Governados pelo medo
“Que computador foi danificado pelo sinistro ‘bug do milênio’? Quantas pessoas você conhece que foram vítimas dos ácaros de tapete? Quantos amigos seus morreram da doença da vaca louca? Quantos conhecidos ficaram doentes ou inválidos por causa de alimentos geneticamente modificados?” Esta seqüência de perguntas está no capítulo de abertura do livro do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, Medo líquido, recém-lançado no Brasil pela editora Jorge Zahar. A elas, ele não dá uma resposta, cumprindo apenas seu papel de provocador. Mas nem precisaria. Esse questionamento faz parte do que ele chama de “a era dos temores”. A reportagem e a entrevista é de Flávia Tavares e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 27-01-2008.
Foi esse temor, inclusive, o motor do abalo que atingiu as bolsas de valores do mundo inteiro esta semana. O medo de uma crise econômica se transformou na crise em si. E, enquanto o governo dos Estados Unidos não deu sinais de que tinha condições de amenizar o estrago, baixando os juros e lançando pacotes, o pânico se manteve. Para Bauman, este é um dos sinais de que estamos subjugados pelo medo: todas as situações que nos ameaçam parecem orientadas por poderes que nos fogem ao controle. “Poder e política, uma dupla que até pouco tempo estava casada dentro das nações-estado, estão desquitados e querem se divorciar. Temos cada vez mais políticos sem poder e poderes sem nenhum controle político”, afirma.
Residente em Londres e professor emérito de sociologia das Universidades de Leeds e de Varsóvia, Bauman tem, no Brasil, 13 livros publicados - entre eles, Amor líquido e globalização: as conseqüências humanas. Grande amarrador de idéias que vagam no ar, ele desenvolveu o conceito de uma sociedade “líquida”, partindo do princípio de que as certezas e a previsibilidade do futuro estão diluídas e, porque políticos e empresas tendem a lucrar com isso, não há perspectiva de que esse clima de insegurança seja sanado. “Pelo contrário, os governos e os mercados têm interesse em manter esses medos intactos e, se possível, aumentá-los.”
Eis a entrevista.
A crise financeira internacional é uma ameaça? Há razões reais para termos medo dela?
O aspecto mais assustador dos medos é que não temos, nem podemos ter, nenhuma certeza se eles são genuínos ou imaginários. Isso leva as pessoas a gastar mais em coisas de que não precisam e as faz apoiar políticos que não se preocupam com seu bem-estar. Não sou economista nem profeta, e seria desonesto de minha parte falar sobre os aspectos técnicos da crise financeira. Aliás, mesmo as pessoas com credenciais para isso estão fazendo previsões falsas, dando conselhos equivocados e sendo surpreendidas. Vivemos agora - como já vivíamos antes desse colapso nas bolsas de valores, do 11 de Setembro ou do Katrina - em um estado de medo permanente e incurável. Medos emanam de absolutamente qualquer coisa: falta de estabilidade no trabalho, constantes mudanças nas regras do jogo da vida, fragilidade nas parcerias, falta de reconhecimento social, ameaças de epidemias, comidas cancerígenas, possibilidade de ser excluído do mercado, ameaças à segurança pessoal nas ruas. Os medos são muitos e diferentes entre si, mas eles alimentam um ao outro, formando um estado de espírito que só pode ser descrito como “insegurança geral”. Nós nos sentimos ameaçados, mas não sabemos exatamente de onde vêm as ansiedades... Os medos estão flutuando no ar. Os especialistas nos dão diagnósticos conflitantes - o que ontem parecia impossível é anunciado como iminente e inescapável hoje. Por isso, estamos sempre “psicologicamente prontos” para um desastre e imaginamos que o mundo seja um contêiner de perigos. E, como disse o grande sociólogo W. I. Thomas há quase um século, se as pessoas acreditam que algo é real, elas vão agir de uma forma que vai tornar aquilo real.
Como temos reagido aos medos?
Nas últimas décadas, o apetite consumista aumentou muito e chegou a um nível insustentável no longo prazo. Precisaríamos dos recursos de três planetas Terra para sustentar esses níveis de consumo no mundo inteiro. Segundo David Leonhadt, em um artigo no New York Times, “nos últimos 16 anos, os consumidores americanos aumentaram o total de seus gastos em todos os trimestres - um período duas vezes maior do que a seqüência de aumentos anterior”. Essa farra de consumo foi majoritariamente feita a crédito, com pessoas contraindo empréstimos e se afundando em dívidas. Quem pode garantir que a crise atual não seja o capítulo inicial do longo e amargo despertar que costuma se seguir a períodos de alto consumo e auto-enganação? Por muito tempo suspeitamos que um momento de choque chegaria, mas abafamos essa desconfiança e tentamos diminuir as preocupações com os prazeres do consumo diário.
As reações ao medo no mercado financeiro se dão em cadeia. A queda na Ásia influencia o Brasil. O medo coletivo provoca efeitos ainda mais imprevisíveis e perniciosos?
Querendo ou não, nossas condições e destinos estão interligados, porque dependemos uns dos outros. Isto não quer dizer, porém, que tenhamos tirado alguma conclusão dessa interdependência ou tenhamos dado a devida atenção às conseqüências disso. Um obstáculo para o reconhecimento das responsabilidades mútuas é a falta de conhecimento das complexas interconexões entre nossas vidas. A maioria dos efeitos das ações e inações tende a aparecer como conseqüências imprevistas e efeitos colaterais surpresa. Precisamos de uma “epidemia planetária”, como a queda da Bolsa de Hong Kong contaminando a de São Paulo, para chamar a atenção do mundo para essa dependência mútua. Os resultados dessa interdependência sempre nos surpreendem e, por isso, são tão destrutivos. Podemos limitar esse estrago - apesar de não podermos eliminá-lo completamente - se dermos mais importância, na prática, ao bem-estar das pessoas que sofrem com o resultado de nossas ambições.
O movimento das bolsas de valores responde quase sempre a temores circunstanciais. Qual a lógica do capitalismo hoje?
O capitalismo tem uma lógica em seu funcionamento, mas essa lógica, como muitas outras operando nos destinos comuns, foi desregulada e “privatizada”. Assim, os efeitos coletivos e planetários das ações locais nos deixam despreparados. Pensamos em juntar forças somente depois de um desastre e aí já é tarde para prevenir uma catástrofe. Além disso, depois do choque e do momento mais sinistro da crise, retomamos velhos maus hábitos, tentando explorar o fato para aumentar os ganhos. Um exemplo recente e assustador é a tentativa de explorar as áreas virgens do Ártico para extrair petróleo, à custa da deterioração do clima. Novamente, a “lógica global” se prova impotente quando confrontada com a folia da “lógica privada”. Até outro desastre acontecer. Um desastre que não terá sido imprevisto - mas cujas conseqüências foram vistas com negligência.
A relação mais estreita entre os países não deveria nos ajudar a evitar potenciais perigos?
Sim, mas até aqui a globalização só mostrou sua natureza negativa. Essa natureza tende a ignorar as soberanias, as leis e os interesses locais da população. E essa natureza negativa quer abolir todos os impedimentos contra suas regras arbitrárias que regem as finanças, o comércio, as máfias, o tráfico de drogas e o terrorismo. As instituições de controle político e legal ainda se mantêm tão locais quanto antes; os braços são muito curtos para alcançar a fonte dos problemas. Poder e política, uma dupla que até pouco tempo estava casada dentro das nações-estado, estão desquitados e, agora, querem se divorciar. Temos cada vez mais políticos sem poder e poderes sem nenhum controle político.
O senhor diz, em seu livro Medo Líquido, que a globalização eliminou qualquer possibilidade de segurança, já que a abertura dos mercados e dos países acabou com as proteções. Como se deu esse processo?
Somente as forças “antiprotecionistas” são realmente globais hoje, considerando todo e qualquer ato de autodefesa como uma restrição imperdoável à liberdade. Espaço e distância não mais representam uma proteção e ninguém se sente seguro no próprio país. Somos forçados a procurar, em vão, soluções locais para problemas globais. Estamos a anos-luz de criar poderes eficientes que restrinjam os perigos globais. A globalização cumpriu sua missão, e todas as sociedades estão agora completa e realmente abertas, material e intelectualmente. Essa abertura tem hoje um novo brilho, com o qual Karl Popper, criador do termo “globalização”, nem sonhou. A globalização se tornou um processo seletivo de capital, vigilância e informação, coerção e armas, crimes e terrorismo, que não respeita os limites dos Estados. Se a idéia de uma sociedade aberta originalmente representava a autodeterminação de uma sociedade livre, orgulhosa de sua abertura, agora ela traz a assustadora experiência de uma população heterogênea e vulnerável, apavorada com sua incapacidade de se defender e obcecada com a segurança de suas fronteiras e dos indivíduos dentro delas - embora seja exatamente essa segurança que foge a seu controle. Em um mundo globalizado, segurança não pode ser garantida em um país ou em um conjunto de países. Não independentemente das vontades do restante do mundo.
Que outras conseqüências a natureza da globalização tem?
A justiça, condição obrigatória para a paz, também não tem garantias. A abertura pervertida das sociedades é a causa primária da injustiça e, conseqüentemente, dos conflitos e da violência. Foi a ação dos EUA, com seus satélites, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio, que propiciou condições para o subdesenvolvimento e seus perigosos subprodutos, como nacionalismo, fanatismo religioso, fascismo e, claro, terrorismo. O mercado sem fronteiras é a receita para a injustiça e para a desordem mundial. A falta de leis globais e a violência armada se auto-alimentam. Ao mesmo tempo, como demonstrou o economista francês Jacques Attali, em seu livro La Voie Humaine, metade do comércio mundial e mais da metade do investimento global beneficiam somente 22 países que abrigam 14% da população do mundo, enquanto os 49 países mais pobres, habitados por 11% da população mundial, recebem 0,5% do dinheiro desses investimentos e do comércio. A Tanzânia ganha US$ 2,2 bilhões por ano para seus 25 milhões de habitantes. O Goldman Sachs Bank ganha US$ 2,6 bilhões, divididos entre 161 acionistas. Na Europa e nos EUA gastam-se US$ 17 bilhões em rações para animais, enquanto, segundo especialistas, US$ 19 bilhões resolveriam a fome do mundo.
Países com maior desigualdade social, como o Brasil e outros emergentes, tendem a sentir mais medo?
A pobreza permanece como uma grande fonte de medo. A novidade é o medo da exclusão e da humilhação. Conforme um país se torna mais influente, a competição individual não é mais pela sobrevivência física ou pela satisfação de instintos básicos. Nem é mais pelo direito de decidir que tipo de vida esse indivíduo gostaria de levar. Aliás, presume-se que qualquer coisa que aconteça a esse indivíduo seja conseqüência do exercício desse direito. Divididos em indivíduos, somos encorajados a buscar um “reconhecimento social” pelas escolhas individuais. “Reconhecimento social” significa aceitar que o indivíduo que escolheu aquele tipo de vida seja decente e, assim, mereça respeito de outras pessoas decentes.
O que acontece quando esse reconhecimento social não vem?
Ocorre a humilhação. A pessoa se sente humilhada quando lhe é mostrado, com ações ou palavras, que ela não pode ser o que pensa que é. Não é à toa que o tão popular Big Brother seja chamado de “reality show”. Esse nome sugere que a vida fora das telas, a vida real, é como a saga dos competidores do programa. Nos dois ambientes, ninguém tem garantia de permanecer no jogo, de sobreviver. Não há dúvidas de que alguém será eliminado. A questão é quem. Não se cogita acabar com as eliminações (o que favoreceria a união de forças e a solidariedade), mas sim escapar da ameaça de eliminação e jogá-la para cima de outros competidores. Mas sentir-se excluído gera ressentimentos. Em uma sociedade em que a individualidade prevalece, essa é uma grande causa de conflitos. A ameaça de exclusão substitui a exploração e a discriminação como a forma mais comumente usada para justificar a violência individual contra a sociedade.
Esse é um fenômeno novo?
Pelo contrário, é tão velho quanto a humanidade. No entanto, as explicações mais comuns para o sofrimento estão se distanciando dos fatores coletivos e se tornando referências pessoais. Assim, a solução para esse sofrimento não seria uma reforma social, mas a vingança pessoal. Quando os indivíduos são forçados a desenvolver soluções individuais para problemas sociais, eles procuram os responsáveis por seu sofrimento e esses agentes são localizados, julgados e condenados de uma só vez.
Por que nos tornamos mais temerosos do que éramos antes?
O Estado havia encontrado a forma de convencer os cidadãos a ser obedientes: oferecia em troca a promessa de proteção contra as ameaças a sua existência. Não mais tendo condições de cumprir tal promessa, esse Estado acaba por mudar a ênfase da proteção contra os perigos à segurança social para os perigos à segurança pessoal - e, assim, “subsidiar” a batalha contra o medo. Os medos estão agora difusos, espalhados e indefinidos. Isto é o que os torna tão assustadores e de difícil eliminação. Essa característica “líquida” do medo o transforma em capital político e comercial - que os políticos e as empresas estão sempre tentados a reverter em algo lucrativo. O apelo popular de se fazer algo contra as causas desconhecidas das ansiedades e de combater as ameaças invisíveis pode ser distorcido e redirecionado para objetos que não são necessariamente responsáveis pela nossa insegurança, mas são convenientes do ponto de vista político e mercadológico. Essa mudança de foco não cura a ansiedade e, portanto, não diminuirá o suprimento de “capital do medo” - mas servirá para que sejam vendidos produtos relacionados à segurança e, por um breve período, reduzirá a tensão. Quando os medos da população se tornam uma tentação comercial, há poucas chances de eliminá-los pela raiz. Pelo contrário, os governos e os mercados têm interesse em manter os medos intactos e, se possível, aumentá-los.
Estamos mais vulneráveis aos perigos nas grandes cidades?
Áreas urbanas são locais onde inseguranças sociais são confrontadas de forma tangível. Num processo de distorção de seu papel histórico, nossas cidades não são mais abrigos contra os perigos, mas se tornaram o perigo em si. Amigos, inimigos e os misteriosos estranhos que não são nem um nem outro misturam-se e se esbarram nas ruas. A guerra contra a insegurança, os perigos e os riscos é travada dentro das cidades e, nesses campos de batalha urbanos, são feitas trincheiras e linhas de frente, pesadamente armadas.
Quais as conseqüências disso?
Quanto mais nos desligamos dos arredores, mais precisamos de vigilância. As casas em regiões urbanas no mundo inteiro existem agora para proteger seus moradores, não mais para integrar as pessoas em suas comunidades. A polarização não pára de crescer e, com ela, a interrupção nas comunicações entre as duas categorias de moradores das cidades. Enquanto os da parte mais rica estão conectados com o restante do mundo, os que habitam o lado mais pobre, normalmente desenhado com linhas étnicas, confiam apenas em sua identidade para defender seus interesses. Somente esse segundo grupo está circunscrito territorialmente. O primeiro grupo pode estar “no lugar”, como o segundo, mas nunca será “do lugar”. O resultado desastroso dessa relação nas áreas urbanas mais privilegiadas, habitadas pela elite global, são as áreas abandonadas, os guetos. Se há pretensões de manter essa distância intransponível para evitar uma contaminação entre as áreas, a política de tolerância zero e a expulsão dos sem-teto são um instrumento muito útil.
Qual é a diferença?
A classe mais alta não pertence mais ao lugar que habita, já que suas preocupações estão focadas em outro ponto. Antigamente, a população de uma cidade era a base de consumo para empresários e comerciantes e, assim, também era de sua responsabilidade. Agora, a elite está desligada de seus vizinhos e dos problemas da cidade, tão insignificantes quando comparados ao mundo virtual em que essa elite vive. A classe mais baixa tem o comportamento oposto. Os habitantes de áreas pobres estão condenados a ser daquela área e, portanto, suas preocupações são locais. A separação da nova elite global de seus antigos compromissos com a população local e o vácuo crescente entre os que se foram e os que foram deixados para trás são a semente da passagem social, cultural e política do estágio “sólido” para o “líquido” da modernidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário