"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música"
Friedrich Nietzsche

quinta-feira, agosto 07, 2008

O mundo pós-unipolar

Blog do Luis Nassif - 06/08/08

O novo impasse transatlântico

Por David P. Calleo

No Valor de hoje



(...) Os interesses geopolíticos da Europa e dos EUA vêm divergindo e poderão continuar assim, pouco importa quem seja o presidente.

Interromper esse distanciamento progressivo exigirá importantes mudanças nas perspectivas e políticas nos dois lados do Atlântico. Os EUA terão de parar de definir seus interesses transatlânticos em termos de sua mentalidade hegemônica e a Europa terá de assumir um comando mais pleno de sua própria região.

A referência a interesses geopolíticos ressalta a influência da geografia na configuração desses interesses. É famosa a concordância expressa por Charles de Gaulle e Winston Churchill: "Em última instância, a Grã-Bretanha é uma ilha, a França é uma ponta de continente; os EUA são de outro mundo". De Gaulle e Churchill compreenderam que durante séculos o Canal da Mancha constituiu uma colossal barreira geopolítica a um compartilhamento de interesses durável entre o Reino Unido e a França. Se o canal é tal barreira, vínculos duradouros através do Atlântico parecem implausíveis.

Em outras palavras, dessa perspectiva os dois espaços econômicos mais ricos e mais poderosos do mundo, União Européia (UE) e EUA, tendem a ser rivais, mesmo quando são aliados.

Com efeito, um inimigo compartilhado deu suporte à aliança dos EUA com partes da Europa durante grande parte do Século XX. Esse inimigo, porém, também era europeu - primeiro a Alemanha e depois a Rússia. De fato, o interesse geopolítico transatlântico compartilhado foi entre os EUA e uma parte da Europa contra outra.

Com o colapso da União Soviética (URSS), em 1991, a aliança transatlântica confrontou novas realidades. Os interesses tanto da UE como dos EUA foram amplamente redefinidos. (...) A Europa Central reviveu e a Alemanha foi reunificada. A Europa Ocidental evoluiu - de uma "Comunidade" para uma "União" - e seus Estados tornaram-se menos firmemente vinculados à proteção americana.

A extinção da URSS estimulou as elites políticas americanas a construir uma visão "unipolar" da posição e interesse mundiais dos americanos. Essa tendência acelerou à medida que o atual governo Bush tentou construir uma hegemonia unilateral mundial a partir da "guerra ao terror", que provocou crescente inquietação na "Velha Europa".

Embora a invasão do Afeganistão pelos EUA tenha sido amplamente considerada como justificada, a invasão do Iraque por forças anglo-americanas provocou uma fratura exposta entre os EUA e seus dois maiores aliados continentais, França e Alemanha, que foram apoiados pela Rússia e pela China. Um grande bloco eurasiano surgiu repentinamente em oposição às pretensões de hegemonia mundial americana, prefigurando uma nova fluidez nos relacionamentos geopolíticos, se não uma mudança tectônica de alinhamentos.

A eficácia da resistência franco-alemã à hegemonia americana foi, no entanto, temperada pelas reações de outros países europeus. Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido, fez o melhor a seu alcance para ressuscitar a relação especial da era Churchill, e o Reino Unido recebeu a adesão da Itália e da Espanha, juntamente com quase todos os países da Nova Europa. A dupla franco-alemã já não pôde alegar estar falando em nome da UE como um todo. Os planos europeus para uma política externa e de segurança comuns e para uma cooperação mais estreita no setor de defesa pareceu brutalmente desacreditada.

Aos poucos, porém, a Europa pareceu avançar em sua coesão na oposição às políticas e pretensões unipolares americanas.

(...) As razões para a defecção européia são eminentemente geopolíticas. A leste da Europa está a Rússia, a seu sul, o mundo muçulmano. A Europa necessita boas relações com ambos com a finalidade de penetrar mercados crescentes, acessar fontes de matérias-primas e energia e garantir sua própria estabilidade doméstica, ao mesmo tempo em que muitos europeus acreditam que as políticas americanas gerem atritos com essas regiões. Nessas circunstâncias, a aliança transatlântica sobrevive menos por interesses efetivamente compartilhados do que devido a inércia.

Poderá alguma coisa restaurar a antiga harmonia transatlântica? Um forte renascimento do imperialismo russo ou uma guerra entre civilizações com o mundo muçulmano poderia criar ameaça tão ameaçadora que uma Europa amedrontada retomaria sua dependência em relação aos EUA, como durante a Guerra Fria. Mas a Europa não estará ansiosa por abraçar tal futuro. (...) A construção de um sistema de Estados tão balanceado em escala regional foi a grande realização da Europa no Pós-Guerra.

(...) O que parece efetivamente claro é que uma Europa coesa, forte e mantendo bom relacionamento com seus vizinhos não se encaixará facilmente em uma aliança transatlântica estreita com os EUA se os americanos estiverem empenhados em manter hegemonia mundial.

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