Um Antônio Vieira total. Sem a palavra padre - diplomata, profeta, historiador, missionário, pregador, literato - como um nome reducionista e ávido para classificar o autor de uma obra a um só tempo seminal e eterna. A compreensão do quebra-cabeça representado por Vieira, sem que nenhuma peça seja desprezada, é o desafio dos especialistas brasileiros que se debruçam sobre o “imperador da língua portuguesa” - definição de Fernando Pessoa -, 400 anos depois do nascimento do autor de Sermões, comemorados nesta Quarta-Feira de Cinzas. “A obra de Antônio Vieira traduz a arte discursiva no esforço de apreender, para além das circunstâncias de época, o significado máximo do tempo”, diz Marcus Alexandre Motta, autor de Antônio Vieira - Infalível Naufrágio. A reportagem é de Francisco Quinteiro Pires e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 03-02-2008.
Ele ensinou que nada da realidade terrena, criada por Deus, pode ser ignorado, porque tudo tem uma razão de ser, basta compreender o texto escrito pelas coisas do mundo. Essa postura é um desafio ao meio intelectual brasileiro, que ainda faz a separação estanque de disciplinas e estuda os objetos a partir da perspectiva fragmentária, uma arraigada influência do positivismo, como lembra o professor da Unicamp Alcir Pécora. Tal credo acadêmico se compara ao equívoco atual de isolar a política (entendida por ideologia) e a economia (definida como técnica) como se fossem inconciliáveis. “Essa visão anacrônica lançada pelo presente cria um Vieira esquizofrênico, que alia o pragmatismo político com o desvario místico”, diz.
Pode causar espécie à contemporaneidade a transformação dos textos de um religioso em alicerce clássico de uma língua. “No nosso país, a secularização tomou ares de vingança”, explica Marcus Motta. Ele diz que esse fenômeno fez o brasileiro perder o gosto pela abstração, por especulações metafísicas. “Significa que não vale a pena perseguir idéias ou sonhos, resultando numa pragmática banal, de experiência frágil. Como prova, basta ver o retorno do positivismo e de um empirismo canhestro que assaltou as nossas universidades no campo de humanas nos últimos anos”.
O lançamento de biografias, dos sermões e de correspondências, previsto para este ano, contribui para preencher as graves lacunas referentes ao padre católico. “Os livros de e sobre Vieira não foram editados aqui antes por conta da desorganização do mercado editorial e porque demandam um trabalho que não é de interesse comercial, mas institucional, a ser feito pelo Estado”, diz Pécora, autor de Teatro do Sacramento, que será relançado neste ano. As informações sobre Antônio Vieira que chegam neste ano às livrarias podem jogar luzes sobre as sombras criadas quando uma faceta dele é priorizada como se não tivesse ligações com o restante ou com uma totalidade. E podem enfraquecer o preconceito contra uma característica pouco investigada: o profetismo, fruto do período histórico messiânico em que atuou e bem delineado em obras como A História do Futuro, A Defesa Perante o Santo Ofício e Clavis Prophetarum (redigida em latim).
A crença, esmiuçada em A História do Futuro, de que Portugal seria o Quinto Império não pode ser tratada como disparate de um jesuíta. Presente em todos os continentes conhecidos, depois de iniciada a era dos Grandes Descobrimentos, Portugal tinha tudo para suceder aos impérios persa, assírio, grego e romano, mas com a diferença de que ele levaria o reino cristão a todos os povos do globo. Essa convicção está calcada na interpretação da Bíblia feita por Vieira, que intuiu como um sinal a restauração da Coroa portuguesa depois de ficar sob o jugo espanhol entre 1580 e 1640. Ela está fundada no conhecimento das Trovas, de Antônio Gonçalves de Bandarra (1550-1556), sapateiro português que previra um reino prolongado de justiça e harmonia na Terra. “A fé de Vieira é o drama natural da esperança que aceita a profecia do Quinto Império para aguardar as felicidades e resolver os negócios humanos, instituindo um governo de união espiritual e temporal correspondente à inteireza do mundo”, diz Marcus Motta.
O início desse império mundial, segundo Vieira, que não aceitava ser chamado de milenarista, se daria a partir do reinado de d. João IV e não do retorno de d. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir, em 1578. A origem da expressão tão brasileira “país do futuro” - da nação em compasso de espera - tem raízes mais fortes e distantes do que se imagina, segundo Clóvis Bulcão, autor da biografia Padre Antônio Vieira, prevista para junho. “A concretização do futuro brasileiro espera um redentor.”
“A posição católica de Vieira é perfeitamente conciliável com o tempo político em que viveu e durante o qual ele foi um religioso politizado, interventor e reformista”, diz Alcir Pécora. Apesar de ter produzido uma obra atemporal, Vieira tem de ser entendido como um homem do século 17. O fato de ter estudado dentro da Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola no século 16, lhe ensinara a urgência da atuação no plano terreno. “Não tem que olhar para o céu, mas para as cegueiras do mundo”, diz Pécora a respeito do lema jesuíta. O carisma inaciano tem um pilar laico. Assim, nada do que está no mundo pode ser estranho, pois pertence à mesma fonte divina. A atuação missionária de Vieira no Brasil, onde, jovem, estudou no Colégio dos Jesuítas, comprova o esforço de chegar ao outro, por meio da assimilação (e não pela escravização, contra a qual Vieira se postou no caso dos indígenas), ainda que feita sob o domínio católico. “Vieira acabou lendo e interpretando a realidade brasileira como concretização das metáforas proféticas contidas nas Sagradas Escrituras”, diz Francisco Maciel Silveira, da USP.
O barroco em Vieira tem de ser visto não como os contrários que se anulam, mas como os opostos que se complementam. Daí a possibilidade de conviverem em Vieira o visionário e o prático, o idealista e o realista, e sem prejuízo. Por ter levado esse legado ambíguo (no dicionário, o adjetivo jesuíta também significa dissimulado) às últimas conseqüências, atuando em favor do Estado português, ele foi reprimido pela própria Companhia de Jesus e pela Inquisição (tribunal eclesiástico da Igreja Católica que julgava os crimes contra a fé), sendo preso para silenciar a pregação.
Vieira acreditava que os cristãos-novos deviam ser verdadeiramente assimilados para financiar com seu capital a presença do império português pelo mundo. Segundo Clóvis Bulcão, a expansão de Portugal estaria assentada em duas bases: o poder econômico e o cultural (a língua portuguesa). “O seu projeto era concreto e pragmático: repatriar os capitais dos judeus para dominar pela economia”, diz. Ele previra a importância da globalização econômica. “Vieira defendia a idéia muito atual de que os papéis de crédito estavam acima das fronteiras nacionais”, complementa. A Inquisição se tornava inimiga da expansão lusitana por se apropriar dos recursos dos cristãos-novos e dividi-los entre os acusadores. “Portugal se torna uma praça de negócios não-confiável.”
Passados 400 anos, o trabalho ainda engatinha, a provar a existência de escritos proféticos e poesias inéditos, segundo Pécora. Sem contar o fato de que no Brasil os estudos sobre literatura colonial precisam superar o obstáculo do nacionalismo. “As teses acadêmicas não tratam do período colonial por conta de um sentimento nativista, que afirma ser a literatura brasileira posterior à colonização”, diz. Mas é preciso passar pela inventividade literária de Vieira para evitar o risco de ignorar o fundador da língua: ele foi para o português o que Cervantes foi para o espanhol e Dante, para o italiano. Mas quem é esse homem do século 17 que conferiu espessura e plasticidade a uma língua de mais de 200 milhões de falantes no século 21?
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