Rondon: altura média, testa larga, fisionomia distinta,traços finos, olhos amendoados, queixo delgado. Herói que nasceu soldado e morrerá soldado. Mas herói ‘sui generis’ que, para não matar, nem deixar que se matasse um só homem, preferiu arrostar cem vezes a morte...
(Fuad Carim - Embaixador da Turquia no Brasil)”.
Falar de Rondon é abusar dos adjetivos, é falar no superlativo. Encontramos na obra de Esther de Viveiros um relato pessoal que não nos cabe, como cronista, nada acrescentar. Apresentamos ao leitor brasileiro a vivencia contagiante de brasilidade de um ícone tão magnífico que a própria história resolveu materializar sua grandeza emprestando seu nome a um estado brasileiro - Rondônia. Resolvemos apresentar Rondon em quatro artigos iniciando pela sua origem até o seu ingresso na Escola Militar.
- Benjamim Costallat
"Esse caboclo, peregrino por patriotismo, viajante por ideal, desbravador por destino, apaixonado por ofício, pioneiro por temperamento, incansável por dever, estóico por profissão, soldado da paz, a serviço das fronteiras que ajudou a demarcar e do sertão ,que ajudou' a revelar, na mais nobre das conquistas e na mais santa das vitórias, Rondon é glória que reúne os mais altos méritos militares aos mais altos méritos civis".
- Família
Cândido Mariano da Silva Rondon, militar e sertanista brasileiro, mais conhecido como Marechal Rondon, nasceu em Mimoso, MT, em 5 de maio de 1865.
“(...) minha ascendência materna indígena - índios terena e índios borôro. Com os guaná de quem descendia minha avó paterna, Maria Rosa Rondon, são três as tribos de que descendo.
(...) Casaram-se meus Pais, Cândido Mariano da Silva e Claudina Lucas Evangelista, no Mimoso. Foram meus padrinhos Antônia Rosa da Silva e Quintiliano Pereira de Castro. Maria Antonia de Arruda, mulher do pescador Antônio Alves, foi ‘madrinha de carregar’, isto é, ter nos braços o neófito, até lhe ser ministrado o sacramento do batismo”. (Viveiros)
- A terra Natal
“Mimoso é distrito do município de Santo Antonio do Leverger, antigamente Santo Antonio do rio Abaixo.
(...) Era eu já um pequenino vaqueiro. Corria logo que alguém ia tratar do gado ou tirar leite. E não era só do leite que eu gostava. Quando, segundo a expressão popular, ‘o homem transformava o touro, que Deus fez, em boi’, corria para junto da fogueira onde se realizava a operação e onde se assava o que fora extraído, e que todos nós saboreávamos.
Iniciei, bem pequeno, as caçadas, de que fui sempre apaixonado - até que lhes compreendi a desumanidade. Minha arma era um bodoque com que atirava pelotas de barro.
Vivia vida ao ar livre, vida sã e ativa, naquelas paragens pelos borôros denominadas Aquiríio - nome de um pequenino pássaro que vive e faz os ninhos no capim macio das campinas. Voa para o alto, verticalmente, como uma seta, a subir cada vez mais, embriagado de luz e de altura, até desaparecer no azul... para depois se deixar cair, com um longo assovio aquirí-i-i-i-i-i-o...
Em mim se desenvolviam, assim, naturalmente, os germes de todos os elementos do sertanejo.
Meu avô materno, já viúvo, e Dindinha Joaquina que me criavam, não se esqueciam, entretanto, de me instruir.
Terminada a guerra do Paraguai, em fins de 1871, veio para o Mimoso um ex-sargento de ‘Voluntários da Pátria’. Propôs aos fazendeiros de maior destaque - entre os quais Antônio Caetano, meu tio, e João Lucas Evangelista, meu avô - ensinar a petizada, fundando uma escola de onde, ao terminar o ano, saía eu sabendo ler e escrever.
Usava o ex-sargento barba cerrada. Apesar do aspecto severo, só lhe chamávamos o 79, seu número no regimento. Seu nome era Jacinto Heliodoro de Almeida e nascera em Niterói”. (Viveiros)
- Cuiabá
“Em colóquio íntimo, transmitira meu Pai a meu tio seus tristes pensamentos: ‘Mano Manoel Rodrigues, sinto-me muito doente. Penso no primeiro filho que vou ter. Posso morrer antes que ele nasça. Meu irmão, se isso acontecer, e se o filho esperado for um menino, não o deixe no Mimoso. Mande-o buscar, afim de o salvar da triste ignorância em que jazem os filhos dos mimoseanos. Aqui. em Mimoso. Será ele um vaqueiro ignorante; na Cidade, poderá se preparar para servir melhor nossa Terra’.
E realizaram-se aqueles tristes pressentimentos - não pôde ele estreitar nos braços o filhinho. Veio a falecer em fins de dezembro de 1864, Quando rebentou a guerra do Paraguai, e eu nasci a 5 de maio de 1865, no aceso da luta desumana.
Dois anos e meio depois, falecia minha Mãe.
Meu tio. Manoel Rodrigues da Silva. sem aquilatar o alcance do compromisso tomado, cumpriu-o religiosamente: mandou buscar-me quando atingi a idade de 7 anos. E assim é que passei a segunda infância e o início da puberdade em Cuiabá, em companhia daquele tio, realizador dos sonhos de meu Pai.
(...) Era solitária e triste minha vida, em casa do tio viúvo - perdera ele a esposa, dois anos depois de minha vinda para sua companhia. Só tinha relações com a família de Manoel Lino de Christo, casado com Nhá Vita, irmã de sua falecida esposa, com Nhá Juvência, outra irmã, casada com João Marques, o ‘palhaço’, como lhe chamavam, pelas suas pilhérias e com Nhá Balbina, outra parenta.
Minha convivência era, pois, com filhos de trabalhadores que frequentavam a escola. E, desde logo, como sempre, no correr de minha carreira, puseram-me como chefe, chefe da meninada.
Aliás, não tinha eu muito tempo para brincar. Quando não estava agarrado aos livros, ia ajudar o tio na venda de roça, onde de tudo se vendia, inclusive peixe frito que, com farinha, constituía a alimentação dos trabalhadores.
(...) Ao chegar eu a Cuiabá, em 1873, estavam fechadas as matrículas nas escolas públicas e, para não perder tempo, pôs-me meu tio na escola particular de Mestre Cruz. No ano seguinte fui matriculado na escola pública do Professor João Batista de Albuquerque, uma vez que meu tio não tinha posses para pagar uma escola particular.
(...) Passei, depois da escola de Mestre João, para a do Professor Francisco Ribeiro da Costa, Mestre Chico, na qual completei o curso primário, em 1878.
(...) Matriculei-me em 1879 na Escola Normal - que tomou no ano seguinte o nome de Liceu Cuiabano - completando com distinção o curso normal, em princípio de novembro de 1881, isto é, com 16 anos. Tornei-me assim, uma vez diplomado, apto a exercer as funções de professor primário, tendo sido nomeado.
Sem conhecer ainda os sonhos de meu Pai a meu respeito, inspirei-me nas resoluções de meus colegas do Liceu, que assentavam praça para estudar na Escola Militar.
(...) Por isso, pouco antes de me formar, procurei meu tio, para uma conversa. O bom Manoel Rodrigues assustou-se, quando lhe disse:
- Meu tio, deixe-me estudar no Rio de Janeiro.
- Como te poderei eu sustentar lá! Procurei satisfazer teus desejos, nesse teu anseio de aprender, de progredir, mas mandar-te para o Rio, não é possível, não tenho recursos para isso!
- Não lhe estou a pedir recursos, meu tio, e sim o seu consentimento. Quanto aos meios para estudar no Rio, há muito venho preocupado com o problema, e já lhe encontrei a solução.
(...) Aflito, ao pensar nas dificuldades que teria eu de enfrentar, como soldado, foi procurar seu amigo, o Dr. Malhado, médico, professor de pedagogia na Escola Normal, que me dera distinção. Expôs-lhe suas preocupações.
Voltou Manoel Rodrigues satisfeitíssimo e apressou-se em me comunicar que decidira me adotar, para que, na qualidade de filho de Capitão da Guarda - Nacional, me fosse possível iniciar a carreira como cadete, e não como soldado. Dr. Malhado dar-me-ia carta de recomendação.
Qual não foi, porém, sua surpresa quando, em vez da alegria entusiástica com que contava, teve a minha resposta:
- Fico-lhe muito agradecido pela sua idéia, mas não posso aceitar que me adote.
- Dizes-me isso a mim, que te criei, que fiz por ti tudo quanto em mim coube!
- Pai só posso ter um - é o Senhor meu tio, um tio que muito prezo e a quem muito estimo. Nunca poderá, entretanto, ser meu Pai!
E fui assentar praça.
Não aceitei também carta de recomendação.
- Se não puder me encaminhar sozinho, renunciarei a meus projetos e serei vaqueiro - garanto-lhe que bom vaqueiro!
- Para não magoar Dr. Malhado, aceite a carta e dê-ma. Inutilizá-la-ei.
Tinha Manoel Rodrigues da Silva um homônimo cajas falcatruas andavam pelos jornais - resolveu, por isso, acrescentar ao seu nome o apelido de sua Mãe: Rondon. E passou a assinar-se Manoel Rodrigues da Silva Rondon.
Ao formar-me, adotei o nome de Rondon, em homenagem ao tio que quisera ser meu pai. Requeri, ao Ministro da Guerra, permissão para acrescentar Rondon ao meu nome e passei a assinar Cândido Mariano da Silva Rondon, depois de deferido meu requerimento”. (Viveiros)
- Soldado
“Poucos dias, apenas, depois de ter terminado meu curso no Liceu Cuiabano, era eu soldado do 3° Regimento de Artilharia a cavalo, com praça verificada a 26 de novembro de 1881, no Quartel do antigo acampamento Couto de Magalhães, em Cuiabá, e com destino à Escola Militar da Praia Vermelha. Para isso requeri, previamente, licença para nela me matricular.
Embarquei a 2 de dezembro desse mesmo ano de 1881, com destino ao Rio de Janeiro, aonde cheguei a 31.
Fui então mandado adir ao 2° Regimento de Artilharia a cavalo, onde iniciei a instrução de recruta, e incluído na 4ª Bateria do Regimento, sob o comando do então Capitão Hermes da Fonseca, com o soldo de 3$160.
Não tardou muito, porém, que reconhecessem em mim preparo acima daquelas funções e, como eu tinha boa letra. fui designado para o cargo de amanuense da secretaria do Regimento.
Tendo, mais tarde, o Quartel Mestre General requisitado uma praça, graduada ou não, para o cargo de amanuense, fui eu designado.
Vinha a pé de São Cristóvão ao Quartel General - mas, ao chegar à esquina da praça, comprava pé de moleque a uma baiana. Sacudindo os balangandãs e mostrando os dentes alvos, em bondoso sorriso, oferecia ela gostosas guloseimas, ativando, de vez em quando, as brasas em que assava os beijus.
Muito me fazia sofrer o alojamento com os cadetes. Minha vida de menino que só tinha um sonho - estudar para bem servir sua Terra - não me preparara para a convivência com rapazes de tão descabelada linguagem.
Como amanuense do Quartel Mestre General, porém, poderia eu residir fora do alojamento. Desarranchado, passei a receber um soldo que me permitia pagar o aluguel do quarto e fazer as refeições em um frege-moscas... Vinha o bodegueiro, um gordo português, ler o cardápio - deixava-o eu cantar a lista dos quitutes e invariàvelmente pedia um prato de feijão... que comia com pão.
E assim vivia sem apuros. Arranjara um meio de poupar lavagem de roupa: usava um colarinho de celulóide na gola da farda irrepreensível, rigorosamente abotoada... para disfarçar a falta da camisa.
Não eram válidos, para a matrícula nas Escolas Superiores do Rio, os exames do Liceu Cuiabano. Não me foi assim possível matricular-me na Escola Militar em 1882. Não desisti, entretanto, como meus colegas de Cuibá, vindos ao Rio com o mesmo objetivo, que regressaram, convidando-me a que fizesse o mesmo. Mantive-me firme no propósito de contornar a dificuldade.
Procurei imediatamente solução para esse novo problema e verifiquei que os exames, prestados na Instrução Pública, eram válidos para a Escola Militar.
Inscrevi-me, pois, em 1883, em todos os exames do Externato Pedro II e cheguei a prestar os de português e geografia cujo lente, o Dr. Xavier - que mais tarde viria a ser meu sogro - me deu plenamente.
Choviam, entretanto, empenhos para que todas as praças, aprovadas no exame de admissão, que tivessem requerido matrícula na Escola Militar - era esse o meu caso - fossem admitidas como adidas à mesma Escola. O Ministro Carlos Afonso, o Afonsinho, como lhe chamavam, cedeu e assim nós, 200 praças, fomos adidos à Escola Militar. Eram 200 novos alunos acrescentados à matrícula de 1883.
Iniciei, pois, em 1883 meu curso de preparatórios, de 3 anos. Assim, só em 1886, no caso de ser sempre aprovado, poderia eu iniciar meu curso superior, para o qual trazia, do Liceu Cuiabano, todos os preparatórios necessários que só não poderiam ser aproveitados por não serem reconhecidos oficialmente. Decidi, pois, cursar o 1° ano exigido pelo regulamento e requerer, no fim do ano, exame vago dos 2° e 3° anos.
Meus companheiros ficaram estatelados ante minha audaciosa decisão.
- Bicho peludo! pensas que com matemática de Cuiabá vais vencer! É muito atrevimento! Vais levar bomba, na certa!
- É possível, mas estou convencido de que sei e vou tentar.
E tentei. Com matemática de Cuiabá, tirei eu, o ‘bicho peludo’, distinção no 1° ano e plenamente de 2° e 3° anos.
Nunca se havia realizado tal façanha na Escola Militar cujo rigor era inquebrantável, mas, vencendo, habilitei-me a me matricular no curso superior, o que realmente fiz, em 1884”. (Viveiros)
Fonte: VIVEIROS, Esther de – Rondon conta sua vida - Brasil, Rio de Janeiro,1958 – Livraria São José.
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