"Os bancos somente puderam transferir riscos porque outros agentes se dispuseram a assumir a contraparte dessas operações, ou seja, assumir estes riscos contra um retorno projetado que, à época, parecia elevado. Esses agentes formaram o shadow banking system", escrevem Maryse Farhi, professora do IE/Unicamp e pesquisadora do Cecon/IE/Unicamp e Marcos Antonio Cintra, professor do IE/Unicamp e pesquisador do CNPq, em artigo publicado no jornal Valor, 30-09-2008.
Eis o artigo.
O desenrolar da crise financeira, iniciada com a inadimplência das hipotecas americanas de alto risco (subprime) e a desvalorização dos imóveis e dos ativos lastreados em hipotecas, a partir de junho de 2007, foi explicitando o papel complexo e obscuro desempenhado por um conjunto de instituições financeiras. Essas instituições - bancos de investimento, hedge funds, fundos private equity, diferentes veículos especiais de investimento, companhias hipotecárias (Fannie Mae e Freddie Mac), seguradoras, fundos de investimento - funcionavam como banco, sem sê-lo.
Isto é, captavam recursos no curto prazo, operavam altamente alavancadas e investiam em ativos de longo prazo e ilíquidos. Mas, diferentemente dos bancos, eram displicentemente reguladas e supervisionadas, sem reservas de capital, sem acesso aos seguros de depósitos, às operações de redesconto e às linhas de crédito de última instância dos bancos centrais. Dessa forma, eram altamente vulneráveis, seja a uma corrida dos investidores (saque dos recursos ou desconfiança dos aplicadores nos mercados de curto prazo), seja a desequilíbrios patrimoniais. O conjunto dessas instituições tem sido chamado de shadow banking system, vale dizer, um "sistema bancário na sombra" ou paralelo.
Sua emergência e seu crescimento ocorreram quando os bancos comerciais passaram a desenvolver diversas formas de retirar de seus balanços os riscos de crédito, com o objetivo de ampliar suas operações e fugir dos coeficientes de capital requeridos pelos Acordos de Basiléia. Fizeram isso de diferentes maneiras: emitindo títulos com rendimentos atrelados aos reembolsos devidos pelos mutuários (hipotecas, dívida de cartão de crédito, da compra de automóveis, de estudantes, de corporações etc.), adquirindo proteção contra esses riscos nos mercados de derivativos e criando distintos veículos especiais de investimento: Special Investments Vehicles (SIV), conduits ou SIV-lites. Esses últimos tendem a se diferenciar pelo tamanho e composição do ativo e passivo. Em geral, os conduits tendem a ser maiores e menos arriscados, com ativos de até US$ 1,4 trilhão; os SIV, intermediários, com ativos em torno de US$ 400 bilhões; e os SIV-lites, com ativos menores, de cerca de US$ 12 bilhões, mas de alto risco. A carteira de ativos dos SIV-lites, que opera com alta alavancagem (40 a 70 vezes, dependendo do colateral), tende a ser composta por 96% de hipotecas residenciais securitizadas (RMBS) e 4% de CDO (Collateralized Debt Obligation). Todos eles têm algum mecanismo de liquidez total ou parcial garantido pelas instituições patrocinadoras.
Mas os bancos somente puderam transferir riscos porque outros agentes se dispuseram a assumir a contraparte dessas operações, ou seja, assumir estes riscos contra um retorno projetado que, à época, parecia elevado. Esses agentes formaram o shadow banking system. O sistema se desenvolveu tendo como pano de fundo as complexas relações que se estabeleceram entre inúmeras instituições financeiras nos mercados de balcão, por meio de contratos bilaterais e sem câmara de compensação. Nesses mercados, as instituições financeiras podiam cobrir seus riscos de câmbio, de juros e de preços de mercado de outros ativos; especular sobre seus preços; ou efetuar operações de arbitragem. A partir do final do Século XX, quando esses mercados de balcão passaram a negociar derivativos de crédito (credit default swaps, CDS) e títulos oriundos da securitização dos créditos concedidos pelos bancos comerciais ("produtos estruturados"), o sistema bancário e o shadow banking system se interpenetraram de modo quase inextrincável.
Dada a decisão estratégica de assumir os riscos e retornos do crédito bancário, as instituições do shadow banking system captavam recursos de curto prazo no mercado de capitais para adquirir títulos de longo prazo, com lastro em crédito emitidos pelos bancos, e/ou vendiam a eles proteção contra os riscos de crédito (CDS). Com a eclosão da crise, muitas passaram a apresentar profundos desequilíbrios financeiros, uma vez que não dispunham de reservas de capital; detinham ativos cuja liquidez desapareceu e, portanto, deixaram de ter preço; e foram confrontadas ao expressivo encolhimento de suas fontes de funding. Elas sofreram uma verdadeira "corrida bancária contra não-bancos".
Os bancos de investimento Bear Stearns e Merrill Lynch foram adquiridos por bancos universais; o Lehman Brothers faliu. O Tesouro se tornou acionista majoritário da Fannie Mae, da Freddie Mac, e o Federal Reserve assumiu participação na maior seguradora americana, a AIG. Já os bancos universais tiveram de recolocar em seus balanços os ativos deslocados para os SIV, registrando imensos prejuízos - o que os obrigou a buscar novos recursos para se recapitalizar. Os money market funds enfrentaram saques estimados em US$ 173 bilhões em poucos dias. Inúmeros hedge funds fecharam. Essa seqüência de eventos criou uma imensa destruição de riqueza e introduziu a possibilidade concreta de um colapso sistêmico na primeira quinzena de setembro de 2008.
A fragilidade da lógica de funcionamento dessa arquitetura financeira, bem como os elevados custos de resgate, parecem indicar que os sobreviventes deverão se curvar a uma supervisão e regulação mais estrita. Nesse contexto, está prestes a soar o réquiem do shadow banking system, pelo menos na forma como o conhecemos.
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