"Mesmo quando ninguém sabe exatamente por que os ursos, os grandes felinos e os legendários vampiros estão se deslocando para o norte, uma hipótese plausível é que estão adaptando seu raio de ação e sua população a um novo reino da seca no norte do México e no sudoeste dos Estados Unidos", alerta Mike Davis, professor de Teoria Urbana no Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia, em artigo publicado no sítio La Haine, 6-02-2007.
Ao se referir à descoberta de manchas vermelhas no Oeste dos Estados Unidos, Davis, apoiado em estudos, afirma que "não é simplesmente uma seca episódica, mas a nova 'normalidade climática' da região".
Apesar de todas as evidências das análises científicas, Mike Davis, não vê que isso vá causar pânico em alguns segmentos sociais: ricos, empresários do setor imobiliário, sobretudo, preocupados não na solução dos problemas, mas antes em como tirar proveito da situação de escassez de água. Parece um tanto cético quando se trata de intervir no "estilo de vida luxuoso" de alguns.
Mike Davis é autor, entre outros livros, de Ecologia do Medo e de Holocaustos Coloniais (ambos lançados no Brasil pela Ed. Record), tem ainda vários títulos sobre urbanismo, entre eles Planeta Favela (Editora Boitempo, 2006), sobre a proliferação das favelas pelo mundo, e City of Quartz, um estudo sobre a cidade de Los Angeles, ainda sem tradução para o português.
Eis a íntegra do artigo traduzido pelo CEPAT.
O urso polar sobre um bloco de gelo cada vez mais estreito converteu-se no ícone do aquecimento global e da mudança climática. Finalmente, o inquilino da Casa Branca, convencido como está de que a terra é plana, admite que os majestosos ursos poderiam estar destinados à extinção, visto que o gelo marinho encolhe e o Oceano Ártico se transforma em água azul pela primeira vez em milhões de anos. O "grande experimento geofísico" da humanidade, como há muito tempo o oceanógrafo Roger Revelle denominou a curva das emissões de dióxido de carbono em trepidante aumento, fez a Natureza descarrilar de seus fundamentos holocênicos nas terras do círculo polar.
Mas o Ártico não é o único teatro de uma espetacular e inequívoca mudança climática nem são os ursos polares os únicos arautos de uma nova época de caos. Pensemos, por exemplo, em alguns dos parentes longínquos do ursus maritimus: os ursos negros que moram tão felizes como ameaçadores nas legendárias Chisos Mountains do parque nacional Big Bend, no Texas. Poderiam ser eles os mensageiros de uma transformação ambiental nas terras das fronteiras radicais quase tão grande como a que está acontecendo no Alasca ou na Groenlândia.
Num dia extraordinariamente quente de janeiro de 2002, na rua Emory Peak, com a mente ainda atravessada pelas imagens apocalípticas do setembro precedente, travei conhecimento ocasional com um jovem urso brincalhão e inofensivo num acampamento. As aparições dos ursos são sempre um pouco mágicas, e pensei que o encontro era a expressão de uma condição selvagem ainda folgadamente intacta. Na realidade, como aprendi alarmado no dia seguinte, o jovem urso era, por assim dizer, um mojado, termo com o qual se refere aos migrantes indocumentados e recém procedentes do outro lado do Rio Grande.
Os ursos negros eram freqüentes nas Chisos quando estas eram o refúgio semilegendário dos predadores apaches e comanches nos séculos XVII e XVIII, mas os rancheiros os caçaram implacavelmente até provocar sua extinção no começo do século XX. Depois, quase milagrosamente, no começo dos anos 80 do século passado, os ursos reapareceram atrás dos medronheiros nos pinheiros de Emory Peak. Estupefatos, os biólogos conjeturaram que os ursos haviam migrado da Serra do Carmen até Coahuila, nadando pelo Rio Grande e atravessando 40 milhas de deserto infernal até chegar às Chisos, uma terra prometida de cervos dóceis e refúgios abandonados.
Como os jaguares, que nos últimos anos se reassentaram nas montanhas do Arizona ou o Chupa-cabra sedento de sangue do folclore nortista avistado nos subúrbios de Los Angeles, os ursos negros participam de uma épica migração da fauna, além das pessoas, até o outro lado. Mesmo quando ninguém sabe exatamente por que os ursos, os grandes felinos e os legendários vampiros estão se deslocando para o norte, uma hipótese plausível é que estão adaptando seu raio de ação e sua população a um novo reino da seca no norte do México e no sudoeste dos Estados Unidos.
No caso humano está claro: ranchos abandonados e cidades fantasmas por toda a Coahuila, Chihuahua e Sonora [três Estados do México], dão testemunho daquela sucessão inexorável de anos de seca - iniciada nos anos oitenta, mas convertida em catástrofe no final dos anos noventa - que empurrou centenas de milhares de pobres dos campos aos laboratórios clandestinos de Ciudad Juárez e aos bairros de Los Angeles. Dentro de alguns anos, a "seca excepcional" terá atingido todas as planícies entre o Canadá e o México; alguns anos mais, conflagrações vermelhas nos mapas meteorológicos terão penetrado como cunha por toda a costa do Golfo até Luisiana, ou terão atravessado as Montanhas Rochosas até as regiões interiores do noroeste.
Mas os epicentros semipermanentes continuam sendo o Texas, Arizona e seus Estados irmãos no México. Em 2003, por exemplo, o Lago Powel reduziu seu nível em cerca de 24 metros em três anos, e as bacias hídricas fundamentais ao longo do Rio Grande estavam pouco menos que exaustas. Entretanto, no sudoeste, o inverno 2005-2006 não foi um dos mais secos de que se tem memória, e Phoenix esteve 143 sem uma única gota de água de chuva. As raras interrupções da seca não foram suficientes para encher as barragens, e em 2006 tanto o Arizona como o Texas tiveram que lamentar as piores perdas por seca, em colheitas e animais, jamais registradas na história (cerca de sete bilhões de dólares).
Tempestade de fogo sobre Los Angeles
A seca permanente, como o gelo que se derrete, reorganiza rapidamente os ecossistemas e transforma paisagens inteiras. Sem a suficiente umidade para gerar a seiva protetora, milhões de acres de pinheiros foram devastados por uma invasão de besouros cortadores; esses bosques e chaparrais sem vida, por sua vez, alimentaram as tempestades de fogo que incendiaram os subúrbios de Los Angeles, San Diego, Las Vegas e Denver, além de destruir uma parte de Los Álamos. No Texas também foram devorados pelo fogo terrenos ervosos - quase 810 mil hectares só em 2006 - e enquanto o estrato superior desaparece, as pradarias se transformam em desertos.
Alguns climatologistas não duvidaram em definir o processo em curso como "megasseca", definindo-a como "a pior dos últimos 500 anos". Outros são mais cautos: ainda não estão seguros de que a atual aridez do Oeste tenha superado os famosos umbrais cruzados no século XX: nos anos 30 com o dustbowl nas planícies do sul, e nos anos 50 com uma seca devastadora no sudoeste.
Mas talvez o debate seja irrelevante: a pesquisa mais recente e competente está descobrindo que o "vermelho vespertino no Oeste" (para citar o inquietante subtítulo do Meridiano de sangue de Cormac McCarthy) não é simplesmente uma seca episódica, mas a nova "normalidade climática" da região. Num alarmante testemunho prestado em dezembro passado no Nacional Research Council, Richard Seager, um especialista geofísico do Lamont Doherty Observatory da Universidade de Columbia, avisou que os supercomputadores dos principais estudiosos dos modelos climáticos do planeta estão todos projetando um mesmo resultado: "Segundo os modelos, nos próximos anos ou décadas, no sudoeste o novo clima será um clima parecido com a seca dos anos 50".
Esta extraordinária previsão é um subproduto do monumental esforço de cálculo realizado por 19 modelos climáticos separados (incluídas as naves Almirante de Boulder, Princeton, Exeter e Hamburgo) para o IV relatório do Painel Intergovernamental da Mudança Climática (IPCC). Não é preciso dizer que o IPCC é a corte suprema da ciência climática. Foi instituído pelas Nações Unidas e pela Organização Meteorológica Mundial em 1989 para avaliar a investigação sobre o aquecimento global e seus efeitos. Provavelmente o presidente Bush - mesmo se agora aceita a contra-gosto os alarmas lançados pelo IPCC, conforme os quais o Ártico está derretendo rapidamente - ainda não ponderou a possibilidade de que seu rancho em Crawford possa converter-se um dia numa duna de areia.
Os climatologistas que estudam os anéis das árvores e outros arquivos naturais sabem há algum tempo que o Acordo do Rio Colorado de 1922, mediante o qual se destinou água aos oásis do sudoeste em rápida urbanização, se baseia numa história de 21 longos anos (1899-1921) de inundações. Longe de ser uma média, trata-se na realidade da maior anomalia pluviométrica em 450 anos. Mais recentemente, os climatologistas compreenderam o risco de que persistentes Las Niñas (episódios frios no Atlântico setentrional) interagem com fases quentes no Atlântico setentrional subtropical gerando seca nas planícies do sudoeste que podem durar décadas.
Mas, como destacou Seager em Washington, as simulações do IPCC apontam para algo muito diferente dos episódios áridos catalogados no Lamont's North American Drought Atlas (um compêndio permanentemente atualizado das observações dos anéis das árvores desde o século II até nossos dias). Inesperadamente, o que muda é a própria base do clima, não só as perturbações do mesmo.
Além disso, esta brusca transição para um clima novo e mais extremo, "distinta de qualquer outra no último milênio, e provavelmente em todo o Holoceno [A época mais recente do período Quaternário]", não nasce de flutuações nas temperaturas oceânicas, mas da "transformação dos modelos da circulação atmosférica e do transporte de vapor de água que surgem em decorrência do aquecimento atmosférico". Em poucas palavras, as terras áridas serão mais áridas, e as terras úmidas, mais úmidas. Os fenômenos relacionados com Las Niñas, acrescentou Seager, continuarão influindo nas precipitações nas terras de fronteira, mas, partindo de fundamentos mais áridos, poderiam produzir os piores pesadelos do Ocidente: secas de proporções parecidas com as catástrofes medievais que contribuíram para a famosa queda das complexas sociedades anasazis do sudoeste dos Estados Unidos e da Mesa Verde durante o século XII. (Para piorar as notícias dos supercomputadores, a maior aridez é prevista para uma boa parte do Mediterrâneo e do Oriente Próximo, onde uma seca épica é sinônimo de guerra, migração e etnocídio.)
Não há pânico nos campos de golfe
Não é, no entanto, provável que apenas o alarma científico, por muito que provenha de 19 modelos climáticos unânimes, provoque grande agitação nos subúrbios de Phoenix equipados com campos de golfe, onde o luxuoso estilo de vida consome diariamente cerca de 1.800 litros de água por habitante. Nem impedirá aos bulldozers remodelar a monstruosa periferia residencial de Las Vegas (são projetadas 160 mil novas casas) à beira da estrada US 3, até Kingman, no Arizona. Nem impedirá ao Texas dobrar sua população até 2040, não obstante o possível esgotamento aqüífero de Oglalla.
Mesmo que ultimamente se venham lançando muitas consignas sobre o "crescimento inteligente" e sobre um uso inteligente da água, os empresários do ramo imobiliário do deserto seguem projetando as periferias residenciais com o mesmo padrão "obtuso" e ineficiente do ponto de vista ambiental que veio mortificando o sul da Califórnia há gerações. Além disso, o ás na manga da livre concorrência do sudeste é que a maior parte da água conservada nos sistemas do Rio Colorado e do Rio Grande ainda está sendo destinada à irrigação agrícola.
A médio prazo, ao menos, a urbanização selvagem do deserto conseguirá auto-sustentar-se matando o algodão e as plantas medicinais, ao passo que os grandes produtores continuarão fazendo dinheiro vendendo às periferias residenciais uma água subvencionada com fundos federais. Um protótipo dessas reestruturações já é visível na Califórnia no Imperial Valley, onde San Diego está adquirindo agressivamente direitos aqüíferos. A conseqüência é que, se um observador atento sobrevoa a região, notaria um aumento das zonas mortas no mosaico esmeraldino de ervas medicinais e melões do vale.
Mais futuristicamente, a opção "saudita" também se apresenta. Steve Erie, professor da Universidade da Califórnia em San Diego que escreveu muito sobre políticas da água no sul da Califórnia, me disse que os empresários do ramo imobiliário do deserto no sudeste e na Baixa Califórnia confiam em poder abastecer satisfatoriamente de água a crescente população graças à dessalinização da água do mar. "O novo mantra das agências gestoras da água é, vale dizer, incentivar a conservação e a regeneração, mas os investidores rapaces estão dirigindo avidamente a vista ao Pacífico e à alquimia da dessalinização, esquecidos das perniciosas conseqüências ambientais."
Seja como for, destaca Erie, os mercados e os políticos continuarão escolhendo o tipo de urbanização agressiva e de alto impacto que atualmente cobre de calçadas e canteiros milhares de quilômetros quadrados dos frágeis desertos de Mojave, Sonora e Chihuahua. Não é preciso dizer que os Estados e as cidades lutam mais agressivamente que nunca pela distribuição das águas, "mas, de consumo, as 'máquinas do crescimento' têm o poder de subtrair a água dos demais usuários" [alusão à teoria das 'máquinas do crescimento' no desenvolvimento urbano].
À medida que a água vai encarecendo, o peso da adaptação ao novo regime climático e hidrológico recairá sobre grupos subalternos como os diaristas agrícolas (postos de trabalho ameaçados pela transposição de água), os pobres urbanizados (que poderiam assistir facilmente a um aumento vertiginoso, de 100 a 200 dólares mensais, das tarifas de água), os camponeses que trabalham em terrenos áridos (incluindo muitos norte-americanos nativos), e especialmente, as populações rurais do norte do México.
O fim da época da água a baixo preço no sudeste - dado que poderia coincidir com o fim da energia a baixo custo - elevará o nível, já alto na região, das desigualdades de classe e raciais, e impelirá mais migrantes a desafiar a morte em perigosas travessias dos desertos fronteiriços. Não se necessita, além disso, de muita imaginação para adivinhar a futura consigna: "Vem roubar-nos a água!"
A política conservadora no Arizona e no Texas se envenenará e se manchará eticamente ainda mais. O sudeste já anda atravessado por um violento nacionalismo que se serve de bodes expiatórios e daquilo que só se poderia definir como protofascismo: na próxima seca, poderiam ser as únicas sementes capazes de germinar.
Como ilustra Jared Diamond em seu recente best-seller Colapso [Record, 2005] os antigos anasazis não sucumbiram apenas por causa da seca, mas também porque desprezaram a aridez de um território superexplorado, habitado por pessoas pouco capazes de fazer sacrifícios em seu "estilo de vida luxuoso". No fim, preferiram devorar-se entre si.
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