Folha de São Paulo - 24/08/08
Pesquisa inédita aborda asilo para soldados que ficaram inválidos em combate, criado no Rio de Janeiro em 1868
"Inválidos da Pátria" eram em geral pobres e muitos foram escravos; além de ferimentos das batalhas, o cólera também era ameaça
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Muitas cidades brasileiras têm uma rua "Voluntários da Pátria", em homenagem aos soldados que foram à Guerra do Paraguai (1864-1870); certamente nenhuma tem uma rua "Inválidos da Pátria".
Assim eram chamados os feridos da mesma guerra que retornavam ao país, doentes ou mutilados. Para abrigá-los, o Império inaugurou há 140 anos, em 29 de julho de 1868, o Asilo dos Inválidos da Pátria, localizado na Ilha do Bom Jesus, baía da Guanabara.
O historiador paulista Marcelo Augusto Moraes Gomes fez um pioneiro trabalho sobre o asilo em tese de doutorado aprovada na USP. Ele mostra como a necessidade de lidar com milhares de feridos em uma guerra na qual a tecnologia bélica havia progredido de modo intenso provocou avanços na medicina no país, no tratamento tanto de doenças infecciosas quanto de traumas provocados pelo combate.
Ao analisar o tipo de ferimento dos relatórios e tratados médicos, ele pôde entender também como era a "face da batalha". Além de mortes por cólera ou ferimentos por baionetas e projéteis de fuzil de maior velocidade, ele mostrou o que acontecia a bordo dos encouraçados brasileiros quando atingidos pela artilharia paraguaia. Esses navios estavam entre os mais modernos do mundo, pois a guerra acelerou não só progressos na medicina, como na tecnologia bélica e industrial.
Gomes lia, nos anos 1990, uma biografia do brigadeiro Antônio de Sampaio (1810-1866), morto em decorrência de ferimentos causados na batalha de Tuiuti, quando topou com uma rápida menção ao asilo -os restos mortais do atual patrono da Infantaria foram temporariamente guardados ali. O historiador ficou curioso. "O asilo existiu por mais de um século e no Exército quase nada se comenta sobre ele", diz.
Gomes descobriu, então, uma cópia de um livro de 1869 de um dos primeiros capelães do asilo, Manoel da Costa Honorato, que serviu de ponto de partida para a pesquisa.
Abrigos para inválidos
O asilo foi construído junto à antiga Igreja do Bom Jesus da Coluna, erguida pelos franciscanos no começo do século 18. Duas semanas atrás ela foi reaberta, depois de obras de restauro que duraram quatro anos, feitas em parceria pela Fundação Cultural do Exército e a Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
A igreja costumava ser freqüentada pela família real, na pacata ilha no fundo da baía. Hoje ela deixou de ser uma ilha isolada, ligada por aterro à maior ilha do Fundão, onde está o campus da UFRJ.
Antes mesmo da inauguração oficial no dia do aniversário da princesa imperial, que contou com a presença do próprio imperador Dom Pedro 2º, já havia abrigos provisórios para feridos de guerra na capital do império, por exemplo, na Praia Vermelha, no Rio, e na ponta da Armação, em Niterói.
Esse tipo de estabelecimento foi criado para receber homens invalidados em combate -no estilo do francês Hotel dês Invalides, onde hoje se situa um museu e a tumba de Napoleão.
A guerra começou em 1864, quando o ditador paraguaio Solano López mandou aprisionar o navio a vapor brasileiro "Marquês de Olinda", que acabara de partir de Assunção, em represália à intervenção do Brasil na guerra civil uruguaia.
Foi a guerra com o maior grau de mobilização da sociedade, relativamente mais até do que a participação brasileira na 2ª Guerra Mundial, especialmente em número de soldados recrutados e na proporção destes com a população do país.
Havia também uma importante dimensão sanitária, lembra Gomes. A ciência não havia tornado claro como muitas doenças eram adquiridas e quais delas teriam chance de contágio através de contato dos doentes. Por isso, o asilo foi criado em um local relativamente isolado.
Os asilados eram obviamente pobres, muitos eram ex-escravos. Depois de grandes batalhas, chegavam imensas levas de inválidos de uma só vez. Isso criava uma questão disciplinar, pois havia receio da sociedade sobre o comportamento dessa soldadesca desmobilizada.
"Miasmas"
A chegada de navios com inválidos era particularmente temida pelas autoridades pelo risco de espalhar doenças na capital do império. Na metade do século 19, era dominante a teoria dos "miasmas" para explicar doenças infecciosas como o cólera. A causa das doenças estaria em emanações pútridas, em "ares" maléficos.
Um golpe nessa teoria fora dado em 1854, quando o médico britânico John Snow mostrou que um surto de cólera em Londres vinha da água contaminada de uma bomba d'água pública. Snow não conseguiu identificar o micróbio causador da doença. A teoria rival, dos germes, ainda não era muito aceita. Só o seria depois dos trabalhos do francês Louis Pasteur na década seguinte. E apenas em 1885 o alemão Robert Koch identificaria a bactéria Vibrio cholerae como a causadora da doença.
O cólera atacou as tropas da tríplice aliança criada para resistir ao ataque paraguaio. Antes de ser designado para o asilo, o capelão Honorato esteve no Paraguai e foi encarregado de cinco hospitais em Corrientes, Argentina, em março de 1867, para tratamento das vítimas do cólera.
Gomes cita uma dissertação de 1869 sobre o cólera, defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por um ex-cirurgião do exército brasileiro presente no Paraguai, Silvino José de Almeida. Ele já acreditava que o cólera fosse uma moléstia contagiosa, pois, escreveu Almeida, "o homem atacado de cólera era o principal agente de importação e propagação da moléstia". Para ele, "o transporte marítimo era o mais perigoso e o mais apto para a propagação da moléstia".
Gomes cita casos relatados por Carlos Frederico dos Santos Xavier de Azevedo, cirurgião-mor da Armada, em tratado médico de 1870. Por exemplo, Camilo Jacinto Fernandes, de Santa Catarina, 19 anos, "Imperial [marinheiro] de 2ª classe, e praça do encouraçado Colombo, entrou para o Hospital de Sangue da Esquadra, em operações do rio Paraguai, a 5 de Outubro, trazendo um ferimento, por estilhaço de bala, na região ilíaca externa do lado esquerdo". Fernandes morreu, e o tal estilhaço era provavelmente um rebite da couraça do navio (veja infográfico à dir.).
O médico em um trecho parece premonitório sobre um tipo de baixa que se tornaria mais comum nas grandes guerras do século 20, o ferimento de origem psiquiátrica: "(...) tivemos com nossos colegas ocasião de apreciar depois de bombardeamentos, ou combates, em que se empenhava a Esquadra, agravarem-se os sintomas de febres intensas, sucumbindo, algumas vezes, os doentes".
Pesquisa inédita aborda asilo para soldados que ficaram inválidos em combate, criado no Rio de Janeiro em 1868
"Inválidos da Pátria" eram em geral pobres e muitos foram escravos; além de ferimentos das batalhas, o cólera também era ameaça
RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL
Muitas cidades brasileiras têm uma rua "Voluntários da Pátria", em homenagem aos soldados que foram à Guerra do Paraguai (1864-1870); certamente nenhuma tem uma rua "Inválidos da Pátria".
Assim eram chamados os feridos da mesma guerra que retornavam ao país, doentes ou mutilados. Para abrigá-los, o Império inaugurou há 140 anos, em 29 de julho de 1868, o Asilo dos Inválidos da Pátria, localizado na Ilha do Bom Jesus, baía da Guanabara.
O historiador paulista Marcelo Augusto Moraes Gomes fez um pioneiro trabalho sobre o asilo em tese de doutorado aprovada na USP. Ele mostra como a necessidade de lidar com milhares de feridos em uma guerra na qual a tecnologia bélica havia progredido de modo intenso provocou avanços na medicina no país, no tratamento tanto de doenças infecciosas quanto de traumas provocados pelo combate.
Ao analisar o tipo de ferimento dos relatórios e tratados médicos, ele pôde entender também como era a "face da batalha". Além de mortes por cólera ou ferimentos por baionetas e projéteis de fuzil de maior velocidade, ele mostrou o que acontecia a bordo dos encouraçados brasileiros quando atingidos pela artilharia paraguaia. Esses navios estavam entre os mais modernos do mundo, pois a guerra acelerou não só progressos na medicina, como na tecnologia bélica e industrial.
Gomes lia, nos anos 1990, uma biografia do brigadeiro Antônio de Sampaio (1810-1866), morto em decorrência de ferimentos causados na batalha de Tuiuti, quando topou com uma rápida menção ao asilo -os restos mortais do atual patrono da Infantaria foram temporariamente guardados ali. O historiador ficou curioso. "O asilo existiu por mais de um século e no Exército quase nada se comenta sobre ele", diz.
Gomes descobriu, então, uma cópia de um livro de 1869 de um dos primeiros capelães do asilo, Manoel da Costa Honorato, que serviu de ponto de partida para a pesquisa.
Abrigos para inválidos
O asilo foi construído junto à antiga Igreja do Bom Jesus da Coluna, erguida pelos franciscanos no começo do século 18. Duas semanas atrás ela foi reaberta, depois de obras de restauro que duraram quatro anos, feitas em parceria pela Fundação Cultural do Exército e a Escola de Belas Artes da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
A igreja costumava ser freqüentada pela família real, na pacata ilha no fundo da baía. Hoje ela deixou de ser uma ilha isolada, ligada por aterro à maior ilha do Fundão, onde está o campus da UFRJ.
Antes mesmo da inauguração oficial no dia do aniversário da princesa imperial, que contou com a presença do próprio imperador Dom Pedro 2º, já havia abrigos provisórios para feridos de guerra na capital do império, por exemplo, na Praia Vermelha, no Rio, e na ponta da Armação, em Niterói.
Esse tipo de estabelecimento foi criado para receber homens invalidados em combate -no estilo do francês Hotel dês Invalides, onde hoje se situa um museu e a tumba de Napoleão.
A guerra começou em 1864, quando o ditador paraguaio Solano López mandou aprisionar o navio a vapor brasileiro "Marquês de Olinda", que acabara de partir de Assunção, em represália à intervenção do Brasil na guerra civil uruguaia.
Foi a guerra com o maior grau de mobilização da sociedade, relativamente mais até do que a participação brasileira na 2ª Guerra Mundial, especialmente em número de soldados recrutados e na proporção destes com a população do país.
Havia também uma importante dimensão sanitária, lembra Gomes. A ciência não havia tornado claro como muitas doenças eram adquiridas e quais delas teriam chance de contágio através de contato dos doentes. Por isso, o asilo foi criado em um local relativamente isolado.
Os asilados eram obviamente pobres, muitos eram ex-escravos. Depois de grandes batalhas, chegavam imensas levas de inválidos de uma só vez. Isso criava uma questão disciplinar, pois havia receio da sociedade sobre o comportamento dessa soldadesca desmobilizada.
"Miasmas"
A chegada de navios com inválidos era particularmente temida pelas autoridades pelo risco de espalhar doenças na capital do império. Na metade do século 19, era dominante a teoria dos "miasmas" para explicar doenças infecciosas como o cólera. A causa das doenças estaria em emanações pútridas, em "ares" maléficos.
Um golpe nessa teoria fora dado em 1854, quando o médico britânico John Snow mostrou que um surto de cólera em Londres vinha da água contaminada de uma bomba d'água pública. Snow não conseguiu identificar o micróbio causador da doença. A teoria rival, dos germes, ainda não era muito aceita. Só o seria depois dos trabalhos do francês Louis Pasteur na década seguinte. E apenas em 1885 o alemão Robert Koch identificaria a bactéria Vibrio cholerae como a causadora da doença.
O cólera atacou as tropas da tríplice aliança criada para resistir ao ataque paraguaio. Antes de ser designado para o asilo, o capelão Honorato esteve no Paraguai e foi encarregado de cinco hospitais em Corrientes, Argentina, em março de 1867, para tratamento das vítimas do cólera.
Gomes cita uma dissertação de 1869 sobre o cólera, defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro por um ex-cirurgião do exército brasileiro presente no Paraguai, Silvino José de Almeida. Ele já acreditava que o cólera fosse uma moléstia contagiosa, pois, escreveu Almeida, "o homem atacado de cólera era o principal agente de importação e propagação da moléstia". Para ele, "o transporte marítimo era o mais perigoso e o mais apto para a propagação da moléstia".
Gomes cita casos relatados por Carlos Frederico dos Santos Xavier de Azevedo, cirurgião-mor da Armada, em tratado médico de 1870. Por exemplo, Camilo Jacinto Fernandes, de Santa Catarina, 19 anos, "Imperial [marinheiro] de 2ª classe, e praça do encouraçado Colombo, entrou para o Hospital de Sangue da Esquadra, em operações do rio Paraguai, a 5 de Outubro, trazendo um ferimento, por estilhaço de bala, na região ilíaca externa do lado esquerdo". Fernandes morreu, e o tal estilhaço era provavelmente um rebite da couraça do navio (veja infográfico à dir.).
O médico em um trecho parece premonitório sobre um tipo de baixa que se tornaria mais comum nas grandes guerras do século 20, o ferimento de origem psiquiátrica: "(...) tivemos com nossos colegas ocasião de apreciar depois de bombardeamentos, ou combates, em que se empenhava a Esquadra, agravarem-se os sintomas de febres intensas, sucumbindo, algumas vezes, os doentes".
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