"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quarta-feira, agosto 27, 2008

Repúdio à Reportagem da Veja

Fugindo de minhas habituais publicações que se limitam a repassar informações pinçadas de outros sites e que tenham algum interesse para a geografia, estou hoje publicando um artigo escrito por mim devido a minha imensa indignação com a reportagem de capa da revista Veja da semana passada. Dado esse aviso prévio aos leitores do meu blog, agradeço sua compreensão.


PRONTOS PARA?


Após uma semana da publicação da reportagem “Prontos para o século XIX” da revista Veja de 20 de agosto de 2008, não consegui digerir e nem tampouco entender em que estado mental se encontravam os autores da reportagem, no caso Camila Antunes e Marcos Todeschini.

No início da reportagem, é questionado o dilema exposto por um professor de geografia do Colégio Salesiano Dom Bosco de Goiânia em relação ao uso de chocadeiras.

Deixando de lado a questão moral de ser justo ou injusto o tratamento dispensado aos animais, pois não é essa a minha intenção, o caso é que comemos um animal que está pronto para o abate em torno de 30 dias. Na natureza, ou seja, criado livre no fundo de quintal sem qualquer auxílio da intervenção humana (referindo-me a anabolizantes, hormônios e outros estímulos), o mesmo animal estaria pronto para abate em torno de 90 dias. Quem arca com os problemas decorrentes dessa aceleração do crescimento das “chocadeiras”? O avicultor? O fabricante dos químicos utilizados? Ou será o consumidor em geral que não sabe o que está consumindo e tampouco sabe das conseqüências que podem advir desse consumo?

Não sei se os repórteres dessa notícia já ouviram falar em externalidades. Pois bem, esse é um conceito que, nesse caso, se refere a qualquer dano ou custo que uma corporação possa repassar aos incautos (entenda-se consumidores) sem que esse o permita ou até mesmo tenha conhecimento.

Logo em seguida, a reportagem ataca o professor Paulo Fiovaranti. Descreve-o como um esquerdista que procura fazer a “cabeça” da gurizada. Conhecendo o referido professor, sei muito bem que de esquerdista ele está longe. Por sinal, comentando com alunos, que foram seus alunos em anos anteriores, o conteúdo da reportagem consideraram um absurdo alguém imaginar o professor Paulo com sendo comunista e sendo um ativo promotor de lavagem cerebral de crianças inocentes.

Gostaria de salientar que a referida prevalência apontada no artigo sobre a tendência dos professores em esquerdizar a cabeça das crianças, nada mais é do que, simplesmente, uma postura mais crítica em relação aos conteúdos. Concordo que tal postura é decorrente, sim, de uma linha mais marxista que permeou as disciplinas de História e Geografia a partir da década de 80. Mas essa condição não torna ninguém esquerdizante, simplesmente transforma o educador em um personagem mais crítico da realidade. Afinal, queremos que nossos filhos aceitem tudo que lhes dizem como verdadeiro e se tornem cordeiros para os lobos, ou queremos que eles construam uma sociedade mais justa e possam discernir com maior consciência o certo do errado e buscar seus direitos?

Outro problema é querer estigmatizar como algo do passado o denominado desemprego estrutural. A não ser que toda a pesquisa tecnológica difundida pela mídia seja apenas para amostra e não se tencione fazer emprego real das descobertas, concordo que as máquinas não mais tiram emprego dos trabalhadores. Mas, como acredito que nada disso aconteça, a robótica e a informática suprimem determinadas funções nas sociedade, sim, antes desenvolvidas por trabalhadores. Em países como a Alemanha ou Japão, tais trabalhadores são absorvidos pelo setor terciário, principalmente na área de serviços. No nosso caso, temos a informalidade para nos consolar.

A propósito, Paulo Freire é internacionalmente reconhecido, traduzido em mais de 20 idiomas, não apenas inglês, francês, espanhol ou outras línguas em que grandes pensadores são traduzidos. E falo isso sem idolatria desse personagem “arcaico”, pois não sou um grande leitor de suas obras, portanto não posso e nem devo realizar criticas positivas ou negativas a seu respeito, mas apenas me ater aos fatos, como o que acima descrevi.

Por último gostaria ainda de fazer um comentário sobre o box “exemplos de falhas na cartilha”. Vou me ater a alguns casos que considerei mais escandalosos. Creio que quando se faz uma critica a algo, deve-se pelo menos, ter uma boa argumentação em relação ao que está escrevendo ou dizendo. Nesse caso não aconteceu.

Uma das críticas refere-se a um mapa sobre a rota da Coluna Prestes. O comentário da revista cita o fato de que, no mapa, a rota passaria pelo estado de Tocantins que só foi criado em 1988. Bom, seria interessante fazer o aluno compreender que tal marcha se empreendeu desde a região Sul, passando pelo Centro e terminando na região Leste. Utilizando o mapa da época. É evidente que para melhor compreensão do aluno se faz necessário mostrar a rota dentro de uma realidade que o aluno conhece. Fica mais prático e didático. Permite a adequação de um fato passado com algo conhecido e perceptível pelo aluno.

Outro comentário se refere a Canudos. Euclides da Cunha teceu comentários a partir de seu ponto de vista, e não fazendo uma análise da realidade. A comunidade de Canudos não realizava saque e nem atacava fazendas ou cidades próximas em busca de alimentos. Se eram “um exército de gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho”, como Canudos sobrevivia? Seria Antônio Conselheiro realmente um messias e praticava o milagre da divisão dos pães?

Joseph Stiglitz, nobel de economia, assessor de Bill Clinton, e Vice-Presidente Sênior Para Políticas de Desenvolvimento do Banco Mundial, demonstrou em seu livro “A globalização e seus malefícios” que o neoliberalismo empregado como “pílula mágica” a nações pobres não funciona. E não creio que o Stiglitz seja esquerdizante. Concordo que houve a saída de milhões da pobreza na China, mas não me consta que a China seja um país neoliberal, ou então estou sendo bombardeado constantemente pela mídia com uma mentira sobre a existência de um governo comunista chinês.

Outra crítica aborda as políticas globais do G-8. Se não estou enganado, enquanto forçavam o Brasil e outras nações a abrir seu mercado, desregulamentar o mercado de capitais e outras mudanças. O Brasil não conseguia atingir o mercado americano do aço e da laranja devido as fortes proteções internas (outros produtos ainda estão nessa condição). Na Europa, lutamos contra os fortes subsídios agrícolas. Isso não mostra que estamos diante daquele ditado do “faça o que eu digo, não faça o que faço”?

E, por último, a única real chance da revista em se dar bem: “(Che Guevara)... Nesse caso específico, o autor errou ridiculamente. Não fez história e sim conto. Conto porque empregou a partícula “se”e conjecturou o que poderia ter sido a vida de Che. Nesse momento, a revista poderia ter dito, mas isso não é história, é ficção científica, viagem no tempo com mundos paralelos, mas... “Tolice. Che Guevara poderia ter se...” Será que não perceberam que criticavam cometendo o mesmo erro. Isso é verdadeira falta de competência em até mesmo criticar um erro claro.

Escrevi esse texto em repúdio ao que classifico como tentativa de denegrir a imagem de profissionais sérios e competentes deste país. No Brasil não somos todos esquerdizantes e penso que a revista deveria se retratar em relação a tanta insanidade escrita

Um comentário:

Nara disse...

PAULO SÉRGIO,

Sou professora de LP do Colégio de Aplicação da UFSC e doutoranda da Pós-graduação em Lingüística da mesma universidade. Acabo de ler a reportagem da revista VEJA (20/08/08) e estou indignada com a forma tendenciosa e desrespeitosa com que os professores de um modo geral e principalmente os citados na reportagem foram tratados. A forma descontextualizada e debochada com que as aulas observadas foram encaixadas na reportagem para servir aos propósitos reacionários da revista foi extremamente antiética e merece uma resposta. E mais, merece um processo por difamação e danos morais e materiais que certamente causou e vai causar aos professores Paulo e Márcio e às escolas.
A Revista está assumindo a defesa dos interesses dos organismos internacionais ao tomar como parâmetros para dizer o que é um bom ensino apenas as avaliações do tipo PISA que objetivam a padronização do ensino. A opinião dos pais, professores e alunos é desqualificada e a realidade social do país e das condições de formação e de trabalho de grande parte dos professores são colocadas como coadjuvantes quando são questões centrais. Além disso, a revista omite o fato de que há parâmetros curriculares nacionais (sem entrar no mérito do documento) que apontam entre os objetivos principais da educação básica a formação de cidadãos críticos. O que eles estão defendendo é a volta da alienação e do controle sobre o que é ensinado na escola - que nunca foi desprovido de ideologia. Não querem uma escola que ensine a pensar e a criticar, mas uma escola que volte a transmitir conteúdos, a exigir decoreba e a des-humanizar o ensino. Eles é que estão atrasados: o positivismo já teve seu tempo; isso é irreversível.
Não me considero marxista, não sou ativista de esquerda, embora ache, sim, que ao trabalhar com Ciências Humanas e, portanto, com linguagem, nosso trabalho é político (não político-partidário); a linguagem não é, nunca foi nem nunca será neutra, o que não significa que todo professor queira "esquerdizar a cabeça das crianças".
Bem, espero que mais professores e pais se manifestem contra esta campanha reacionária da revista VEJA que, em 3 edições seguidas, trouxe posicionamentos unilaterais sobre educação: entrevista (Páginas amarelas-06/08/08), artigo/ensaio (Stephen Kanitz-13/08/08) e reportagem de capa (20/08/08).
Em tempo: Acho que seu texto deveria ser enviado à editoria da Revista VEJA e a outros meios de comunicação, pois eles não podem continuar trabalhando de modo tão tendencioso e irresponsável.
Nara