Neste fim do primeiro trimestre de 2010, no momento em que nas frentes monetárias, financeiras, comerciais e estratégicas os sinais de confrontações multiplicam-se a nível internacional, enquanto a violência do choque social da crise se confirma no seio dos grandes países e conjuntos regionais, o LEAP/E2020 está em condições de fornecer a primeira sequenciação antecipativa do desenrolar desta fase de deslocamento geopolítico mundial.
Recordamos que esta fase não pode ser um prelúdio para uma reorganização perene do sistema internacional senão se, daqui até o meio desta década, as consequências do ruir da ordem mundial herdada da Segunda Guerra Mundial e da queda da Cortina de Ferro, forem plenamente extraídas. Esta evolução implica nomeadamente uma remodelação completa do sistema monetário internacional a fim de substituir o sistema actual fundamentado no dólar americano por um sistema baseado numa divisa internacional cujo valor derive de um cabaz das principais moedas mundiais ponderadas pelo peso respectivo das suas economias.
Ao publicar no ano passado nesta mesma época uma mensagem neste sentido numa página inteira do Financial Times, na véspera da cimeira do G20 em Londres, havíamos indicado que a "janela de tiro" ideal para uma tal reforma radical situava-se entre a Primavera e o Verão de 2009, sem o que no fim de 2009 o mundo entraria na fase de deslocamento geopolítico global [1] .
O fracaso da cimeira de Copenhaga em Dezembro de 2009, que pôs fim a cerca de duas décadas de cooperação internacional dinâmica sobre este assunto, num fundo de conflitos crescentes entre americanos e chineses, e de divisão ocidental sobre a questão [2] , é assim um indicador pertinente que confirma esta antecipação dos nossos investigadores. As relações internacionais degradam-se no sentido de uma multiplicação das tensões (zonas e personagens) enquanto a capacidade dos Estados Unidos para desempenhar o seu papel de condutor [3] , ou mesmo muito simplesmente de "patrão" dos seus próprios clientes, esfuma-se a cada mês um pouco mais [4] .
Neste fim do primeiro trimestre de 2010 pode-se nomeadamente sublinhar:
- a degradação regular das relações sino-americanas (Formosa, Tibete, Irão, paridade dólar-yuan [5] , baixa das compras de Títulos do Tesouro dos EUA, conflitos comerciais múltiplos, ...]
- as dissensões transatlânticas crescentes (Afeganistão [6] , NATO [7] , contratos de fornecimento da US Air Force [8] , clima, crise grega, ...)
- a paralisia decisional de Washington [9]
- a instabilidade incessante no Médio Oriente [10] e o agravamento das crises potenciais Israel-Palestina e Israel-Irão.
- o reforço da lógicas do blocos regionais (Ásia, América Latina [11] e Europa em particular)
- a volatilidade monetária [12] e financeira [13] mundial agravada
- a inquietação reforçada acerca dos riscos soberanos
- a crítica crescente do papel dos bancos estado-unidenses associada a uma regulamentação visando regionalizar os mercados financeiros [1]
- etc.
Paralelamente, num fundo de ausência de retomada económica [15] , as confrontações sociais multiplicam-se na Europa enquanto nos Estados Unidos o tecido social é pura e simplesmente desmantelado [16] . Se o primeiro fenómeno é mais visível que o segundo, é contudo o segundo o mais radical. O domínio da ferramenta de comunicação internacional por parte dos Estados Unidos permite-lhe mascarar as consequências sociais desta destruição dos serviços públicos e sociais americanos num fundo de pauperização acelerada da classe média do país [17] . E esta dissimulação é tanto mais facilitada porque, ao contrário da Europa, o tecido social americano é atomizado [18] : sindicalização fraca, sindicatos muito sectorizados sem reivindicação social geral, identificação histórica da reivindicação social com atitudes "anti-americanas" [19] , ... É verdade que, dos dois lados do Atlântico (e no Japão), os serviços públicos (transportes em comum, polícia, bombeiros, ...) e sociais (saúde, educação, aposentadoria, ...) estão em vias de desmantelamento, quando não o são pura e simplesmente encerrados; que as manifestações [20] , por vezes violentas, se multiplicam na Europa enquanto as acções de terrorismo interno ou de radicalização política [21] são cada vez mais numerosas nos Estados Unidos.
Na China, o controle crescente da Internet e dos media é sobretudo um indicador fiável do nervosismo agravado dos dirigentes de Pequim no que se refere ao estado da sua opinião pública. As manifestações sobre as questões de desemprego e de pobreza continuam a multiplicar-se, contradizendo o discurso optimista dos líderes chineses sobre o estado da sua economia.
Na África, a frequência dos golpes de Estado acelera-se desde o ano passado.
Na América Latina, apesar dos números macroeconómicos bastante positivos, a insatisfação social alimenta riscos de mudanças de rumos políticos radicais, como se viu no Chile.
O conjunto destas tendências está em vias de constituir muito rapidamente um "coquetel sócio-político explosivo" que conduz directamente a conflitos entre componentes da mesma entidade geopolítica (conflitos estados federados/estado federal nos Estados Unidos, tensões entre Estados membros na UE, entre repúblicas e federação na Rússia, entre províncias e governo central na China), entre grupos étnicos (ascensão dos sentimentos anti-imigrados um pouco por toda a parte) e recurso ao nacionalismo nacional ou regional [23] para canalizar estas tensões destrutivas. O conjunto desenrola-se num fundo de pauperização das classes médias no Estados Unidos, no Japão e na Europa (em particular no Reino Unidos e nos países europeus e asiáticos [24] onde as famílias e as colectividades estão cada vez mais endividadas).
Neste contexto, o LEAP/E2020 considera que a fase de deslocamento geopolítico mundial se vai desenrolar de acordo com cinco sequências temporais, que são desenvolvidas neste GEAB Nº 43, a saber:
0. Iniciação da fase de deslocamento geopolítico mundial – 4º trim. 2009 / 2º trim. 2010
1. Sequência 1: Conflitos monetários e choques financeiros
2. Sequência 2: Conflitos comerciais
3. Sequência 3: Crises soberanas
4. Sequência 4: Crises sócio-políticas
5. Sequência 5: Crises estratégicas
Neste número do GEAB, nossa equipe apresenta igualmente os oito países que lhe parecem mais perigosos do que a Grécia em matéria de dívida soberana, ao mesmo tempo que apresenta a sua análise da evolução pós-crise da economia financeira em relação à economia real. Finalmente, o LEAP/E2020 apresenta as suas recomendações mensais (divisas, activos, ...), inclusive com certos critérios para uma leitura mais fiável das informações no contexto particular da fase de deslocamento geopolítico mundial.
(1) Joseph Stiglitz e Simon Johnson não dizem outra coisa quando consideram que a crise está em vias de se tornar uma oportunidade falhada de reforma do sistema financeiro mundial que vai levar rapidamente a novos choques. Fonte: USAToday , 12/03/2010
(2) Americanos e europeus têm posições diametralmente opostas sobre este assunto e a chegada ao poder de Barack Obama não fez senão tornar mais complicado o posicionamento público dos europeus (uma vez que eles se afirmaram à partida como "obamófilos") sem mudança dos dados de fundo.
(3) Mesmo no domínio da investigação, o lugar dos Estados Unidos recua muito rapidamente. Assim, a classificação mundial das melhores instituições de investigação não conta com mais de seis instituições americanas entre as quinze primeiras, contra quatro europeias e duas chinesas; e nenhuma nos três primeiros lugares. Fonte: Scimago Institutions Rankings 2009 , 03/2009
(4) Como é ilustrado pela atitude de Israel que a partir daqui age de modo quase insultuoso em relação a Washington. É um indicador importante pois ninguém melhor que os aliados mais próximos está em condições de perceber o grau de impotência de um império. Os inimigos ou os aliados recentes ou afastados são incapazes de uma tal percepção pois não têm um acesso tão íntimo ao poder central, nem um recuo histórico suficiente para poder detectar uma tal evolução. O editorial de Thomas Friedman no New York Times de 13/03/2010 ilustra bem o desconcerto das elites americanas face à atitude cada vez mais desenvolta dos seu aliado israelense, e igualmente a incapacidade da administração americana para reagir com firmeza a esta desenvoltura.
(5) O tom sobe consideravelmente sobre esta questão, que se torna um jogo de poder tanto simbólico como económico para Pequim, assim como para Washington. Fontes: China Daily , 14/03/2010; Washington Post , 14/03/2010.
(6) A provável retirada de um grande número de tropas da NATO para fora do Afeganistão em 2011 leva assim a Rússia e Índia a desenvolverem uma estratégia comum, nomeadamente com o Irão, para prevenir um retorno dos talibans aos poder! Fonte: Times of India , 12/03/2010
(7) Além da queda do governo holandês sobre a questão do Afeganistão, é agora da Alemanha que vem a ideia de integrar a Rússia na NATO, uma boa velha ideia russa, com o pretexto de que a NATO não é mais pertinente na sua forma actual. Fonte: Spiegel , 08/03/2010
(8) Os europeus estão muito exasperados após a decisão de Washington de eliminar de facto a oferta europeia do grande contrato de renovação dos fornecedores da US Air Force. Esta decisão provavelmente marca o fim do mito (em voga na Europa) de um mercado transatlântico dos armamentos. Washington não deixará outras companhias além das suas ganharem estes grandes contratos. Os europeus vão portanto ter de encarar seriamente abastecerem-se essencialmente junto à sua indústria de defesa. Fonte: Financial Times , 09/03/2010
(9) Mesmo o Los Angeles Times de 28/02/2010 reflectia as inquietações do historiador britânico Niall Ferguson , o qual considera que o "império americano" a partir de agora pode afundar-se do dia para a noite como foi o caso da URSS.
(10) E o facto de o conjunto do mundo árabe estar doravante fortemente afectado pela crise económica mundial vai acrescentar-se à instabilidade regional crónica. Fonte: Awid/Pnud , 19/02/2010
(11) A Venezuela equipa-se assim com aviões de caça chineses. Uma situaçáo de cenário de ficção política há apenas cinco anos. Fonte: YahooNews , 14/03/2010
(12) Como havíamos antecipado nos GEAB anteriores, quando se dissipar a "crise grega" retorna-se às realidades das tendências pesadas da crise e, como por acaso, desde há alguns dias começa-se a ver novamente análises que põem em perspectiva a perda pelos Estados Unidos da sua classificação AAA referente à sua dívida; e ao fim do estatuto de moeda de reserva do dólar. Fontes: BusinessInsider/Standard & Poor's , 12/03/2010
(13) O gráfico abaixo ilustra a volatilidade cada vez mais forte que caracteriza as praças financeiras e que, segundo LEAP/E2020, é um indício de grande risco sistémico. Se se examina a rentabilidade do New York Stock Exchange ao longo de mais de 180 anos, constata-se que os anos da década passada (2000-2008 e poder-se-ia certamente acrescentar 2009) figuram nos extremos dos melhores e dos piores resultados. É um resultado estatisticamente improvável a não ser que os mercados financeiros, e as tendências que os animam, tenham entrado numa fase de incerteza radical, destacadas da economia real e da sua inércia. A dimensão das ordens dadas nos mercados financeiros mundiais reduziu-se assim 50% em cinco anos, sob o efeito da automatização e dos métodos de "alta frequência" , aumentando portanto a sua volatilidade potencial. Fonte: Financial Times , 21/02/2010
(14) A recente advertência do secretário de Estado do Tesouro dos EUA, Thimoty Geithner, respeitante aos riscos de deriva transatlântica em matéria de regulamentação financeira não é senão o último indício desta evolução. Fonte: Financial Times , 10/03/2010
(15) Último exemplo até à data: a Suécia que pensava ter atravessado a crise encontra-se novamente mergulhada na recessão diante dos muito maus resultados do 4º trimestre de 2009. Fonte: SeekingAlpha , 02/03/2010
(16) A taxa de desemprego nos EUA doravante está em torno dos 20%, com picos de 40% a 50% para as classes sociais desfavorecidas. Para evitar enfrentar esta realidade, as autoridades americanas praticam em muito grande escala uma manipulação dos números da população activa e da população em busca de emprego. O artigo de Steven Hansen publicado em 21/02/2010 no SeekingAlpha e intitulado "Which economic world are we in?" apresenta uma perspectiva interessante a respeito.
(17) Uma análise certamente radical mas muito bem documentada e bastante pertinente desta situação é desenvolvida por David DeGraw no Alternet de 15/02/2010.
(18) Fonte (inclusive os comentários): MarketWatch , 25/02/2010
(19) É a suspeição do "Vermelho", que dormiria em cada sindicalista ou manifestante por causas sociais.
(20) Mesmo nos Estados Unidos onde os estudantes manifestam-se contra os aumentos dos direitos de matrícula e onde a população inquieta-se com o encerramento da metade das escolas públicas numa cidade como Kansas City, ao passo que em Nova York são 62 as brigadas de bombeiros que vão ser suprimidas. Fontes: New York Times , 04/03/2010; USAToday , 12/03/2010; Fire Engineering , 11/03/2010
(21) De Joe Stack aos Tea Parties , a classe média americana tende a radicalizar-se muito rapidamente desde meados de 2009.
(22) A despesa nominal é o valor total das despesas numa economia não corrigida da inflação. É de facto o valor da procura total. Constata-se neste gráfico que a crise assinala um colapso da procura.
(23) O termo regional é utilizado aqui no sentido geopolítico, de conjunto regional (UE, Asean, ...).
(24) Assim, na Coreia do Sul, o endividamento das famílias continua a agravar-se com a crise enquanto as empresas acumulam reservas de liquidez ao invés de investir pois não crêem na retomada. Fonte: Korea Herald , 03/03/2010
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