"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Instituto Humanitas Unisinos - 05/02/07

O fetiche da modernidade. Um artigo de Luiz Felipe Pondé


A ciência não é um método puro, constitui-se numa teia de interesses e laços institucionais. A análise é do filósofo Luiz Felipe Pondé em artigo para a Folha de S.Paulo, 05-02-2007. Professor do programa de pós-graduação em ciências da religião do Departamento de Teologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e da Faculdade de Comunicação da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), Pondé é autor de, entre outras obras, Crítica e Profecia, Filosofia da Religião em Dostoiévski.

Eis o artigo:

A ciência é o supremo fetiche da modernidade. Quando se olha no espelho, em seus melhores momentos, vê o brilho redentor da tecnologia e seu sublime ídolo, o progresso (a face contemporânea da "natureza atada" de Francis Bacon).

Diante do quase fracasso de grande parte de suas utopias (o racionalismo político, a administração da vida, a resolução científica da existência, a reformulação do humano, enfim, a organização eficaz da agonia), resta à modernidade seu senso comum científico, normalmente dotado de grande carga emocional e dogmática.
A prova evidente desse senso comum é supor que qualquer crítica à ciência significa alguma forma de heresia epistemológica ou mera falta de conhecimento científico por parte de quem levanta a questão. A estrutura do átomo, suas partículas e cordas, para além de um panteísmo de iniciantes, nada muda em nossa condição cósmica.

Tampouco as modas científicas, os "novos paradigmas" e seu superficial frenesi pseudo-religioso.
Aristóteles não conhecia nada sobre como o genoma desvendaria (?) todos os segredos do humano. Entretanto, a única forma de ateísmo filosoficamente séria (o darwinismo) busca exatamente responder a Aristóteles e sua herança (o primeiro motor inteligente): Como do acaso cego chegamos à ordem e ao design visíveis no universo? Pela repetição (e reprodução) mecânica daquilo que não pereceu, vítima da agressão do meio ambiente, em sua inércia ancestral, surge a aparência de ordem. A dança macabra entre o agredido e a agressão mimetizaria essa ordem.

A crítica ao dogmatismo do senso comum científico nada tem a ver com um "desconforto" diante da possível insignificância da vida, sendo mais provável que o pânico diante da possibilidade de "descrença" na ciência seja um indício desse mesmo suposto "desconforto". Evidentemente, a ciência (ou aquilo que dela de fato parece fazer a diferença, ou seja, a medicina, a biotecnologia, os aviões, a informática e os processos de controle da vida cotidiana pelo Estado e por seu aliado, o mercado) mudou a face do planeta.

Só um mentiroso não reconhece, humildemente, o alívio diante do adiamento da morte. Imaginar-se mais livre do que os medievais é outro sintoma clássico: quem nunca foi capturado pela fina malha de violência científica do sócio invisível, o Estado arrecadador?

Não se trata de demonizar a ciência. Isso é para a filosofia amadora. Ela é uma das grandes coisas que realizamos nos últimos 500 anos. Trata-se de vê-la como é: uma adolescente furiosa, às vezes generosa, normalmente arrogante quando bem-sucedida. A ciência não é um método puro (somente quando vista das alturas de sua ascendência filosófica).

Constitui-se numa teia de interesses e laços institucionais que tendem à fantasia do absoluto, quando, na realidade cotidiana, seus agentes sociais vivem no pântano do relativismo ético e do totalitarismo econômico. Kafka poderia escrever um excelente conto sobre sua burocracia da produtividade. Exemplo claro é a forma alucinada com a qual a sociedade crê na economia ("Ah, esses sofistas, calculadores e economistas", diria Burke). Entre a vírgula e o ponto, no espaço estreito de uma fórmula abstrata, a realidade que se esvai em sangue. Só o ato epistemológico da crença justifica a matematização abstrata que reproduz a vida fora de si mesma.

Se a teologia da baixa escolástica foi marca dos delírios de uma época na qual a grande civilização medieval agonizava, as poderosas profecias econômicas marcam um mundo em que a estatística esmaga o pobre humano de carne e osso. A estratégia do senso comum científico é desconstruir a incerteza ou dissolvê-la numa incerteza meramente estética. A suspeita, sem fundamento, de que a crítica à "cientificidade" da modernidade seja filha da Inquisição é outro marco do senso comum científico: entenderemos melhor a relação entre a vida e a ciência se lermos os utilitaristas, muito mais do que se nos deslumbrarmos diante do amontoado de "descobertas revolucionárias".

A "precisão" científica pode andar lado a lado com a ignorância acerca da realidade. E mais: pode ser um método poderoso de falseá-la. Qual a resposta científica ao Eclesiastes?

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