"Ninguém sabe ao certo quando a maré começou a baixar, ou o exato momento em que o ouro americano começou a perder, lentamente, mas de modo irreversível, o seu brilho. Hoje, contudo, muitas lojas na China não aceitam mais cartões de crédito baseados em dólar emitidos por bancos estrangeiros (o cliente paga em dólar, mas o lojista é pago em renminbi) e os estrangeiros não conseguem converter dólares americanos na moeda local além de uma determinada quota", escreve Victor Zhikai Gao, diretor executivo da Beijing Private Equity Association, e diretor da China National Association of International Studies, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 16-05-2009. "Nós ainda nos referimos ao dólar como ouro americano - escreve Gao. Mas os Estados Unidos não devem entender que isso nunca vai mudar".
Eis o artigo.
Na China as pessoas ainda costumam se referir ao dólar como "mi jin", ou ouro americano. Autoridades de governo, empresários e pessoas da rua usam esse termo. Portanto, se um chinês disser que lhe deve 100 ouros americanos, não espere uma grande fortuna porque, na verdade, são apenas US$100.
Essa noção do dólar americano como sendo um padrão ouro está tão profundamente arraigada entre os chineses a ponto de sobreviver à decisão do presidente Richard Nixon, em 1971, de desatrelar o dólar do ouro.
Há cerca de 30 anos, as reservas cambiais da China eram de apenas US$167 milhões. Numa importante reunião no fim dos anos 70, o líder da China, Deng Xiaoping, falando para uma plateia de autoridades do alto escalão de governo, profetizou que : "Um dia teremos uma reserva em moeda estrangeira tão grande como US$10 bilhões!" O público silenciou, considerando essa uma cifra improvável. Depois de uma longa pausa, Deng prosseguiu dizendo a um público pouco convencido: "Camaradas, imaginem! Com 10 bilhões de ouros americanos, quanto a China pode fazer?"
Essa visão que Deng tinha do dólar era reflexo da sua admiração por muitos elementos positivos do capitalismo americano. Em novembro de 1986, trabalhei como intérprete de Deng no seu encontro com John Phelan, chairman da Bolsa de Valores de Nova York, em visita a Pequim.
Nessa reunião, Deng disse ao chairman: "Vocês são capitalistas abastados com uma grande riqueza, e a China ainda é muito pobre. O senhor conhece muito bem o mundo das finanças e os mercados de capitais. Pode ensinar muita coisa à China a respeito. Um dia, no futuro, a China também terá sua própria bolsa de valores".
Esse foi o prelúdio do rápido crescimento econômico da China. As reservas cambiais do país estão próximas de US$2 trilhões e, desse total, US$1,5 trilhão está investido em ativos em dólar. Com a crise financeira global, a atenção do mundo quase sempre se concentra nessa imensa pilha de dólares americanos em mãos dos chineses.
O que muitos não lembram é que, durante anos, houve uma escassez ou uma temida escassez de dólares americanos. Nos anos 80, por exemplo, o governo exigiu que todas as pessoas convertessem seus dólares em moeda chinesa, o renminbi, que literalmente significa "dinheiro do povo". Com isso, o ouro americano tornou-se um símbolo de status. Apesar da conversão compulsória em renminbi, muita gente reteve seus dólares, ou comprou mais da moeda a taxas de câmbio infladas, isso quando era possível encontrar alguém disposto a vender.
Ninguém sabe ao certo quando a maré começou a baixar, ou o exato momento em que o ouro americano começou a perder, lentamente, mas de modo irreversível, o seu brilho. Hoje, contudo, muitas lojas na China não aceitam mais cartões de crédito baseados em dólar emitidos por bancos estrangeiros (o cliente paga em dólar, mas o lojista é pago em renminbi) e os estrangeiros não conseguem converter dólares americanos na moeda local além de uma determinada quota.
No passado, os chineses guardavam dólares, mas não para um fim imediato. Hoje, preferem manter uma reserva apenas se precisarem de dólares para enviar os filhos para escolas no exterior, para viajar, ou fazer negócios em outro país.
E o governo está ficando mais preocupado com a segurança dos seus investimentos nos Estados Unidos, grande parte em papéis do Tesouro americano e títulos quase soberanos emitidos pela Fannie Mae e Freddie Mac.
Recentemente, Pequim exigiu um papel maior no comércio internacional dos Direitos Especiais de Saque (SDR, sigla em inglês) do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas a China também tem plena consciência de que os americanos podem vetar uma decisão do FMI. O apelo da China teve o objetivo de soar o alarme para os Estados Unidos.
Muitos chineses estão cada vez mais temerosos com a rápida corrosão do dólar americano. Os Estados Unidos devem pensar na adoção de medidas de proteção contra a inflação para os investimentos da China no país e oferecer uma proteção ou garantias adicionais para seus continuados investimentos. E devem também oferecer à sua maior credora mais transparência e informação.
Nós ainda nos referimos ao dólar como ouro americano. Mas os Estados Unidos não devem entender que isso nunca vai mudar.
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