"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, agosto 25, 2008

Pré-sal, benção ou maldição?

Instituto Humanitas Unisinos - 25/08/08

A criação de uma uma empresa "100% estatal - uma pequena empresa que ficará com as reservas e fará os contratos" não significa que "há estatização nessa política, mas defesa do interesse nacional". A opinião é de Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 25-08-2008.

Eis o artigo.

O café, o minério de ferro, o agronegócio e, amanhã, o petróleo são uma bênção para o Brasil, mas poderão se converter em maldição se não soubermos neutralizar a doença holandesa que trazem embutida. Dada a perspectiva de o Brasil se transformar em grande exportador de petróleo depois da descoberta das reservas da camada pré-sal, o governo está pensando em mudar o sistema de sua exploração de concessão para partilha combinado com a criação de uma empresa 100% estatal. Não obstante as críticas que já estão surgindo, está claro que, por esse caminho, o governo brasileiro poderá desenvolver uma política de neutralização da doença holandesa semelhante à da Noruega. Mais amplamente, estará se municiando para neutralizar a tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio que existe nos países em desenvolvimento. Se essa tendência, cujas duas causas principais são os altos juros internos e a doença holandesa, não for neutralizada, o país estará condenado ao atraso.

Para compreendê-la, observe-se o que ocorreu com a taxa de câmbio a partir da crise de balanço de pagamentos do final de 2002 (na qual desvalorizou-se): primeiro, pressionada pela doença holandesa, ultrapassou a linha correspondente a seu "equilíbrio industrial" -o nível que torna competitivas indústrias usando tecnologia no estado-da-arte; em seguida, pressionada pela doença e pelos juros altos, atingiu o nível do "equilíbrio corrente" -ou seja, do equilíbrio intertemporal da conta corrente; mais recentemente, continuou baixando ou se apreciando, agora exclusivamente pressionada pelos juros internos elevados, e o país entrou em déficit em conta corrente.

Embora a doença holandesa no Brasil não seja muito grave porque a diferença entre as duas taxas de equilíbrio acima referidas não é muito grande, ela vem causando gradual desindustrialização desde o início dos anos 1990, quando deixou de ser neutralizada. Com o petróleo, tornar-se-á gravíssima.

Entretanto, como é compatível com o equilíbrio da conta corrente, o mercado não tem nenhuma possibilidade de neutralizá-la. Cabe ao Estado esse papel, de um lado garantindo aos exploradores do recurso natural um lucro satisfatório, e, de outro, estabelecendo impostos, royalties, retenções ou participações que capturem o ganho extra -o ganho acima do lucro que se denomina "renda ricardiana"- e impeçam que o petróleo seja oferecido a uma taxa menor que a do equilíbrio industrial. Esse segundo papel é exercido pelo deslocamento para cima da curva de oferta do bem com o preço mensurado em moeda local até o nível do equilíbrio industrial.

Efetuado esse deslocamento, a produção do bem só se torna viável se a taxa de câmbio estiver nesse nível ou ainda mais depreciada -ou, em outras palavras, o produtor deixa de oferecer o bem a uma taxa de câmbio sobreapreciada. Esse resultado poderá ser logrado por meio da substituição do sistema de concessão pelo contrato de partilha de produção - um sistema que, além de não desestimular o parceiro produtor, porque o risco no pré-sal é menor, permite uma retenção maior e mais bem calibrada das rendas do petróleo, que em vários países superam 90%. Para isso, precisará criar uma empresa 100% estatal - uma pequena empresa que ficará com as reservas e fará os contratos. Não há estatização nessa política, mas defesa do interesse nacional.

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