Na casa simples de madeira e material na Vila Elza, periferia de Viamão, RS, o retrato de formatura da professora Glaucia Teresinha Souza da Silva, 25 anos, ocupa lugar de destaque. Da parede da sala, voltada para a porta da frente e os olhos dos visitantes, pende a imagem sorridente da jovem educadora de 1ª a 4ª séries. Mas a face de Glaucia, sentada no sofá abaixo da foto afixada com orgulho pelos pais, com quem mora, em nada lembra a felicidade eternizada no papel.
A reportagem e a entrevista é de Itamar Melo e Marcelo Gonzatto e publicada pelo jornal Zero Hora, 26-04-2009.
Cabisbaixa, com crises ocasionais de choro, ela luta para se recuperar do traumatismo craniano provocado pela agressão de uma aluna na Escola Estadual Bahia, na Capital, dia 23 de março. Além das dores de cabeça, arrasta-se apoiada em muletas e enfrenta um trauma psicológico que a inibe até de sair ao pátio da casa. A realização do sonho da filha de uma merendeira escolar de virar professora se transformou em pesadelo quando deparou com a crescente hostilidade dos alunos.
Embora pretenda voltar a lecionar, precisa recuperar os movimentos e superar o medo. Confira trechos da entrevista em que a professora, também estudante de Direito com a matrícula trancada por falta de recursos, expõe um pouco do cotidiano vivido no interior das salas de aula:
Eis a entrevista.
Vale a pena lecionar?
É uma coisa que sempre gostei de fazer. Por mais que outras pessoas digam “tu ganha tão pouco”... Quando fazia Pedagogia, saía de casa de manhã cedo, ia para a Unisinos, voltava para trabalhar em Porto Alegre, voltava para a Unisinos de noite. Mas eu gostava. Me perguntavam se valia a pena tudo isso para ganhar uma miséria, e eu dizia “não me importo, é o que eu gosto”.
E gosta, ainda?
Eu gosto de dar aula. Claro, estão acontecendo coisas violentas, mas prefiro acreditar que isso é uma coisa à parte, que alguém vai tomar uma providência. Devemos pensar que, para cada aluno violento, tem 10, 15 outros que estão lá para aprender. Quando eu estudava, havia um respeito muito grande pelo professor. Entrei com cinco anos na Escola Gonçalves Dias, de Porto Alegre.
Quando passou a perceber a mudança no ambiente escolar?
O que noto é cada vez mais os pais delegarem as responsabilidades para a escola. Antigamente, as crianças também não vinham prontas para a sala de aula, mas se esperava que chegassem com um mínimo de educação e respeito. Hoje não, os pais acham que os professores têm obrigação de ensinar tudo, até as palavras mágicas, como “por favor” e “com licença”.
Os pais dos alunos dizem isso abertamente?
Muitos pais dizem isso mesmo: “A obrigação é de vocês”. Os pais trabalham cada vez mais. A gente passa quatro horas com os alunos, mas o dia tem 24 horas. O resto do tempo eles passam onde, com quem, ouvindo o quê? Eles aprendem com a sociedade. Tem de ter alguém com eles dizendo isso pode, isso não pode. Os alunos estão muito largados. O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) tem leis maravilhosas, mas está sendo mal-interpretado, porque ali tem direitos, mas tem deveres. Aprenderam a ler só os direitos.
O professor se sente desamparado?
O adolescente percebeu que tudo pode. Pode desafiar, xingar, bater, jogar, fazer o que for, porque é menor de idade. Se o professor levantar um pouco o tom de voz, está errado. Se for um pouco mais ríspido, está errado. O professor não pode dizer não. Alguns pais dizem que o professor não pode xingar. Não é questão de xingar, mas de mostrar que não é assim que funcionam algumas coisas.
Como isso aparece na sala de aula?
No desafio, na disputa de espaço, na disputa de poder. Posso contar uma situação que aconteceu comigo. Tive um aluno da 4ª série que, por ter 14 anos e ser bem maior do que eu, se achou no direito de dizer que eu não podia mandar nele. Pedi que me alcançasse o caderno para corrigir, e ele disse: “Não vou te dar, tu não vai mexer no meu caderno”.
Isso foi durante a aula, na frente de todos os alunos?
Sim, na frente de todo mundo. Eu pedi de novo o caderno, ele jogou na minha mesa, voou para o chão. Disse para ele juntar. Ele ameaçou me dar uma cabeçada. Ele disse: “O que é? Tu acha que vai falar mais alto comigo? Não vou fazer nada aqui dentro, mas não esquece que aqui dentro tu é minha professora, e lá fora tu não é nada minha e a gente se entende”.
Quando isso ocorre, influencia a forma como a turma vê o professor?
Depende. Conforme a turma, influencia. Não é que tu queiras ter a supremacia na sala de aula, mas tu esperas um mínimo de respeito. Se deixar um aluno coordenar a sala, vai chegar um momento em que tu vais perder o teu domínio de turma.
O problema só ocorre em escolas públicas?
Não, em geral. Quando pega um perfil de escola que é assim, pode acontecer muitas vezes.
O que leva a isso, o perfil do colégio, dos alunos, da direção?
Um pouco de tudo. A Bahia é bem localizada, mas atende um público que considera a si mesmo excluído. O nível socioeconômico é muito baixo, então eles já vêm para a aula com a questão da diferença: “Vão me tratar de tal jeito porque eu sou assim”. E a gente não trabalha assim, não interessa a cor, a classe social. Tu estás ali para trocar conhecimento. Quando eu tive o problema com aquele menino, ele disse que já tinha mandado três professores embora. Eu disse para ele: “Eu não vou embora”.
Outros três professores tinham desistido da mesma turma?
Sim. Eu fui a quarta professora no segundo mês de aula, no ano passado. Os outros desistiram. Eu fui até o final do ano, e a turma chegou ao fim bem diferente.
Inclusive aquele aluno que lhe ameaçou?
Aquele aluno desistiu.
Ele é que desistiu...
É, acabou sendo ele.
Com a saída dele tudo ficou mais fácil?
Não, tinha outros alunos-problema também. Mas tu vais conhecendo cada um dos problemas na sala de aula e vais aprendendo a lidar com eles, e vendo como tu chegas naquele aluno. Quando houve o problema com aquele menino, eu pensei: “Meu Deus, e agora, o que vou fazer?”. Me assustou. Mas comecei a ver outra possibilidade, olhar o jeito que eles vivem, onde trabalham, como o pai e a mãe são, a família desestruturada. Tentava achar desculpas para a reação deles em sala de aula. Acabei conseguindo conquistá-los, eles se apegaram a mim. Tanto que, no final do ano, alguns perguntaram se eu não podia continuar dando aula para eles. Então tem esse carinho também.
Eles valorizaram o fato de a senhora não ter desistido deles?
Acho que sim, porque estavam acostumados a que, ao dar o primeiro baque, as professoras sumissem. No final, comentaram: “Bah, professora, bem que a senhora disse que não iria desistir”.
Em muitas escolas, a aula acaba virando uma queda de braço com alunos que querem tirar o professor?
Tem, tem disso. É a realidade.
Isso é uma experiência diária?
É um baque diário que se tem. É gritaria, xingamento, agressão verbal o tempo inteiro. É a disputa de dizer “não vou sair”, “não vou fazer”, “não estou nem aí”. No final do dia, o professor está arrasado. É cumulativo. Tu chegas ao final do ano e pensas: o que vou fazer? Quero continuar aqui? Será que estou preparada para enfrentar tudo isso de novo? Vale a pena? Temos opção de assinar um termo pedindo transferência no final do ano. No ano passado, quando me deram a folha, eu disse: “Não, não vou pedir transferência.”
Por quê?
Porque percebi que, se tinha conseguido mudar uma turma, poderia tentar mudar as outras também. Não me arrependo de ter ficado. A minha turma neste ano estava muito boa. Talvez porque já me conheciam, já sabiam meu perfil de trabalho. Tanto que o embate que tive foi com uma aluna que não era minha. Acabei me envolvendo numa situação com alunos que não foram meus, que não sabiam como eu era, que talvez não tenham tido o carinho com que eu trato os meus alunos. Sou afetuosa, mostro que o mundo não é só pancada.
Se o ambiente da escola fosse menos estressante, teria sido mais fácil evitar o confronto que ocorreu?
Quando tu tens um ambiente que te ampara, talvez coisas como a que aconteceu possam ser evitadas. Mas precisaria ser um amparo geral, para o professor e para o aluno. Eu sempre busquei soluções. Em momento nenhum fui para agredir a aluna. Acordo às 5h, às 6h estou saindo de casa, caminho um horror para chegar até a escola. O acesso para mim é superdifícil. Mesmo assim, levanto, faço o planejamento, vou para lá, dou aula. Para quê? Para ouvir falarem mal de mim, para me xingarem? Os alunos já chegam com essa característica de se acharem excluídos. Qualquer palavra, qualquer coisa que tu fales, eles levam para o outro lado, porque estão preparados para brigar, para bater. É um clima pesado. Tudo o que tu falas pode ser mal interpretado.
Os estudantes levam as avaliações para o lado pessoal?
Depende de como tu colocas isso para eles. No ano passado, tive três alunos que foram reprovados. Chamei para conversar na hora de dar a notícia. Falei direto para eles, porque os pais, por mais que a gente chame, não vão à escola.
Não vão?
Não. Nem em um momento desses. No ano passado, no dia da divulgação da avaliação final, cheguei às 8h para entregar boletins, saí de lá ao meio-dia, e não veio um único pai. Nenhum. De toda a escola, apareceram três ou quatro pais.
Em que ocasião a senhora consegue ter contato com pais de alunos?
Quando eu imploro. Aí, às vezes, algum se compadece. O pai do aluno que me desafiou no ano passado apareceu só dois meses depois. Havíamos solicitado que o pai ou a mãe comparecessem. A mãe nunca podia porque trabalhava. Passou-se um tempo, e o pai apareceu com o menino, pediu desculpas pelo ocorrido. Assinamos um termo, por questão de segurança, que o menino não poderia me agredir de novo, e ele voltou a frequentar a escola. Ele frequentou mais um mês de aula, vinha um dia, faltava três, vinha dois, faltava quatro. Um dia não apareceu mais.
A senhora vê muitos professores desesperados?
Muitos. É um estresse a que todos estão submetidos, do Jardim até a 8ª série, porque não é só uma situação de adolescentes, é desde os pequeninhos, de fugirem da sala, de saírem correndo, de não respeitarem, de jogarem coisas no professor. É a situação rotineira. A maioria acaba chorando. Parece que a gente perde o chão em certos momentos, perde o controle no sentido de não saber o que fazer. É comum que alguém chore quando nos reunimos.
Seus colegas falam em desistir?
Muitos pensam em desistir. Teve uma colega no ano passado que me disse: “Não sei mais o que eu faço”. Não a respeitavam. Podia estar dando aula, e eles sequer copiavam o que ela colocava no quadro. Diziam que não iam copiar e não copiavam. Para evitar o incômodo, ela dizia: “Tudo bem, então não copia”. Porque sabia que ia ser só um enfrentamento cada vez maior. Mas dar aula para as paredes é complicado. Ela cansou. Chegou ao final do ano num esgotamento tal que perguntou se não poderia sair. Isso é muito comum.
E a senhora?
Eu adoro sala de aula. Para mim, estar fora seria o problema. Mas hoje tenho medo de dizer um “não” para um aluno. Não sei como vão reagir. A impressão que tenho é de que deixei de ser vista como antes. Sou a professora que foi agredida. Se eu chegar numa escola em que ouviram o que aconteceu e falar alguma coisa, o aluno pode responder: “O que tu quer, tu já apanhou de uma”. Tenho esse receio. Não sei como vai ser entrar em sala de aula de novo.
Hoje a senhora teria condições de encarar uma aula?
(Chorando) Não, não teria. Vou ser bem sincera, ainda não saí da sala da minha casa para o pátio. Não vou nem ao pátio. Já estou começando a caminhar de muleta, caminhando mais firme. Mas não vou. Não sei explicar. Não quero que as pessoas me vejam. Não quero.
Está recebendo auxílio psicológico?
Sim, psicólogo, psiquiatra, de neurologia também.
A senhora acredita que é possível ter uma educação de qualidade?
Acredito. Estudei sempre em escola pública e acredito que foram escolas muitas boas.
Qual seria a primeira medida para recuperar esses padrões?
Levar as famílias para dentro da escola, oferecer mais palestras, integração dos pais com os alunos, mostrar que a escola é uma ampliação da casa deles, que eles estão ali para ampliar o conhecimento, mas que não é só ali que vão aprender. No ano passado, fiz uma apresentação de final de ano com os alunos e me surpreendi. Ensaiamos dança e música. A apresentação foi linda, eles estavam muito felizes. Pais, tios, primos compareceram. No final, alguns vieram falar comigo: “Professora, prazer, sou a mãe do Fulano. Parabéns, meu filho mudou.”
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