Site do Azenha - Atualizado em 22 de agosto de 2008 às 21:10 | Publicado em 22 de agosto de 2008 às 20:37
Reproduzo, traduzido, artigo que me foi enviado pelo Antonio Arles, do Movimento dos Sem-Mídia. Achei bem didático. É para quem quer entender o que está acontecendo com a Geórgia e quais as repercussões do conflito na política internacional.
Se você só lê o que sai na mídia corporativa ocidental é provável que acredite que o Vladimir Putin é o Lobo Mau e que a Geórgia é o Chapeuzinho. As coisas são mais complexas, para terror de nossos comentaristas maniqueístas.
Fonte -- http://www.stratfor.com/weekly/russo_georgian_war_and_balance_power
A Guerra russo-georgiana e o equilíbrio de poder
A invasão russa da Geórgia não mudou o equilíbrio de poder na Eurásia. Foi apenas o anúncio de que o equilíbrio havia mudado. Os Estados Unidos estão ocupados com as guerras no Iraque e no Afeganistão, além do conflito em potencial com o Irã e a situação instável no Paquistão. Não têm forças estratégicas de reserva e não têm condições de intervir na periferia da Rússia. Isso, temos sustentado, abriu uma janela de oportunidade para os russos reavaliar sua influência na esfera que foi soviética. Moscou não precisou se preocupar com a resposta potencial dos Estados Unidos ou da Europa; portanto, a invasão não mudou o equilíbrio de poder. O equilíbrio de poder já tinha mudado e só faltava aos russos anunciar isso. Eles escolheram fazer isso no 8 de agosto.
Vamos começar analisando os últimos dias.
Na noite de quinta-feira, 7 de agosto, forças da Geórgia invadiram a Ossétia do Sul, uma região da Geórgia que funciona como uma entidade independente desde o fim da União Soviética. As forças foram até a capital, Tskhinvali, que é próxima da fronteira. As forças da Geórgia ficaram sob ataque enquanto tentavam tomar a cidade. Apesar de confrontos pesados, nunca assumiram controle da capital, nem do resto da Ossétia do Sul.
Na manhã do dia 8 de agosto as forças russas entraram na Ossétia do Sul, usando blindados e infantaria motorizada, além de poder aéreo. A Ossétia do Sul era formalmente aliada da Rússia e a Rússia agiu para evitar a absorção da região pela Geórgia. Dada a rapidez com que as forças russas responderam -- horas depois do ataque da Geórgia -- é certo que os russos estavam esperando o ataque e estavam prontos para reagir. O contra-ataque foi cuidadosamente e competentemente executado e nas próximas 48 horas as forças russas derrotaram as da Geórgia e as forçaram a recuar. No domingo, 10 de agosto, os russos tinham consolidado suas posições na Ossétia do Sul.
Na segunda-feira os russos estenderam sua ofensiva ao território da Geórgia, atacando em dois eixos. Um foi ao sul da Ossétia na cidade georgiana de Gori. Outro foi da Abkhazia, outra região independente da Geórgia aliada dos russos. O ataque tinha o objetivo de cortar a ligação da capital da Geórgia, Tbilisi, com seus portos. Esses movimentos levaram as forças russas a ficar a 65 quilômetros da capital da Geórgia, tornando o reforço ou abastecimento das forças da Geórgia extremamente difícil para quem quer que quisesse fazê-lo.
O MISTÉRIO DA INVASÃO DA GEÓRGIA
Nessa história há algo de misterioso: o que levou a Geórgia a invadir a Ossétia do Sul na quinta-feira à noite? Nas três noites anteriores aconteceram bombardeios a partir da Ossétia do Sul em vilas da Geórgia, talvez mais fortes do que o usual, mas o fogo de artilharia era rotineiro. Os georgianos talvez não tenham lutado bem, mas eles comprometeram forças substanciais que levaram dias para organizar e abastecer. O ataque da Geórgia foi deliberado.
Os Estados Unidos são o aliado mais próximo da Geórgia. Mantém 130 assessores militares na Geórgia, além de assessores civis, empreiteiros que prestam serviço ao governo da Geórgia e empresários. É impossível que os americanos não soubessem da mobilização e das intenções da Geórgia. Também é impossível que os americanos não soubessem das forças substanciais da Rússia na fronteira com a Ossétia do Sul. A inteligência dos Estados Unidos, com imagens de satélite e naves não tripuladas, não deixaria de notar milhares de soldados russos se movendo para posições ofensivas. Os russos claramente sabiam disso. Como os Estados Unidos não sabiam dos russos? De fato, dada a posição das tropas russas, como analistas de inteligência não sabiam da possibilidade de que os russos haviam montado uma armadilha, esperando por um ataque da Geórgia para justificar o contra-ataque?
É muito difícil imaginar que os georgianos lançaram seu ataque contra a vontade dos Estados Unidos. A Geórgia depende dos Estados Unidos e não estava em posição para desafiá-los. Isso deixa em aberto duas possibilidades. A primeira é um grande fracasso de inteligência, no qual os Estados Unidos não sabiam da presença das tropas russas ou, sabendo das forças russas, junto com os georgianos cometeram um erro de cálculo sobre a intenção da Rússia.
A segunda é que os Estados Unidos, além de outros países, continuavam vendo a Rússia através do prisma dos anos 90, quando os militares russos estavam desmoralizados e o governo paralisado. Os Estados Unidos não viam a Rússia fazer um movimento militar decisivo além de suas fronteiras desde a guerra do Afeganistão, nos anos 70 e 80. Os russos evitaram esses movimentos sistematicamente por décadas. Os Estados Unidos teriam avaliado que os russos não se arriscariam a arcar com as consequências de uma invasão.
Se foi o caso, isso aponta para a realidade central da situação: os russos mudaram dramaticamente, junto com o equilíbrio de poder na região. Eles encontraram a oportunidade para fazer ver essa nova realidade, a de que poderiam invadir a Geórgia sem que os Estados Unidos e a Europa pudessem responder. Quanto ao risco, não viram a invasão como arriscada. Militarmente não haveria reação. Economicamente, a Rússia é exportadora de energia que está economicamente bem -- de fato, os europeus precisam da energia da Rússia mais do que os russos precisam vendê-la. Politicamente, como veremos, os americanos precisam mais dos russos do que vice-versa. Os russos vinham se preparando para o ataque há meses, como discutimos, e atacaram.
O CERCO OCIDENTAL À RÚSSIA
Para entender o pensamento russo precisamos olhar para dois eventos. O primeiro foi a Revolução Laranja na Ucrânia. Do ponto-de-vista dos Estados Unidos e da Europa, a Revolução Laranja representou um triunfo da democracia e da influência ocidental. Do ponto-de-vista russo, como Moscou deixou claro, a Revolução Laranja foi uma intervenção financiada pela CIA nos assuntos internos da Ucrânia com o objetivo de trazer a Ucrânia para a OTAN e aumentar o cerco à Rússia. Os presidentes americanos George H. W. Bush e Bill Clinton haviam prometido à Rússia que a OTAN não se expandiria no território do ex-império soviético.
A promessa já tinha sido rompida em 1998 com a expansão da OTAN na Polônia, Hungria e República Tcheca -- e de novo em 2004 com a expansão que absorveu não só o resto dos ex-satélites soviéticos da Europa Central mas também os estados bálticos, que tinham integrado a União Soviética.
Os russos tinham tolerado tudo isso, mas as discussões para incluir a Ucrânia na OTAN representavam uma ameaça fundamental à segurança nacional da Rússia. Tornariam a Rússia indefensável, ameaçando a estabilidade da própria Federação Russa. Quando os Estados Unidos sugeriram que a Geórgia também seria incluída, levando a OTAN mais profundamente ao Cáucaso, a conclusão russa -- divulgada publicamente -- é de os Estados Unidos pretendiam cercam e dividir a Rússia.
O segundo evento foi a decisão da Europa e dos Estados Unidos de apoiar a separação de Kosovo da Sérvia. Os russos são aliados da Sérvia, mas a questão principal era essa: o princípio aceito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, para prevenir conflitos, é de que as fronteiras não sofreriam mudanças. Se esse princípio fosse violado no Kosovo, outras mudanças de fronteira -- inclusive de várias regiões que querem se tornar independentes da Rússia -- poderiam acontecer. Os russos pediram pública e privadamente que Kosovo não recebesse independência formal, mas que continuasse com sua autonomia informal, o que era o mesmo do ponto-de-vista prático. Mas os pedidos da Rússia foram ignorados.
A partir da experiência da Ucrânia os russos estavam convencidos de que os Estados Unidos estavam engajados em um plano estratégico de cerco e estrangulamento da Rússia. Da experiência de Kosovo concluíram que os Estados Unidos e a Europa não estavam preparados para considerar os desejos da Rússia mesmo em questões menores. Foi o ponto de rompimento. Se os interesses da Rússia não podiam ser acomodados em questões menores, então havia conflito entre o Ocidente e a Rússia. Para os russos, como dissemos, a questão era como responder. Tendo decidido não responder em Kosovo, decidiram responder onde tinham todas as cartas: na Ossétia do Sul.
Moscou tinha dois motivos. Um deles responder por Kosovo. Se Kosovo poderia ser declarado independente sob patrocínio do Ocidente, então a Ossétia do Sul e a Abkhazia, as duas regiões da Geórgia, poderiam ter a independência declarada sob patrocínio da Rússia. Qualquer objeção dos Estados Unidos e da Europa apenas confirmaria a hipocrisia. Isso era muito importante do ponto-de-vista de política doméstica russa, mas o segundo ponto era muito mais importante.
O primeiro-ministro da Rússia, Vladimir Putin, disse uma vez que o fim da União Soviética tinha sido um desastre geopolítico. Não significa que ele queria reter o estado soviético; queria dizer que a desintegração da União Soviética criou uma situação em que a segurança nacional da Rússia era ameaçada por interesses ocidentais.
Como um exemplo, considere que durante a Guerra Fria São Peterburgo ficava a 1.200 milhas de um país da OTAN. Hoje fica a 60 milhas da Estônia, integrante da OTAN. A desintegração da União Soviética deixou a Rússia cercada por um grupo de países hostis aos interesses da Rússia em vários graus e fortemente influenciados pelos Estados Unidos, Europa e, em alguns casos, China.
RESTAURANDO A ESFERA RUSSA
Putin não queria restabelecer a União Soviética, mas sim a esfera de influência da Rússia na região da ex-União Soviética. Para conseguir isso ele precisa de duas coisas. Primeiro, restabelecer a credibilidade do exército russo como força de guerra, pelo menos no contexto da região. Segundo, queria demonstrar que as garantias ocidentais, inclusive a participação na OTAN, não significavam nada diante do poder russo. Não queria confrontar a OTAN diretamente, mas queria confrontar e derrotar algum poder aliado próximo dos Estados Unidos, que tinha apoio, ajuda e assessores dos Estados Unidos e estava sob proteção americana. A Geórgia era a escolha perfeita.
Ao invadir a Geórgia como a Rússia fez (competentemente, se não brilhantemente), Putin restabeleceu a credibilidade do exército russo. Mas bem mais importante é destacar que, enquanto os Estados Unidos estiverem amarrados no Oriente Médio, as garantias americanas não têm valor. Essa lição não é para consumo dos americanos. É alguma coisa que, do ponto-de-vista da Rússia, os ucranianos, os países do Báltico e da Ásia Central precisam digerir. É uma lição que Putin quer transmitir à Polônia e à República Tcheca, também. Os Estados Unidos querem estacionar mísseis balísticos em instalações de defesa nestes países e os russos querem que eles entendam que ao fazer isso aumentam o seu risco, não a sua segurança.
Os russos sabiam que os Estados Unidos denunciariam sua ofensiva. Isso joga a favor dos russos. Quanto mais denúncias, maior o contraste com a falta de ação. Os russos querem demonstrar que as garantias americanas são conversa vazia. Os russos também sabem algo que é de vital importância: para os Estados Unidos, o Oriente Médio é muito mais importante que o Cáucaso e o Irã é particularmente importante.
Os Estados Unidos querem que a Rússia participe em sanções contra o Irã. Ainda mais importante, eles não querem que a Rússia venda armas para o Irã, especialmente os S-300, um sistema de defesa aérea particularmente eficaz. A Geórgia é uma questão marginal para os Estados Unidos; o Irã é central. Os russos estão em posição para causar problemas sérios para os Estados Unidos não só no Irã, mas também com venda de armas para outros países, como a Síria.
Assim sendo, os Estados Unidos têm um problema -- ou refocam a sua estratégia do Oriente Médio para o Cáucaso ou precisam limitar sua resposta na Geórgia para evitar que a Rússia responda no Irã. Mesmo que os Estados Unidos tivessem apetite para outra guerra na Geórgia, teriam que calcular a resposta da Rússia no Irã -- e possivelmente no Afeganistão (onde os interesses de Moscou correntemente estão alinhados com os do Ocidente).
Em outras palavras, os russos colocaram os americanos contra a parede. Os europeus, que não contam com forças militares e são dependentes da energia exportada pela Rússia, têm ainda menos opções. Se nada mais acontecer, os russos demonstraram que retomaram seu papel como poder regional. A Rússia já não é um poder global, mas é um poder regional significativo com muitas armas nucleares e uma economia que não vai mal no momento. Já forçou todos os países da periferia a reavaliar sua posição relativa a Moscou. Quanto à Geórgia, os russos parecem prontos para exigir a renúncia do presidente Mikhail Saakashvili. Militarmente, essa é a opção. É o que eles queriam demonstrar, e demonstraram.
A guerra na Geórgia, assim, marca o retorno da Rússia ao seu papel. Não é algo que tenha acontecido agora -- vem acontecendo desde que Putin assumiu o poder e se intensificou nos últimos cinco anos. Parte disso tem a ver com um aumento do poder russo, mas também com o fato de que as guerras no Oriente Médio deixaram os Estados Unidos desequilibrados e sem recursos.
Como escrevemos, esse conflito criou uma janela de oportunidade. A Rússia usou essa janela para deixar clara essa nova realidade em toda a região enquanto os americanos estão amarrados em outro lugar e dependentes dos russos. A guerra não foi uma surpresa; vem se delineando faz meses. Mas as fundações geopolíticas da guerra foram construídas desde 1992. A Rússia foi um império durante séculos. Os últimos 15 anos não foram uma nova realidade, foram uma aberração que seria retificada. Agora foi retificada.
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