Do Estadão
Boris Fausto
Duas linhas de interpretação, com as respectivas nuances, desenham-se numa questão que está na ordem do dia entre nós: a das escutas telefônicas e outras formas de quebra da privacidade. Uma dessas linhas é a daqueles que vêem as escutas ilegais como prova de que vivemos num Estado policial, ou pelo menos policialesco, em que o Grande Irmão se tornou figura central, nada escapando a seu olhar inquisidor.
(...) Os defensores da outra linha de interpretação afirmam, ou pelo menos deixam entrever, que o "preciosismo legal" vem tolhendo o combate à corrupção, exatamente no momento em que, no mar agitado de nossa vida social, a ação combativa começou a alcançar não apenas lambaris, ou peixes de porte médio, mas o que outrora se chamava de tubarões.
(...) Diga-se de passagem que as discordâncias aí existentes não refletem, a meu ver, um desmoronamento institucional, mas sim percepções contrastantes, que têm que ver com fatores vários, como a complexidade dos temas em jogo, a existência de uma carreira policial prestigiosa no nível federal e a emergência de novas gerações nas carreiras jurídicas.
(...) Sem pretender dar lições, considero estarmos no curso de uma navegação difícil, em que excessos de ênfase, numa ou noutra posição, são negativos. Hoje, tornou-se claro aquilo que há pouco tempo era apenas um rumor: a ampliação desmedida e descontrolada de escutas e interferências de todo tipo na comunicação entre as pessoas por parte de órgãos como a Abin, a Polícia Federal ou franco-atiradores de menor calibre. Os detalhes, a repartição de responsabilidades são objeto de uma investigação muitas vezes indecifrável, mas a constatação geral é essa.
Não creio, porém, que o descontrole das escutas, cuja gravidade é gritante, signifique que o Brasil se converteu num Estado policial, ou policialesco. O próprio debate acalorado e as medidas legislativas propostas, no sentido de regular as hipóteses e as formalidades para se autorizar a quebra de sigilo das comunicações, mostram que não estamos à beira de um regime de exceção.
Por outro lado, na outra vertente, bem conhecemos os riscos da tolerância com a ilegalidade, em nome de um objetivo maior. As ilusões e desilusões com regimes de exceção de todo tipo nos ensinaram que os fins não justificam os meios, mesmo porque meios e fins estão entrelaçados. Mas essa constatação não exclui o fato de que, nos dias de hoje, o aparato material e os recursos legais de que dispõem, por exemplo, quadrilhas especializadas no tráfico de drogas, ou réus dotados de grande poder econômico, são de tal ordem que é inútil enfrentá-los com instrumentos de investigação precários e com base numa legislação e numa hermenêutica, sob vários aspectos, contrastante com a realidade social. Esta última circunstância acaba, muitas vezes, resultando na impunidade de autores de crimes de reconhecida gravidade, só suscetíveis de prisão depois do trânsito em julgado do último de inúmeros recursos. É preciso ter em conta também que, dada a complexidade e a importância que o sistema financeiro assumiu nas atividades econômicas, faz todo o sentido a especialização de juízes no conhecimento dos meandros desse sistema, apesar das muitas críticas às varas federais especializadas. (...)
Nenhum comentário:
Postar um comentário