O antropólogo francês David Le Breton é conhecido como o maior especialista do mundo em corporeidade - a análise do corpo no contexto social. Para ele, o corpo não pode ser visto apenas como um suporte da alma. “Corpo e ser são indissociáveis. Tanto que não dizemos ‘olha, ali vai aquele corpo’. Dizemos ‘ali vai aquele homem, aquela mulher, aquela pessoa’.” Autor de Adeus ao Corpo (Ed. Papirus) e A Sociologia do Corpo (Ed. Vozes), Le Breton é professor de sociologia na Universidade Marc Bloch, em Estrasburgo, na França, e é membro do Institut Universitaire de France. A reportagem e a entrevista é de Flávia Tavares e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 05-02-2008.
Eis a entrevista.
O que é o corpo e o que ele representa nas interações sociais?
A condição humana é corporal. O corpo não é apenas um suporte. Ele é a raiz identificadora do homem ou da mulher, o vetor de toda a relação com o mundo, não só pelo que o corpo decifra através das percepções sensoriais ou da sua afetividade, mas também pela maneira como os outros nos interpretam diante dos diferentes significados que lhes enviamos: sexo, idade, aparência, movimentos, mímicas, etc. Por meio do corpo, o indivíduo assimila a substância da sua vida e a traduz para os outros por meio de sistemas simbólicos que ele divide com os membros de sua comunidade.
O corpo é a expressão máxima de raça, origem e ancestralidade?
Hoje, num contexto de individualização do sentido e de mercantilização do mundo, o corpo tornou-se um simples acessório. Sua antiga sacralidade ficou obsoleta, ele não é mais o suporte inquebrantável de uma história pessoal, mas uma forma que se recompõe incansavelmente ao gosto do momento. O consumismo em que estão mergulhadas as sociedades, e particularmente as jovens gerações, fez do corpo um objeto de investimento pessoal. Agora, o que importa é ter um corpo seu, assinado. O design não é mais exclusividade dos objetos.
O que mudou na nossa relação com o corpo ao longo da história?
Durante muito tempo, o corpo não foi muito questionado, ele não representava nenhuma preocupação. Numa frase famosa, Freud fala da anatomia como um destino. As pessoas assumiam a forma de seu corpo e ninguém era julgado pela sua aparência, porque ninguém tinha realmente influência sobre ela. Agora, o importante é modificar as partes essenciais do corpo, para deixá-las conforme a idéia que a pessoa tem de si própria. O corpo se tornou um alter ego, uma duplicata, uma projeção de si mesmo, um pouco decepcionante, mas pronta para modificações. Sem isso, seu corpo seria uma forma incapaz de abrigar suas aspirações.
Que uso fazemos do nosso corpo socialmente?
O corpo é modelado por um contexto social e cultural. É o primeiro objeto de comunicação porque, antes de começar a falar com o outro, nós o olhamos e prestamos atenção a uma infinidade de dados físicos e de vestuário que, por um lado, condicionam o tom da conversa.
Quem não se cuida ou se deixa envelhecer é desvalorizado?
O culto ao corpo atinge as categorias sociais de maneira desigual. Os homens, por meio do culturismo por exemplo, valorizam o seu “sobrecorpo” , mas eles nada têm a perder. Não é o caso das mulheres, que têm a obrigação social de manter sua sedução, e consideram o envelhecimento uma deformação. A cirurgia estética atinge uma população feminina composta cada vez mais de jovens. A mulher é julgada impiedosamente com base em sua aparência.
A busca por um padrão de beleza é conseqüência de uma sociedade em que somos interessantes mais pelo que parecemos ser do que pelo que somos?
É preciso se colocar fora de si para se tornar você mesmo, tornar mais significativa sua presença no mundo. A interioridade é um trabalho de exterioridade, que exige retrabalhar ininterruptamente seu corpo para aderir a uma identidade efêmera, mas essencial num momento do ambiente social. Assim, a tirania da aparência força os indivíduos a uma disciplina constante, a um trabalho sobre si mesmo. Uma atitude paradoxalmente puritana. As disciplinas outrora exteriores aos indivíduos, segundo a famosa análise de Michel Foucault, hoje estão nas mãos de pessoas que as impõem a si próprias. As disciplinas estão sob a égide do marketing. Mas é claro que o culto do corpo é, em primeiro lugar, um desprezo pelo corpo de origem.
Quem faz intervenções extremas no próprio corpo deve ser visto como um caso patológico?
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