Publicamos aqui trechos de uma conferência proferida pelo prêmio Nobel de economia de 2001, Joseph E. Stiglitz, da Columbia University, por ocasião de um encontro sobre a globalização à luz da encíclica "Caritas in veritate", que ocorreu em Nova York na sede das Nações Unidas, organizado pela Missão do Observatório Permanente da Santa SéONU e pela Fundação Path to Peace.
O texto foi publicado no jornal do Vaticano, L'Osservatore Romano, 17-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Como escrevi em tom de brincadeira em um livro meu, a crise traz a etiqueta "made in USA". Exportamos a filosofia da desregulação que causou a crise e permitimos que ela se estendesse rapidamente em todo o mundo e também exportamos os nossos empréstimos hipotecários tóxicos. Sempre agradeço aos europeus por ter adquirido os nossos empréstimos tóxicos e por ter feito com que a crise norte-americana não fosse pior até do que é.
A situação é muito grave. Atualmente, um em cada seis norte-americanos que gostariam de ter um trabalho em tempo integral não o tem. A taxa de desemprego oficial está ligeiramente abaixo dos 10%, mas mascara o fato de que muitas pessoas aceitaram realizar trabalhos "part-time" na falta de outro. Muitos se retiraram da competição e, depois de ter buscado um trabalho durante um ano sem encontrá-lo, deixaram de procurá-lo. Nas estatísticas oficiais, essas pessoas não são consideradas desempregadas, mas sim "trabalhadores desencorajados". Pela primeira vez nos EUA, há um número altíssimo desses desempregados, não mais empregados há muito tempo. Cerca de 40% estão desempregados há mais de seis meses, e esse é um elemento importante, porque quanto mais tempo se está desempregado, mais se dá fundos às economias, e as capacidades diminuem.
Segundo a opinião geral, os EUA voltarão a um nível de desemprego normal na metade do século. Quando vocês ouvem dizer que perdemos só 36.000 postos de trabalho no mês passado, só 36.000, vocês devem lembrar que, em um ano normal, temos cerca de 150.000 novas contratações.
No que se refere aos proprietários de casas, no âmbito dos quais começou a crise, não fizemos quase nada. Mais de um em cada quatro norte-americanos deve pagar um empréstimo superior ao valor da sua própria casa. Isso significa que aquele bem se tornou um passivo. Isso terá efeitos profundos e a longo prazo sobre a nossa economia. Os EUA foram um dos mercados de trabalho mais dinâmicos. As pessoas se mudavam frequentemente para mudar de emprego, mas como só é possível se transferir vendendo a própria casa, não houve perdas. Assim, também por isso o mercado do trabalho está congelado.
Uma das coisas que perturba um economista é o desperdício de recursos, ou seja, o desequilíbrio entre o que a economia é capaz de produzir e o que efetivamente produz. Devemos lembrar que nenhum governo jamais desperdiçou dinheiro como o setor financeiro privado norte-americano fez ou deixou fazer, ao ter desperdiçado exatamente três trilhões de dólares. Naturalmente, em uma economia mais vasta, pode-se desperdiçar dinheiro mais facilmente, mas o que ainda perturba é que não é esse o modo em que as economias de mercado deveriam agir. E agora nos encontramos em uma situação global de enfraquecimento econômico na qual há capacidades enormes e, ao mesmo tempo, necessidades insatisfeitas.
Nos últimos 200 anos, a ideia mais importante na economia é provavelmente a teoria de Adam Smith da "mão invisível". Se fosse verdadeira, seria maravilhoso. É como se a busca do interesse próprio fosse conduzida por uma mão invisível, acima da sociedade. Essa ideia é maravilhosa porque defende que, em uma economia de mercado, na qual as empresas buscam a maximização do lucro, a busca de cada um pelo interesse próprio provoca resultados positivos. Não há necessidade do governo. O aspecto mais importante dessa teoria é que não há necessidade da ética. A única coisa não ética é não ser muito egoístas. Tudo o que se deve fazer é entender qual é o interesso próprio, persegui-lo avidamente, e tudo na sociedade irá bem. Devo admitir que gostaria que isso fosse verdade, porque a vida seria muito mais simples.
Um dos aspectos da pesquisa teórica que me levou a receber o prêmio Nobel era constituído por um conjunto de questões ligadas às imperfeições da informação tão difundidas na economia e que eu defendo como "assimetrias de informação". O que eu demonstrei com o meu colega Bruce Greenwald é que o motivo pelo qual a mão invisível muitas vezes pareceu invisível é que justamente ela não existe. Não existe. Em outras palavras, a busca pelo interesse próprio não necessariamente leva à eficiência econômica. O mais extraordinário é que ainda existem alguns seguidores de Adam Smith, alguns ainda acreditam nele. No entanto, não acho que alguém acredite verdadeiramente que a ávida busca de lucro dos banqueiros conduz ao bem-estar da nossa sociedade. Esse fracasso deve nos fazer refletir, deve demonstrar que a teoria que dominou durante 225 anos está errada.
Uma outra dimensão que eu acho que não recebeu a atenção necessária é a dimensão ética ou moral.
Ao longo dos anos, foram combatidas muitas batalhas para decidir o que era legal e o que não era, batalhas, se poderia dizer, por um comportamento ético, nas quais, porém, venceu quem teve um comportamento não ético. Algumas atitudes eticamente reprováveis são muito complexas e difíceis de explicar, outras são de imediata compreensão. Entre as coisas mais escandalosas, está o empréstimo predatório. Para quase todas as religiões, é preciso evitar a usura, porque ela representa uma assimetria de poder contratual. Se são pedidos 30%, 40% ou 50% de lucro, isso é considerado uma exploração. Pois bem, as taxas sobre os cartões de crédito totalizam 30% ao mês. Quero dizer que a taxa anual corresponde a 30% ao mês. Trata-se de uma taxa muito lucrativa e não corresponde simplesmente a um justo ressarcimento para o risco assumido. Até os limites da lei sobre a usura são superados.
Muitos sabem que, nos EUA, temos uma coisa que se chama "Rent-a-Center", em que te dizem "não cobramos juros, emprestamos móveis". Na realidade, eles mudaram o nome, mas se trata de um empréstimo com taxas de juros de 50% ou superiores. Estudei o caso de uma mulher que comprou 300 dólares em móveis, em dois ou três anos pagou 3.000 dólares, e os móveis ainda não são de sua propriedade. A questão está justamente na difusão dos empréstimos predadores. Houve uma grande batalha para dar fim a eles, mas os predadores venceram. A crise demonstra que, em um certo sentido, eles prejudicaram a si mesmos. Permaneceram vítimas das suas próprias maquinações, mas também nós somos vítimas, porque acabamos pagando por tudo isso.
Um outro aspecto importante é o relativo aos cartões de crédito, ou seja, do seu abuso. Examinando os contratos relativos, compreende-se que se tratam de abusos, perpetrados em dano de pessoas que não entenderam que, utilizando o cartão, acabarão pagando 35 dólares por uma xícara de café. Além disso, é justamente dos pobres que esse tipo de prática bancária obtém os maiores lucros. Isso nos diz algo sobre a ética com a qual é gerido esse tipo de coisas.
Um outro aspecto do qual falei em um trabalho anterior se refere à verdade. Uma das principais razões da criação de alguns dos produtos financeiros foi obscurecer o que estava acontecendo. O exemplo recente mais famoso é o da Goldman Sachs. A ideia de fundo era que fosse aceitável buscar enganar o governo e não pagar os impostos. Os bancos e as sociedades de balanço, tendo descoberto o modo para enganar o governo, decidiram utilizá-lo também para enganar os próprios investidores. Pensemos na Enron. Quem causou a crise em larga escala foi, dentre outros, a remoção de itens do orçamento. O que é interessante é que, no fim, os próprios bancos não sabiam mais qual era a sua receita. Sabiam que não podiam sabê-la e, assim, sabiam também que não podiam saber o orçamento de ninguém mais, e esse é o motivo pelo qual os mercados do crédito se congelaram. Isso contribuiu muitíssimo à queda da economia.
Depois, visto que haviam sido tão criativos ao elaborar esses produtos enganadores, buscou-se vendê-lo. Assim, a Goldman Sachs vendeu à Grécia um produto tóxico para se assegurar de que a União Europeia não pudesse verdadeiramente entender de quais números se tratava. Isso deu tão certo que não conhecemos verdadeiramente o tamanho do engano. Mas a consequência é que, uma vez que você perde a confiança, não pode mais ter confiança nem naquilo que deveria. E é justamente isso que está acontecendo no nosso sistema financeiro e na nossa sociedade. Não sabemos mais em quem acreditar. Quando uma sociedade perde a confiança, isso tem consequências sobre o modo de trabalhar.
Há uma outra questão geral que desejo levantar. Um dos motivos pelos quais a economia é tão importante é que ela ajuda a formar a sociedade, os indivíduos. Vários estudos demonstraram que quanto mais os indivíduos estudam economia, mais se tornam egoístas como os economistas lhes sugerem ser.
Não é uma visão bonita da vida, mas acho que é verdade. A consequência real disso está constituída pelas declarações de que o setor financeiro fez sobre as motivações e sobre os incentivos. No setor privado, por exemplo, foram concedidos empréstimos para a construção habitacional que custaram muito dinheiro e fizeram com que aqueles que os concediam ganhassem muitíssimo dinheiro, por meio de retribuições com incentivos pagas para desenvolver um péssimo trabalho.
Pensemos na própria noção de retribuição com incentivo. Que tipo de médico é que, bem no meio da operação cirúrgica, te diz o preço e fala: "Estou começando a ficar cansado. Estou extraindo o seu coração. Se você quer que eu preste bem atenção nesta última parte da operação, deve me dar um incentivo porque senão eu me distraio"? Acharemos isso totalmente inaceitável. Os banqueiros dizem que, se podemos lhes dar só 5 milhões de dólares, então merecemos a metade da sua atenção. Se queremos 70% da sua atenção, devemos dar 10 milhões de dólares. Se queremos 80% da atenção, devemos pagar ainda mais.
Esse é só um exemplo de como a economia está moldando a nossa sociedade e de como nós aceitamos esses comportamentos como se fossem naturais. Eu não sei se os banqueiros são estúpidos ou desonestos. Mas um elemento de desonestidade existe. Se analisamos os bônus de incentivo, descobrimos que, na realidade, são estímulos para se comprometer em empresas excessivamente de risco e em comportamentos míopes dispostos a fazer com que os administradores ganhem em dano de acionistas, de obrigacionistas e de qualquer outra pessoa da sociedade. Não existem boas estruturas para os incentivos. Se não o sabem, devemos criticá-los e lhes perguntar por que deveríamos pagar tanto por não terem entendido nem o que é uma boa estrutura de incentivo. Se o sabem, trata-se de um engano.
Tudo isso levanta muitas questões importantes sobre a organização da nossa sociedade e sobre o papel do lucro. Penso que, talvez, a única coisa positiva da nossa crise é que levou a um re-exame do modo em que a sociedade e a economia funcionam. junto à
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