Entrevista com Sílvia Helena Zanirato e Edilaine Custódio Ferreira
Na edição 205 da IHU On-Line, o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda foi discutido por muitos acadêmicos brasileiros. Voltando ao assunto e aos 70 anos de lançamento da primeira edição do livro, conversamos com a doutora em História e professora de Teorias da História na Universidade Estadual de Maringá, Sílvia Helena Zanirato e sua orientanda, mestre em História, Edilaine Custódio Ferreira. Ambas apresentam antagonismos da obra de Sérgio Buarque e explicam cada um deles.
Na edição 205 da IHU On-Line, o livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda foi discutido por muitos acadêmicos brasileiros. Voltando ao assunto e aos 70 anos de lançamento da primeira edição do livro, conversamos com a doutora em História e professora de Teorias da História na Universidade Estadual de Maringá, Sílvia Helena Zanirato e sua orientanda, mestre em História, Edilaine Custódio Ferreira. Ambas apresentam antagonismos da obra de Sérgio Buarque e explicam cada um deles.
Confira a entrevista:
IHU On-Line - Quais as questões antagônicas existentes na obra Raízes do Brasil?
Sílvia Helena Zanirato e Edilaine Ferreira - Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda parte do mapeamento dos pares antagônicos (trabalho e aventura, método e capricho, rural e urbano, norma impessoal e impulso afetivo, burocracia e caudilhismo, dentre outros) para pensar a sociedade brasileira. O pares antagônicos estruturados por ele são fundamentais para que se possa entender toda extensão de sua obra. Contudo, é de grande relevância ressaltar, como afirma o próprio autor de Raízes, em estado puro, “esses tipos não têm real existência, restringem-se apenas ao quadro das idéias”. Cada um desses tipos tem sua ética própria e “nos ajudam a melhor ordenar nosso conhecimento dos homens e dos conjuntos sociais” (HOLANDA, 1998, p. 45).
Os pares antagônicos mais destacados são:
1. Trabalho e Aventura
O trabalhador e o aventureiro funcionam como princípios que “regulam as atividades dos homens, são tipos que se manifestam na vida coletiva”. Segundo Holanda, “o aventureiro ignora fronteiras, vive de espaços limitados, dos projetos vastos e de horizontes distantes. O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer” (Hollanda:1998:44). O trabalhador valoriza as ações e as atividades que deverá cumprir, mesmo que estas exijam trabalho lento, e os resultados venham a ser demorados, já o aventureiro almeja lucro de maneira que possa vir a alcançá-lo o mais rápido possível e sem esforço. Portanto, esses dois tipos participam do mesmo conjunto social, estão inseridos na mesma esfera.
2. Rural e Urbano
De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, o português instaurou no Brasil uma civilização de raízes rurais, marcada pelo predomínio da fazenda em detrimento das cidades. Para ele, ao final do século XIX o Brasil sofreu uma intensificação da economia urbana com o desenvolvimento da indústria, a expansão do crédito bancário e iniciou uma economia relativamente moderna. Contudo, salienta o autor, “nos resta e nos restará por longo tempo as heranças rurais. Nosso ruralismo extremo não foi superado”.
Assim, o mundo rural permaneceu por muito tempo influenciando a vida nas cidades, e estas mantinham uma relação de dependência com a vida rural, pois até mesmo a administração urbana continha elementos do sistema senhorial, de modo que “as funções mais elevadas cabiam aos senhores de terras” (Holanda,1998,89). Por isso a afirmativa dele de que “a mentalidade da casa-grande invadiu as cidades e conquistou todas as profissões” (Holanda,1998,87).
O autor estabelece comparações entre os centros urbanos, ainda em formação e o espaço rural, para mostrar que o meio citadino encontrava-se em posição bastante desigual e desfavorável. Segundo ele, houve um poderio dos domínios rurais em detrimento das cidades e “o predomínio esmagador do ruralismo foi, antes, um fenômeno típico do esforço de nossos colonizadores, do que uma imposição do meio” ( Holanda,1995,92). A paisagem natural e social ficou marcada pelo domínio da fazenda em relação às cidades.
3. Norma Impessoal e Impulso Afetivo
É importante ressaltar o trecho em que Holanda analisa o Estado para percebermos a maneira como ele trata esse tema. Diz ele:
Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável, e responsável ante as leis da cidade. Há neste fato um triunfo geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva das formas mais naturais e rudimentares (Holanda,1998,141).
Para ele, em nossa forma de Estado houve o predomínio do particular sobre o geral. O Estado no Brasil foi formado por relações particulares, com isso o predomínio do privado sobre o público. Prevaleceram as vontades particulares que caracterizavam na verdade a supremacia do rural. As grandes fazendas rurais fechavam-se em si mesmas, procurando manter cada vez menos contato com o mundo exterior. Assim, como acontece em geral em organizações familiares, nas grandes famílias patriarcais prevaleceram as relações pessoais e a emotividade. No entanto, foram as relações impessoais que caracterizaram a organização do espaço público. Onde deveria prevalecer a vontade coletiva, prevaleceu a vontade individual. O doméstico e o afetivo não abriram espaço ao público. Assim, não houve uma tentativa concreta de distinção entre público e privado.
É nesse meio que se insere o homem cordial. A expressão cordialidade não pressupõe bondade, mas predomínio do particular, recusando as relações inter-pessoais. A cordialidade não se restringiria ao campo político, mas abrangia também os negócios e a vida religiosa. Assim, tratávamos da mesma maneira a religião, sem rigor, sem obrigações. Desta forma, o que deveria ser representação do público, foi na verdade o predomínio dos interesses particulares. A vontade pessoal subordinava as pessoas, a tradição, as leis, as regras. O sentimento sobrepunha-se ao racional.
IHU On-Line - Quais interlocuções existentes entre Georg Simmel, Max Weber e Sérgio Buarque de Holanda?
Sílvia Helena Zanirato e Edilaine Ferreira - Responder a essa questão implica primeiramente em se saber quais seriam as semelhanças entre Georg Simmel e Max Weber. A produção de Simmel é anterior à produção weberiana. É possível averiguar que muitos dos conceitos usados por Weber foram herdados de Simmel. Em Weber esses conceitos assumem algumas especificidades, como é o caso da concepção weberiana de ação social, que se assemelha com o que Simmel chama de interação social, mas Weber não condiciona a ação a uma reação (COSTA, 1999) .
Sabemos que Max Weber sofreu influências teóricas de Windebland e Rickert e, no que diz respeito ao modo de depuração das formas para se construir tipos ideais, a referência direta é Georg Simmel. Isso se constata no método de abstração com que Simmel analisa o processo de interação entre os indivíduos. Esse procedimento é partilhado por Max Weber ao construir sua teoria dos “tipos ideais”, isolando as formas de seus conteúdos para definir os tipos sociais
Segundo Gabriel Cohn (1958), na teoria simmeliana “a passagem da idéia de forma para a de tipo não é completamente realizada”. Isso ocorre porque Simmel coloca-se entre os caminhos empírico e idealista. Weber também partilha desta posição, todavia há um ponto que distingue Weber de Simmel no que se refere à metodologia. Para Weber, o modo como Simmel trabalha com a análise da forma faz com que a prática tipológica mergulhe numa série de vícios, pois o pesquisador primeiramente identifica cada forma expressa na realidade concreta e, só então, inicia o processo de depuração da mesma. Eu acredito que a influência mais marcante da obra de Simmel sobre o trabalho de Sérgio Buarque de Holanda está ligada ao procedimento metodológico, pois ele elabora a tipologia dos pares antagônicos com fundamentação tanto na teoria weberiana como na simmeliana. Tal como Simmel e Weber, Sérgio Buarque de Holanda também interpreta os valores culturais por meio das ações dos indivíduos. É deste modo que ele analisa a ética do aventureiro, na qual é o valor cultural que da sentido e orienta a ação colonizadora. Tanto em Simmel quanto em Weber o conhecimento é sempre parcial. O cientista pode formular hipóteses e não construir verdades absolutas. A construção do “tipo ideal” assume caráter transitório, pois de acordo com Weber, as disciplinas históricas estão sempre formulando novas hipóteses e abrindo espaço para se debater questões que giram em torno da cultura e do social. Além disso, criam sempre novas problemáticas renovando assim o conhecimento sobre a realidade concreta.
Diante do exposto, fica evidente a possibilidade de interlocução entre Max Weber, Georg Simmel e Sérgio Buarque de Holanda, o que permite uma compreensão dos argumentos expostos pelo autor de Raízes do Brasil na construção de uma interpretação da sociedade brasileira.
Para concluir penso que cabe mencionar a influência metodológica. Weber adota o método comparativo, “captando as características comuns que os tipos apresentam” (Costa). É por esse caminho que Weber elabora a teoria sobre as religiões mundiais e sobre a tipologia do capitalismo.
Sérgio Buarque também adota o método comparativo, é o que se pode perceber em toda a extensão de sua obra, a começar pelo capítulo I “Fronteiras da Europa”, no qual o autor compara a colonização espanhola e a portuguesa acreditando que essas partiriam de um processo de unidade para desembocar na multiplicidade. Verifica-se que Sérgio Buarque mostra em seu livro as diferenças culturais não apenas entre Espanha e Portugal, mas entre os povos e culturas inseridos em tal contexto.
Sérgio Buarque utiliza os conceitos weberianos para analisar o Estado brasileiro e constatar que este não se enquadra no modelo estatal elaborado pelo sociólogo alemão. Segundo Weber, o Estado moderno caracteriza-se pelas relações impessoais, nas quais predominam o coletivo sobre o particular, o público sobre o privado. Entende Weber que o Estado seja “um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional e que procurou monopolizar, nos limites de um território, a violência física legítima como instrumento de domínio” (WEBER,1982,p.76).
IHU On-Line - Como Sérgio Buarque de Holanda procurar entender a sociedade brasileira?
Sílvia Helena Zanirato e Edilaine Ferreira - Na obra Raízes do Brasil, o autor procurou explicar a sociedade brasileira por meio da análise dos antagonismos que formariam a nossa sociedade. Assim, falar em pares antagônicos em Raízes do Brasil significa abordar diretamente a história de nossos colonizadores. Mas, os antagonismos não se restringem a ela, porque as nossas raízes teriam sido formadas pela diversidade das culturas inseridas neste processo. Nossa realidade é assim refletida a partir da pluralidade dessas culturas, nas quais portugueses, africanos, espanhóis e índios assumem uma relação dialética. Desta forma, Holanda busca identificar na história brasileira os traços característicos de uma identidade própria, aquilo que lhe seria peculiar. Segundo ele, a pluralidade das culturas inseridas neste espaço teria desenvolvido uma cultura única.
IHU On-Line - Existe uma forma adequada de analisar o livro Raízes do Brasil? Existe uma leitura ideal que podemos fazer do autor e do livro?
Sílvia Helena Zanirato e Edilaine Ferreira - Não há formas adequadas ou inadequadas para se analisar nem o autor nem sua obra, há sim uma pluralidade de leituras possíveis. Se por um lado não há como negar a grande influência weberiana em Raízes do Brasil, por outro, não se pode negar a influência do historicismo alemão na obra de Holanda, como defende Maria Odila Leite da Silva Dias. Também não se pode ignorar a presença de Hegel sobre o escrito buarquiano como mencionou Antonio Cândido em seus estudos sobre Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil. O que sugiro é a possibilidade de se fazer uma leitura da obra centrada na discussão desses dois clássicos da sociologia alemã. Mas esse é apenas um dos caminhos a seguir. Cabe agora destacar que, ainda que pesem as influências dos pesquisadores alemães sobre Holanda, isso não quer dizer que o autor transporte teorias sociológicas prontas e acabadas para pensar nossa realidade, ante, ele parte de alguns elementos teóricos (e aí a influência tanto de Max Weber quanto de Georg Simmel), para compreender nossa formação social de um modo bastante peculiar.
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