O noticiário das últimas semanas dá a impressão de que um surto de loucura se apoderou de criminosos – tal o nível de violência gratuita em que eles estão engolfados. Não basta roubar. Muitos assaltantes humilham, espancam, torturam ou matam a vítima, ante o menor gesto que essa faça. Ou, o que é pior, sem qualquer esboço de resistência por parte de quem é assaltado.
A reportagem é de Humberto Trezzi e publicada pelo jornal Zero Hora, 19-03-2010.
São gestos gratuitos e impulsivos, que pegam desprevenidos os cidadãos, atormentam as autoridades e rasgam manuais de planejamento de segurança pública. Um fenômeno perceptível tanto no Estado quanto em outras partes do Brasil e que tem as drogas, como o crack, como fio condutor.
Em Espumoso, no domingo, um padre foi esbofeteado e levou coronhadas de dois ladrões que entraram na casa paroquial para levar o dinheiro da missa. Em Porto Alegre, quarta-feira, um motoqueiro foi assaltado duas vezes em 10 minutos e presenciou um terceiro assalto no qual uma mulher foi baleada sem ter reagido. Em Novo Hamburgo, no mesmo dia, uma advogada foi morta ao tentar arrancar o carro, durante assalto. Em Estrela, uma criança de cinco anos foi torturada com fogo e espancada por um adolescente de 15 anos, viciado em crack, que exigia dinheiro.
Quando religiosos são espancados e crianças torturadas, alguma coisa está muito errada, pondera o subcomandante-geral da Brigada Militar, coronel Jones Calixtrato dos Santos. Padrões mínimos de ética, aqueles aprendidos nos primeiros anos de vida, são rompidos sem pudor, dando mostras de uma sociedade profundamente enferma, comenta o militar.
– Não tenho dúvidas de que o nível de violência dos criminosos está aumentando. Mesmo que as estatísticas mostrem certo declínio no número de assaltos, eles estão mais violentos. E a culpa disso é o crack, a mais perversa dentre um monte de drogas perversas. Ele está por trás do roubo de veículos, dos homicídios, dos assaltos e, óbvio, do tráfico – analisa Jones.
O promotor Eugênio Amorim, há duas décadas atuando em varas do júri, assina embaixo das afirmativas do coronel e acrescenta outros fatores. Ele acha que, à ascensão do crack como droga preferencial, deve-se acrescentar as causas da violência e a impunidade de que gozam os criminosos.
– Sabemos que até 70% dos crimes são cometidos por presidiários do semiaberto ou em liberdade condicional. Fora de esquadro em função das drogas, fora de enquadramento em função da impunidade, estão livres, leves e soltos para roubar. E, o que é pior, para matar – diz Amorim.
O exemplo clássico, segundo Amorim, está no caso da advogada Viviane Rieck dos Santos, morta quarta-feira em Novo Hamburgo por dois ex-presidiários viciados em crack. Ele considera que a droga complica todos os planos de segurança pública, já prejudicados por leis que beneficiam mais os criminosos do que as suas vítimas.
A droga está por trás inclusive de crimes bárbaros que não envolvem roubo. É o caso do assassinato do cartunista Glauco Vilas Boas, praticado por um conhecido dele, ao que tudo indica em meio a um surto psicótico impulsionado pelo uso de drogas.
Roubos sob encomenda
O diretor do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil, delegado Ranolfo Vieira Junior, soma um terceiro fator que contribui para mortes em assaltos, além do crack e da impunidade: a sempre pujante indústria do roubo de veículos. Em períodos de crescimento econômico como o que o país atravessa, a venda de carros aumenta – e, com ela, o número de assaltos com vistas à clonagem de automóveis ou seu desmanche para revenda de peças. Foi num desses roubos sob encomenda que morreu no final de fevereiro, ao reagir a tiros contra os ladrões, o então secretário da Saúde de Porto Alegre Eliseu Santos. Foi noutro assalto do gênero que a advogada Viviane, de Novo Hamburgo, foi morta.
O curioso é que a epidemia de violência parece ter contaminado não apenas os assaltantes de ocasião, como os viciados em crack que espancam suas vítimas em troca de um carro de pouco valor ou de míseros trocados. O crime organizado, aquele planejado em minúcias e com precisão militar, também tem apelado para métodos aterrorizantes. Em pelo menos cinco ataques a estabelecimentos bancários registrados desde fevereiro no Rio Grande do Sul, os bandidos explodiram cofres e postos bancários, pouco ligando se a ação geraria mortos, feridos ou traumas na população.
O sociólogo Alex Niche Teixeira, do Grupo de Pesquisa em Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acredita que ações bombásticas do crime organizado nada têm a ver com o surto de violência experimentado nos últimos tempos. Esse é resultado direto do crack e seu potencial de afrouxar os “freios sociais” de quem o consome.
O especialista adverte: é necessário um estudo mais profundo para verificar se estamos mesmo diante de uma curva ascendente e persistente de violência, ou se trata apenas de uma bolha sem importância estatística (mas com muitas vítimas).
– Mas o certo é que o crack e outras drogas pesadas são a novidade perversa no crime. Tanto pela desinibição para agir com violência quanto pela necessidade que ele gera de mais crimes para sustentar o hábito – conclui Teixeira.
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