O foro especial dos parlamentares é um dos fatores que aumentam a insensibilidade na política brasileira em relação ao que é ético, moral, legal ou normativo. A avaliação é do professor de ética e filosofia da Unicamp Roberto Romano, para quem os escândalos no Congresso aumentam o sentimento de impunidade e reforçam a cultura da apropriação de recursos públicos para aumentar o patrimônio pessoal.
A entrevista é do jornal O Globo, 26-04-2009.
Eis a entrevista.
Como avalia os últimos episódios no Congresso?
Estão aumentando a sensação de impunidade, alheios à vida civil. É uma espécie de consciência de casta que leva a essa insensibilidade entre o que é ético, moral, legal, normativo.
Mas o que provocaria esse tipo de atitude dos legisladores?
O ponto crucial está no privilégio do foro. A partir do momento que foi proclamado o privilégio de foro, a audácia, a insensibilidade, a grosseria da classe política aumentou. Eles têm certeza da impunidade. Setores do Ministério Público, quando o privilégio de foro foi proclamado, se pronunciaram e disseram que estaria autorizada a vida boa dos improbos. Isso é verdade. Se olharmos o Supremo Tribunal Federal, o ministro que está encarregado de julgar o caso do mensalão (Joaquim Barbosa) já disse que considera o privilégio de foro uma teratologia política, sem razão de ser.
Se fossem julgados como cidadãos comuns, os parlamentares teriam mais cuidado com o dinheiro público?
Há uma coisa problemática do ponto de vista da Constituição, da moralidade administrativa, já que o próprio STF não é questionado por quem de direito. Temos a OAB, o Ministério Público, tudo o que deveria entrar com uma ação de inconstitucionalidade. Aí chegamos à hipocrisia que se instalou no país. É fácil transformar o Congresso na Geni da história, mas não perguntamos por que o STF não é interpelado. Não tenho ilusão de que o fim do foro privilegiado vá acabar com a corrupção, mas não tem sentido continuar do jeito que está. Além da oportunidade da delinquência, você dá oportunidade para quem delinque.
Como avalia o fato de os responsáveis por criar leis estarem no foco de escândalos?
Seguir a lei é uma coisa muito difícil, a lei é universal, inexorável, não pode ser quebrada. E quando, além de cidadão, você é legislador, a situação piora. Existe a cultura da apropriação de recursos públicos para fins pessoais, e que chegou ao (Fernando) Gabeira (que pertence ao grupo ético). O (senador Gerson) Camata, por exemplo, não é dos mais conhecidos com problemas no ponto de vista ético, e aconteceu. Quando você entra para a cultura da impunidade e tem certeza da impunidade, como no caso do foro privilegiado, isso vai se espalhando. Não gosto de metáforas médicas, não acho que é um câncer, porque o câncer é uma coisa inevitável e está na ordem da natureza. Como isso está na ordem da cultura, não é inevitável.
O corregedor da Câmara, ACM Neto, disse que a imprensa tenta fechar o Congresso...
Quando o corregedor usa esses termos, imagina o resto. Acabou a distinção de baixo clero, alto clero. Eles estão no “todos por todos”, têm o passaporte da impunidade. Tudo o que se fizer contra eles vai parar no STF, e nunca vai ser julgado. Ninguém, até hoje, foi punido pelo Supremo. A punição que existe é por abuso de autoridade, que levou dois governadores a perder o cargo, o que é problemático, porque privilegia o perdedor, abençoando a pessoa não escolhida pelo eleitor.
O que poderia ser feito para inibir esse tipo de ação?
O mecanismo tradicional seria uma eleição pela Assembleia Legislativa para mandato tampão. Faz eleição, representantes do povo votam e empregam o mandato tampão. Depois volta ao sistema tradicional. Do jeito que está não pode.
Qual o reflexo desses escândalos na sociedade?
Aumento da impotência, da idiossincrasia que já temos em termos de cultura, que é privilegiar governos autoritários. É a desconfiança em relação ao sistema representativo de governo. Cria esse vestibular para que governos possam exercer um poder sem o Congresso, e isso é péssimo.
Há um protecionismo entre os parlamentares para evitar que se denunciem?
É a lógica da sociedade secreta. Não por acaso, o filósofo Merleau Ponty, analisando Maquiavel, diz que esse mundo político corrompido lembra muito uma comunhão negra dos santos. Quer dizer, são santos na luz do dia. Mas a comunhão negra existe, e todos se protegem.
A viúva do senador Jefferson Peres recebeu R$ 118 mil de reembolso pelas passagens não utilizadas por ele. É justo?
É o verdadeiro caso da viúva que pôs a mão no dinheiro da Viúva. Ela se deu ao luxo de dizer que existe corrupção no Senado. Garibaldi (Alves, presidente do Senado) foi o homem cordial, ficou com dó e decidiu que podia resolver. Aquela coisa: aos inimigos, a lei...
Como avalia as medidas moralizadoras?
Estão colocando Chanel no. 5 em cima de carne putrefata. Não acho que são medidas moralizadoras, mas imoralizadoras. Querem aumentar o próprio salário, vamos ficar reféns deles. É imoralizador. Outra coisa grave é o casuísmo jurídico. Estão pensando em aumentar o salário sem generalizar a medida para a Assembleia Legislativa e câmaras de vereadores. É um microgolpe do estado. Vão mudar a Constituição para resolver um problema do bolso deles.
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