos casos por consciência do doente: 86% das cobaias em 2007 na Espanha eram desse grupo. “As razões são simples. Uma vez que assumiste que tens uma doença sabes que alguém tem que se oferecer por outras pessoas”. Com uma hepatite C diagnosticada há mais de dois anos e meio, J. L. R., de 52 anos, se ofereceu para testar uma vacina que possa evitar no futuro que outros contraiam a doença. O fez partir da base de dados aberta na Internet pela empresa Volterys, criada na Bélgica em 2006 para colocar em contato pesquisadores e voluntários. Na Espanha, apenas começou, mas Laurent Hermoye, seu fundador, garante que contam com 20 mil voluntários na Bélgica, Alemanha e França e que cerca de trinta projetos já recrutaram pessoas na sua web.
A generosidade não é a única razão. “O principal motivo pelo qual os sujeitos saudáveis participam desses ensaios clínicos é a compensação econômica, ainda que existam outros como o interesse científico, a curiosidade, a busca de novas experiências, o altruísmo ou para ajudar a equipe de pesquisadores”, sustenta Francisco Abad, do serviço de Farmacologia Clínica do Hospital Universitário da Princesa, em Madri. Abad defende uma contribuição econômica taxada com sutileza: suficiente para compensar os desconfortos sem induzir o voluntário a participar contra o seu próprio interesse. “Na Espanha, são compensações apropriadas, conheço muitas pessoas que gostariam de participar dos ensaios, mas não o fazem quando é necessário fazer várias extrações de sangue. Se o pagamento fosse muito alto, participariam inclusive aqueles que não gostam de ser picados”.
Quanto é apropriado sem ser excessivo? Desagrada aos pesquisadores se referirem ao dinheiro, como se sujassem de algum modo o meritório afã da ciência. Mas serve como referência o dado trazido por Juan Ramón Castillo, responsável pela unidade de ensaios clínicos do Hospital Virgem do Rocio, em Sevilha: uma pessoa saudável que participa de uma prova que o obriga a se internar dois dias pode receber entre 300 e 400 euros. A partir daí, segundo os incômodos e a duração do projeto, aumenta-se a quantia.
Alguns países europeus tomaram medidas para evitar a profissionalização do voluntário, mas na Espanha é um risco mínimo na opinião da diretora da Agência Espanhola de Medicamentos, Cristina Avendaño: “Nossas unidades surgiram ao amparo de hospitais universitários e faculdades de medicina, o que faz com que os voluntários sejam preferencialmente estudantes ou de seus círculos”.
Na Espanha há 19 unidades para realizar ensaios clínicos na fase I, os únicos de que participam pessoas saudáveis e que são a primeira prova em humanos do remédio. Quase todas estão ligadas a instituições. Uma singularidade. “Faz com que primem outros aspectos sobre o econômico”, precisa Juan Ramón Castillo, que dirige, desde 2005, uma das unidades mais novas da rede espanhola. Recrutam seus voluntários com anúncios nas faculdades com mais perfil científico (Medicina, Biologia, Farmácia) para alimentar um banco de candidatos ao qual recorrer em caso de necessidade.
A Catalunha, que participa em cerca de 70% dos ensaios clínicos autorizados na Espanha (dados de 2006), fez um registro de voluntários saudáveis para evitar que sejam submetidos de forma reiterada a experimentos, algo que pode prejudicar sua própria saúde e também a pesquisa pela interação entre diferentes produtos. Até metade de março, 162 pessoas haviam se registrado. Graças a este inventário foram descobertas três pessoas que não haviam respeitado o trimestre de descanso exigido entre um ensaio e outro.
Fazer experimentos em pessoas saudáveis, como acontece na primeira fase dos ensaios, é imprescindível para demonstrar a segurança do composto e estabelecer a dose máxima que um organismo humano é capaz de tolerar. As provas prévias obtidas em animais são uma referência, mas não são extrapoláveis aos humanos. Na Espanha, a recente legislação de 2004 que se adapta a uma diretiva da União Européia, dá garantias “mais que suficientes para proteger os voluntários tanto do ponto de vista ético como da segurança”, sustenta Cristina Avendaño. “Nossos requisitos para autorizar são dos mais elevados”, acrescenta.
Os ensaios são submetidos a exames éticos e técnicos antes de receber sinal verde. O primeiro crivo é realizado pelo próprio comitê ético do hospital. A Agência Espanhola de Medicamentos dá a autorização definitiva para que a pesquisa comece: “A pedra angular do marco legal sobre ensaios clínicos é que os princípios, a segurança e o bem-estar dos voluntários devem prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade”, esgrime o porta-voz da Agência Européia de Avaliação de Medicamentos (EMEA). A supervisão ética é agora vital.
Assim é desde 1947, quando surgiu o Código de Nuremberg, o primeiro protocolo que fixou normas éticas para pesquisas em pessoas em resposta às aberrações cometidas durante a 2ª Guerra Mundial por cientistas alemães. Esta malha de garantias foi reforçada com a Declaração de Helsinki (1964), que estabelece a criação de organismos de controle, e com o Relatório Belmont (1978), que fixou três princípios básicos: o respeito às pessoas, a beneficência e a não-maleficência (não prejudicar uns em benefício de outros) e a justiça para que os avanços da pesquisa ajudem todos os grupos sociais.
Se essas diretrizes tivessem sido seguidas, nunca teriam sido cometidos alguns horrores em nome do progresso: nos anos 1940, no Alabama (Estados Unidos) foram recrutados 600 negros com sífilis para estudar a evolução natural da doença. Eles foram acompanhados de forma regular sem que se aplicasse tratamento algum (já se havia descoberto a penicilina) e, ao morrer, foram realizadas as autópsias.
A União Européia parece blindada legalmente, ainda que não isenta de acidentes e falhas. Na Holanda, morreram 24 doentes de pancreatite aguda que participavam de um ensaio. Em Londres, seis voluntários saudáveis estiveram entre a vida e a morte ao provar um remédio biológico no centro de ensaios da companhia Parexel, em 2006. Este último caso avivou as críticas e motivou que a Agência Européia de Avaliação de Medicamentos divulgasse propostas para reforçar a segurança quando forem testados produtos biológicos.
Mas, estão protegidos de igual forma o bem-estar, a segurança e os direitos dos voluntários de países pobres? Se estiverem corretas as acusações do Governo da Nigéria contra a multinacional Pfizer, se dirá que não. As autoridades federais nigerianas reclamam à companhia sete bilhões de dólares para indenizar as vítimas de um ensaio realizado em 1996 durante uma epidemia de meningite. Segundo o Governo, o antibiótico Trovan (trovafloxacino) foi experimentado em 200 crianças enfermas sem contar com o consentimento informado das famílias. Onze menores morreram e muitos outros sofreram malformações, paralisia cerebral, surdez e cegueira. A Pfizer sempre defendeu que havia agido com profissionalismo e ética, mas caberá à Suprema Corte Federal da Nigéria julgar, em junho, este caso.
O Centro de Pesquisas sobre Empresas Multinacionais, criado na Holanda para investigar as conseqüências da internacionalização empresarial em países em desenvolvimento desde 1973, garante que os ensaios não éticos se dão tanto em países desenvolvidos como em países empobrecidos e são protagonizados tanto por empresas locais como por grandes corporações. “Isto surpreende, dado que a maioria das multinacionais tem compromissos públicos com altos níveis éticos nos ensaios clínicos”, diz um relatório.
Publicamente é assim. Tanto a indústria como os organismos que controlam a entrada no mercado de medicamentos e muitos pesquisadores defendem a ética como um princípio solidificado nas pesquisas. “Maliciosamente, às vezes se acusa a indústria de que é mais barato realizar ensaios no Quênia do que na Espanha, assim como é mais barato comprar sapatos no Quênia do que na Espanha ou abrir uma fábrica. E não sei o há de errado se os níveis de bom trato, qualidade e boas práticas são iguais no Quênia e na Espanha”, sustenta Julián Zabala, diretor de Comunicação da Farmaindústria. “Creio que a indústria não está interessada em fazer estudos de pesquisa em países onde não se respeitam as normas da boa prática clínica, porque nesse caso os resultados não serão válidos e não servem para nada”, opina Francisco Abad.
Se uma companhia testa na África um produto que deseja comercializar na Europa, o processo será supervisionado sob a lupa comunitária como se tivesse sido desenvolvido num país da União Européia. Mas, atualmente, não existe um marco internacional que imponha uma ética comum a todo o mundo. Existem legislações nacionais de frouxidão variável e facilidades que barateiam os custos. A indústria espanhola, por exemplo, está convertendo a Hungria e a Polônia em dois de seus laboratórios prediletos. “O bolo mundial de I+D é aquele que é. E os lugares em que se pode pesquisar são muitos. As companhias vão para onde recebem melhor tratamento, encontram qualidade para pesquisar e custos mais baixos”, expõe Zabala.
Pesquisar é caro e lento. Por cada molécula que chega a uma farmácia foram descartadas 10 mil. A seleção durou cerca de 11 anos, cinco deles dedicados a estudar os efeitos em humanos. Colocar um remédio à venda custa em média 570 milhões de euros, “mais caro que o último Mercedes”, compara Zabala. Daí que a indústria busque acertar num alvo que seja ao mesmo tempo terapêutico e comercial. Os laboratórios dominam a pesquisa em medicamentos: promoveram 85% dos ensaios realizados em 2007 na Espanha. A isso dedicaram no ano passado 792 milhões de euros, segundo a Farmaindústria, que aglutina 220 companhias e laboratórios.
Apenas raquíticos 15% dos ensaios foram realizados por sociedades científicas e instituições, ainda que o Instituto de Saúde Carlos III tenha aberto pela primeira vez convocação para financiar pesquisas independentes, vitais para encontrar tratamentos de pouco interesse comercial porque atingem a um grupo reduzido de pessoas, como são as doenças raras.
Sem financiamento externo, os pesquisadores independentes estão com as mãos atadas e recebem muito lixo. Luis Paz-Ares, chefe de Oncologia do Hospital Virgem do Rocio, descarta 70% das pesquisas que lhe propõem: “O ensaio às vezes não analisa novidades terapêuticas, mas analogias com mais interesse comercial”.
- Um exemplo.
- O típico estudo que tem pouco interesse é o da Coca-Cola versus Pepsi-Cola.
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