Agora é a fome. Fome de verdade, com o estômago inchado por causa das raízes e ervas engolidas nos últimos dias. Muitos não comem há uma semana. Avançam exaustos: “Só temos água”, dizem. Não sabem nem aonde devem ir. Param quando o corpo cede à fraqueza, à dor, às feridas. Prostram-se no chão. Tombam e dormem.
A reportagem é de Daniele Mastrogiacomo, do jornal italiano La Repubblica, 02-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A noite, no norte do Kivu, região do extremo leste do Congo, é o único momento que a paz triunfa. O céu, envolvido em um manto negro, se ilumina de estrelas. No sul, brilha a água do grande lago. No oeste, assoma-se a cadeia de montanhas de Masisi, o coração dos soldados rebeldes guiados pelo general Laurent Nkunda. Mas a noite significa também frio, umidade, com a água que cobre tudo e todos. Muitos, entre os 20 mil que jazem nas bordas dessa estrada transformada no enésimo campo móvel para refugiados, 20km ao norte de Goma, acabam por não se levantar mais. Os poucos testemunhos que conseguimos obter com o telefone nos contam cenas atrozes. A dor, o horror, o sofrimentos dessas duas últimas semanas anularam todo o sentimento de piedade.
Está em curso uma luta pela sobrevivência: 220 mil pessoas deixaram suas casas em agosto, segundos as estimativas da ONU, levando a um milhão os refugiados de toda a região. Quem morre é deixado no mesmo lugar. Os outros tomam um caminho que não tem nenhuma meta. “As pessoas – nos conta Raffaella Gentilini, coordenador sanitário dos Médicos Sem Fronteiras, uma das pouquíssimas ONGs ainda ativas na região – não sabem aonde ir. Avançam às cegas. Caminham alguns quilômetros, procuram um refúgio onde possam parar por uns dias. Mas vivem na incerteza. Sabem que deverão se deslocar de novo”. Voltando de novo ao norte, depois ainda ao sul, para se encontrar, no fim, no ponto de partida. O front da guerra entre o exército da República Democrática do Congo e os rebeldes do general Laurent Nkunda muda continuamente. Desloca-se do maciço dos Masisi até as fronteiras com Ruanda e Uganda. Até a trégua decretada na quarta-feira passada não oferece garantia alguma. O alto comissariado para os refugiados da ONU continua falando de saques e estupros.
Ninguém é capaz de dizer por obra de quem. A zona foi invadida por milícias desordenadas. Acusar o general Nkunda significa apoiar o governo de Kinshasa. Valorizar uma guerra que muitos países, com os seus passados coloniais, desejariam limitar a um combate étnico entre tutsi e hutu. Apontar o dedo sobre o exército regular congolês quer dizer favorecer a estratégia de Kigali que procura novas terras sobre o oeste. A realidade é mais simples e complexa ao mesmo tempo. O norte do Kivu é uma região rica em matérias-primas. Não tanto ouro e diamante, mas coltan [columbita-tantalita] e cobalto. Servem para produzir celulares, computadores e outros materiais eletrônicos. Há um acordo de nove milhões de dólares entre o governo da RDC e um consórcio de empresas chinesas para a exploração dessas jazidas. Pequim assegurou a extração do 10,6 toneladas de coffer e 626 toneladas de cobalto. Em troca, comprometeu-se a construir um sistema rodoviário que nunca existiu. Mas o norte do Kivu é também uma terra muito fértil. Os agricultores podem obter até três colheitas por ano. Os pastores garantem pastos imensos. Os primeiros são, sobretudo, de etnia hutu; os segundos pertencem aos tutsi. Ter uma vaca ou um pedaço de terra nestas regiões é tudo. Significa alimento, dignidade, respeito, bens, poder. Os limites estabelecidos pelos impérios coloniais de modo artificial e esquemáticos, traçando uma linha reta sobre o mapa geográfico, desorganizaram tradições e equilíbrios que andavam juntos há séculos. A convivência entre as diversas etnias se despedaçou. Alguém fomentou uma rivalidade que nunca existiu. Jogou com as raças, os privilégios, a ignorância e a pobreza. Alimentou ódios e rancores. Até um massacre, preordenado e estudado teoricamente, que provocou um genocídio de um milhão de pessoas.
Tutsi e hutu moderados. O espectro de uma outra matança executada em 1994 pelo general Laurent Nkunda. Esse ex-oficial do exército congolês, ele também tutsi, em 2006, abandonou Kinshasa e fundou o CNDP, o Congresso Nacional para a Defesa do Povo. Esconde-se no leste do país e se coloca na cabeça dos habitantes da zona, todos congoleses, mas tutsis: os banyamulenge. Considera-os seus irmãos, vê-los ameaçados, muitos já foram mortos. Vivem sobre uma terra que agora é invadida pelos interhawne, as milícias dos extremistas hutu responsáveis pelo genocídio ruandês, fugidos de outras fronteiras e amontoados nos campos de refugiados. O presidente Jospeh Kabila, que chegou ao poder muito jovem depois do assassinato de seu pai, Laurent Desirè Kabila, uma figura mítica na longa luta da FrentePatriótica Ruandesa, reage como pode. Mas é inexperiente. O seu governo vacila, o exército se desfaz, corrupto, sem guia e disciplina. Quem comanda de verdade, em Kinshasa, são os políticos e os lobbies dos comerciantes. Kivu não pode ser abandonada. As indústrias eletrônicas estrangeiras pressionam. Desejam aqueles minerais. Em duas ocasiões, entre 1998 e 2003, e depois ainda entre 2004 e 2008, o Congo é agitado por uma guerra. Chega-se a um acordo. Kigali se compromete a deixar entrar novamente na pátria os hutu dos campos de refugiados; Kinshasa, a integrar no seu exército também os congoleses banyamulenge. Mas os acordos ficam no papel. Resistem fatigosamente. Ruanda fecha as suas fronteiras, não confia na entrada dos autores de um genocídio que desconstruiu a história do país. O Congo não é capaz de organizar um verdadeiro exército. Os combates recomeçam. A ONU envia ao lugar o maior contingente dos capacetes azuis: 17 mil homens têm o dever de sustentar os soldados congoleses à deriva e de assistir a população civil. A missão fracassa.
Kivu volta a ser o centro de uma guerra nunca terminada. O mundo parece reagir. Busca recompor um fio de diálogo. No local, a situação permanece dramática. Todos dizem isso. A União Européia, a ONU, a França, a Grã-Bretanha: mesmo ontem, em nome da União Européia, o ministro do Exterior francês, Bernard Kouchner, em missão em Kinshasa com o colega britânico David Miliband, pediu aos governos do Congo e da Ruanda que apliquem os acordos já firmados para resolver a crise.
Enquanto isso, um milhão de pessoas são trituradas nas batalhas inesperadas. Com vinganças, saques, incêndios. Há 50 mil desabrigados diante de um campo destruído pelas chamas, outros 75 mil acampados em barracas provisórias mais ao sul, 100 mil que vagam entre as florestas e os caminhos. Deslocam-se de qualquer jeito. Freqüentemente sem calçados, uma roupa, uma coberta. Têm fome. Estendem a mão diante das vilas ainda habitadas. Alguém joga algumas bananas. Outros gritam. Agitam facões e bastões. Mantêm-nos a distância. “Há pouca comida”, dizem, “não dá para todos”.
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