Circulam pelas ruas e estradas brasileiras cerca de 45 milhões de veículos. A região Sudeste concentra 23 milhões desses veículos, dos quais aproximadamente 5 milhões transitam nos 17 mil quilômetros de vias da cidade de São Paulo, o que equivale a um carro para cada dois habitantes.
A cada ponte, túnel, viaduto ou nova via inaugurada, surgem mais carros e mais congestionamentos, e o que parecia solução rapidamente se transforma em mais dor de cabeça. Tudo isso significa tempo perdido, combustível desperdiçado, mais acidentes, aumento da poluição e do nível de estresse dos moradores. A necessidade de encontrar alternativas para diminuir os congestionamentos de trânsito nas cidades e aumentar a mobilidade das pessoas se tornou, nas últimas décadas, uma prioridade.
Como reduzir o uso excessivo e prioritário que a população faz do carro? Esse é o tema de capa da revista Desafios, uma publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), na sua edição do mês de fevereiro de 2006. Com o título "pedágio urbano", a revista aponta que cresce a idéia da necessidade de se criar uma "taxa de congestinamento".
Eis a matéria, os intertítulos são nossos:
"Pedágio urbano". Tecnologia disponível
O aumento do número de veículos, a insuficiência do espaço viário disponível, a baixa qualidade dos serviços de transporte público oferecidos e o crescimento desordenado das metrópoles contribuem para piorar o funcionamento das cidades. Parece consenso, portanto, que sejam criadas formas para desestimular o uso excessivo do automóvel particular em benefício dos sistemas de transporte público coletivo de passageiros. Nesse debate, a idéia de implementar uma "taxa de congestionamento" ou um "pedágio urbano" nas cidades brasileiras, por mais impopular que seja à primeira vista, vem conquistando cada vez mais espaço e adeptos.
Essa alternativa - a tarifação das vias saturadas nos horários mais críticos por meio de controle eletrônico - é uma tese debatida há muito tempo. Um dos obstáculos para sua implementação era a falta de tecnologia para identificar o veículo em movimento, dificuldade hoje já superada no Brasil. "A proposta não é taxar a propriedade do veículo. A idéia é taxar o uso inadequado do automóvel para desestimular sua circulação nos dias, horários e locais críticos das grandes cidades. Em várias cidades brasileiras, o uso do espaço viário para estacionamento já é cobrado. Um exemplo é a Zona Azul, em São Paulo, e em outras cidades brasileiras", explica Alexandre Gomide, diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Uma solução com alto índice de rejeição
Se tecnicamente o problema já está resolvido - a identificação eletrônica do veículo para a cobrança do pedágio já é realidade em diversas rodovias brasileiras -, a impopularidade da medida parece ser o principal problema. "É uma solução difícil de ser implementada. A população vai pensar: vou ter de pagar mais uma taxa por um serviço mal prestado?", acredita Marco Antonio Ramos de Almeida, superintendente-geral da Associação Viva o Centro, que existe desde 1991 e tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento da área central da cidade de São Paulo em seus aspectos urbanísticos, culturais, sociais e econômicos.
Opinião Levantamento feito em outubro de 2006 pelo Instituto Synovate Brasil, encomendado pela Associação Brasileira de Monitoramento e Controle Eletrônico de Trânsito (Abramcet), mostra que o pedágio urbano é avaliado de forma negativa por 43% dos brasileiros e 48% dos paulistanos mais especificamente. A pesquisa, realizada em oito capitais e no interior de São Paulo, aponta também que há alto índice de desconhecimento da população sobre o tema. Apenas 37% dos paulistanos, entre motoristas e pedestres, já haviam ouvido falar desse tipo de taxa ou pedágio. Os resultados constatam que 43% disseram não ver nenhum benefício nessa medida. Para 28%, um fator positivo seria a redução do fluxo veicular. E, entre os prejuízos citados, a elevação das despesas dos motoristas foi o escolhido por 58% dos entrevistados.
Automóveis ocupam 58% do espaço viário, mas carregam somente 20, 5% das pessoas
A opção preferencial pelo transporte individual não é novidade no Brasil. Para ter uma idéia, nos principais corredores urbanos de transporte, os automóveis ocupam 58% do espaço viário, mas carregam somente 20, 5% das pessoas. Já a situação dos ônibus é inversa: são o meio de deslocamento usado por 68, 7% dos passageiros, mas preenchem 24, 6% do asfalto das avenidas e ruas das cidades brasileiras.
Proporcionalmente à quantidade de usuários que transportam, os carros ocupam 7,9 vezes mais espaço que os coletivos. Os dados fazem parte de uma pesquisa da Confederação Nacional de Transporte (CNT), concluída em 2002, que avaliou a movimentação de veículos em 27 corredores urbanos de onze municípios - Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Salvador, Belém, Goiânia, Campinas e Juiz de Fora. O desequilíbrio é tão grande que ocorre até nas vias com faixas exclusivas para os coletivos, embora a vantagem do carro na ocupação do espaço, nesse caso, seja menor (de 8, 7 vezes em relação ao ônibus). Já em corredores sem nenhum tipo de prioridade ao transporte público e com poucos semáforos, a diferença chega a 10, 5 vezes.
Caos na circulação promove o fenômeno da deseconomia
"Se o modelo de circulação de automóveis não for revisto, vai tornar as cidades brasileiras inviáveis. O caos urbano inviabiliza a economia da cidade. Isso acontece, por exemplo, com as indústrias em São Paulo, que estão migrando para as cidades menores do entorno", afirma Ieda Maria de Oliveira Lima, consultora na área de transportes e ex-pesquisadora do Ipea. O estudo "Redução das deseconomias urbanas com a melhoria do transporte público", feito em 1998 pelo Ipea em parceria com a Associação Nacional de Transportes Urbanos (ANTP), indica a importância do investimento no transporte público. Foram analisadas dez cidades - Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Curitiba, João Pessoa, Juiz de Fora, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo - com o objetivo de avaliar o impacto dos congestionamentos no acréscimo do consumo de combustíveis, do tempo gasto, das emissões de poluentes, do custo operacional e da frota de transportes coletivos e de ocupação, manutenção e controle do espaço viário. "Apesar de ter dez anos, a pesquisa é muito atual", acredita Lima.
O estudo mostra que, nos períodos de pico da manhã e da tarde, o tempo perdido pelas pessoas no trânsito varia bastante: em Brasília, havia um aumento de 1,5% no tempo do percurso, enquanto em São Paulo esse aumento chegava a 53%. E poderia ser pior se considerarmos que na capital paulista funciona um esquema de rodízio de acordo com a placa do carro que tira de circulação diariamente cerca de 20% da frota nas horas de maior tráfego. Ainda de acordo com a pesquisa, foi verificado que eram gastos 105 mil litros a mais de gasolina pelos automóveis e 2, 4 mil litros de óleo diesel pelos ônibus, a cada ano, devido aos congestionamentos severos em horários de pico na capital paulista.
Outro complicador estava no fato de que o engarrafamento tem a capacidade de gerar mais engarrafamento. Como os traslados são mais demorados, é necessário colocar uma quantidade maior de ônibus em circulação para atender a população que não quer passar um longo tempo de espera no ponto. Nas dez cidades pesquisadas, o número de ônibus em atividade aproximava-se de 5 mil, o que gerava impactos da ordem de 2% a 16% nos custos operacionais, implicando tarifas mais altas.
A conclusão é que os congestionamentos provocados pelos autos particulares contribuem também para o aumento das passagens do transporte coletivo. Sem falar que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, 30% de todos os gases de efeito estufa emitidos pelo Brasil saem dos canos de escapamento dos carros.
São Paulo: 500 novos veículos por dia
A impressão de que um dia cidades como São Paulo vão literalmente parar por causa dos congestionamentos não existe à toa. Lá, são registrados quinhentos veículos novos a cada dia útil. Considerando que cada veículo meça, em média, 2,5 metros de comprimento, seriam necessários, diariamente, mais 1,25 mil metros de vias transitáveis só para abrigar os recém-chegados. Claro que também há os que deixam de circular, mas a saída é muito inferior à entrada.
Segundo a pesquisa Origem e Destino de 2002, implementada pelo Metrô paulistano, que investiga as viagens feitas pelos moradores da região metropolitana em todos os meios de transporte, o total de viagens realizadas diariamente entre 1997 e 2002 na região aumentou em 7, 2 milhões, passando de 31, 4 milhões para 38, 7 milhões. Os deslocamentos motorizados passaram de 20, 6 milhões para 24, 5 milhões em cinco anos e as viagens a pé foram de 10, 8 milhões para 14, 2 milhões no mesmo período.
Em 2002, foi confirmada uma tendência observada desde 1997:houve aumento de participação das viagens individuais (automóvel) em detrimento da participação do modo coletivo (metrô, ônibus). Em 1997, o modo coletivo era responsável por 51% das viagens e o modo individual por 49%. Em 2002, essa relação se inverteu e a participação do modo individual passou para 53% das viagens, enquanto o modo coletivo respondeu por 47%.
"Pedágio" exige contrapartida
"Acredito que o pedágio urbano seja um ótimo instrumento para minorar o problema de tráfego nas grandes metrópoles. Em termos econômicos, é a maneira mais eficiente de fazer com que os motoristas sintam os custos que causam a terceiros, ajustando o fluxo dos veículos a um nível mais perto do que seria o 'ótimo' do ponto de vista social", diz Claudio Haddad, estudioso do assunto e presidente do Ibmec São Paulo, instituição de ensino de pós-graduação nas áreas de negócios e administração.
"Sou favorável ao pedágio urbano desde que os recursos arrecadados sejam investidos no transporte público. Essa medida seria bem-vinda para cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Entretanto, simultaneamente ao pedágio urbano teriam de ser elaboradas políticas públicas que dessem suporte ao pedágio como um plano de investimentos no transporte público, uma política de integração entre o transporte público e o carro, e a criação de ciclovias e de linhas de ônibus executivos. São Paulo é uma bomba-relógio, já chegou no seu limite. O Rio de Janeiro está no mesmo caminho", afirma Nazareno Sposito Neto Stanislau Affonso, coordenador do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade e do escritório em Brasília da ANTP.
"Uma boa saída é implantar o pedágio gradativamente, não sem antes oferecer um sistema público de qualidade para a população. E não é um projeto para qualquer cidade. São Paulo e Rio de Janeiro são as mais fortes candidatas a implementar essa medida entre cinco e dez anos. Entretanto, ainda não é possível estimar o valor que o pedágio poderia ter", diz Ailton Brasiliense Pires, especialista em transporte e trânsito, e ex-diretor do Denatran. Em sua opinião, para que possa cobrar pelo uso dos automóveis, o governo precisa oferecer a contrapartida. " Hoje, se 20% a mais de pessoas decidirem se locomover de ônibus e metrô em São Paulo, simplesmente não haverá espaço. Antes de mais nada, é preciso criar esse espaço", explica Pires.
Projetos
"Ainda temos de avançar muito antes de pensar em implantar o pedágio urbano. Seria necessário realizar um profundo estudo. Primeiro precisamos evoluir muito em políticas públicas que articulem o uso do solo ao transporte urbano", afirma Diana Meirelles da Motta, ex-secretária de Desenvolvimento Urbano e Habitação do governo do Distrito Federal e pesquisadora do Ipea. Há dois projetos do governo paulista que indicam uma preocupação cada vez maior com a mobilidade e o trânsito na cidade. O primeiro é a instalação de equipamentos que permitem a identificação e a localização automática de veículos que circulam por uma área específica da cidade. Trata-se de um sistema de radiofreqüência que prevê a colocação de antenas em algumas vias e a instalação de etiquetas eletrônicas com chips em alguns automóveis e ônibus, cuja circulação nessa região passará a ser monitorada, sendo possível saber onde eles estão e seus tempos de percurso. A idéia é usar as informações coletadas para estudar ferramentas de gerenciamento do trânsito e do transporte público.
O segundo projeto do governo do estado prevê a construção de pistas elevadas e com cobrança de pedágio sobre a marginal do rio Tietê, uma via expressa formada por um conjunto de avenidas que se transformam fisicamente em apenas uma e que margeiam o rio Tietê na cidade de São Paulo. As avenidas teriam novas vias expressas com pedágio, e as atuais pistas continuariam sem cobrança. Na prática, os 24,5 quilômetros da marginal, por onde circulam cerca de 750 mil veículos por dia, passariam a ter onze faixas em cada sentido - quatro secundárias, três semi-expressas e quatro expressas. Hoje, são sete faixas na maior parte da via. Nesse caso, entretanto, seria um pedágio diferente, já que os recursos arrecadados seriam revertidos para o investimento feito na construção das novas faixas, calculado em 1 bilhão de reais. Já o pedágio urbano teria outra finalidade: taxar tão somente o uso do carro.
Autonomia para os municípios decidirem
Para dar respaldo legal aos municípios que queiram adotar propostas desse tipo, o governo federal preparou um projeto de lei que deve, em breve, ser enviado ao Congresso Nacional para apreciação. O projeto do Ministério das Cidades estabelece diretrizes da política nacional de mobilidade urbana e permite às prefeituras a adoção de diversos instrumentos de racionalização do espaço viário, incluindo a taxação pelo sobreuso do automóvel.
"O município tem autoridade para construir pedágios e aplicar outras medidas de racionalização do sistema viário, porém algumas ações das prefeituras acabam sendo questionadas juridicamente e até derrubadas. A lei é importante justamente porque estabelece todo o amparo legal necessário para que isso não aconteça mais", explica José Carlos Xavier, secretário Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana, do Ministério das Cidades. Segundo ele, o projeto tem dois objetivos: articular a política de mobilidade ao transporte coletivo e ao uso do solo, e abrigar e dar condições legais para qualquer questionamento que possa vir a ocorrer em relação a medidas de racionalização do espaço viário.
"A definição do destino dos recursos do pedágio urbano, que devem ser revertidos para o transporte público, vai acontecer posteriormente por meio de uma regulamentação local ou de uma emenda parlamentar, pois é importante que essa definição conste da lei", acredita Xavier.
Lá fora
A discussão não é polêmica só no Brasil. Na Cidade de Cingapura, em Cingapura, em Oslo, na Noruega, e em Londres, na Inglaterra, o pedágio urbano, apesar de já ser uma realidade, enfrentou resistências iniciais da população. As principais críticas diziam respeito ao caráter arrecadatório e às eventuais dificuldades logísticas para a implementação e o bom funcionamento da medida. Hoje, o cenário é outro. A população acabou convencida dos benefícios. Na Cidade de Cingapura, onde a cobrança existe de 1975, o trânsito, embora ainda intenso, diminuiu 17%. Já em Oslo a população só se convenceu do pedágio depois que o governo decidiu destinar 25% do arrecadado ao transporte público.
Na capital londrina, o pedágio urbano existe desde fevereiro de 2003. Lá, para entrar numa área de 20 quilômetros quadrados no centro da cidade, entre 7 horas da manhã e 18h30, de segunda a sexta-feira, os veículos têm de pagar 5 libras (cerca de 21 reais) por dia. O pagamento é antecipado e pode ser feito por telefone, Internet, no correio ou em lojas autorizadas. Mas quem esquecer pode pagar, sem multa, ainda no mesmo dia em que entrou na área pedagiada. A multa para quem não pagar é 80 libras (por volta de 345 reais). Estão isentos ônibus, táxis, motos, bicicletas, ambulâncias, carros de polícia e veículos para deficientes físicos. O controle é feito por novecentas câmeras, espalhadas por 230 pontos, que fotografam a placa do veículo. A foto é enviada a um centro de processamento de dados, onde o número é conferido com o pagamento. Além disso, unidades móveis de fiscalização circulam pelo centro no horário do pedágio, também conferindo as placas e os pagamentos.
Em média, 98 mil pessoas têm pago o pedágio diariamente e 3 mil a multa. Por ano, o sistema de cobrança tem gerado lucro líquido de 70 milhões de libras (cerca de 300 milhões de reais). Esse dinheiro é usado para cobrir os custos da implantação do sistema, que foram de cerca 200 milhões de libras (aproximadamente 800 milhões de reais). Parte da arrecadação também vai para o melhoramento do transporte público na cidade. O impacto do pedágio em Londres foi grande.
Hoje, circulam cerca de 60 mil veículos a menos por dia, o que representa uma redução de 30%. Houve um incremento de 20% no número de táxis, 20% no de ônibus, 30% no de bicicletas e 30% no de motos. O tempo das viagens diminuiu, em média, 17% e a velocidade dos veículos em geral aumentou de 14, 3 para 16, 7 quilômetros por hora. Além disso, houve redução de 8% no total de acidentes com feridos. Será que seria essa a saída para melhorar o trânsito caótico de algumas de nossas cidades?
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