"O problema é que a situação atual não é de falta de liquidez, mas de "empoçamento de liquidez". Os grandes bancos brasileiros não emprestam, não porque lhes falte liquidez, mas porque receiam que esses empréstimos possam não ser pagos", escreve José Luis Oreiro, professor do Departamento de Economia da UnB, em artigo publicado no jornal Valor, 05-11-2008. Segundo o economista, "quando a crise de confiança ameaça contaminar os planos de investimentos das firmas, a política fiscal deve auxiliar a política monetária por intermédio do aumento dos gastos públicos, principalmente com investimentos em infra-estrutura".
Eis o artigo.
Nas últimas seis semanas os efeitos da crise financeira internacional atingiram em cheio a economia brasileira. No final de agosto o dólar ainda era cotado em torno de R$ 1,60. O dólar fechou cotado a R$ 2,14 no dia 29/10. Uma desvalorização de 33% em dois meses. Conseqüência do "câmbio flutuante que flutua", diriam alguns. No entanto, ao contrário do que pensam os paladinos do regime de flutuação cambial, essa rápida e desordenada desvalorização do câmbio provocou efeitos desestabilizadores sobre a economia brasileira. Diversas empresas do setor produtivo amargaram prejuízos bastante significativos com a desvalorização do real. Economistas ligados ao mercado financeiro calculam que os prejuízos com as operações de "derivativos cambiais" podem superar a cifra espantosa de US$ 50 bilhões. Como resultado desses prejuízos ocorreu um aumento significativo do risco de crédito das empresas do setor produtivo. Tal situação, agravada pelo clima de incerteza originado pela crise financeira internacional, fez com que os bancos brasileiros reduzissem o crédito, principalmente o crédito ao financiamento do capital de giro das empresas. Se essa situação de "evaporação de crédito" não for resolvida rapidamente, a economia brasileira corre o risco de entrar em recessão ainda este ano devido a "implosão" da oferta de bens e serviços, a qual resulta da incapacidade das firmas de obter o financiamento necessário às suas atividades normais de produção.
A gravidade da crise não tem sido adequadamente percebida pelo governo. O Banco Central ainda acredita que os efeitos da crise internacional se limitam a uma questão da "falta de liquidez" do setor bancário. Dessa forma, as medidas tomadas até aqui se resumem a liberação (parcial) dos depósitos compulsórios com vistas a irrigar o mercado financeiro com a liquidez necessária para que o mesmo funcione normalmente. O problema é que a situação atual não é de falta de liquidez, mas de "empoçamento de liquidez". Os grandes bancos brasileiros não emprestam, não porque lhes falte liquidez, mas porque receiam que esses empréstimos possam não ser pagos. Esse receio tem o poder de se tornar uma "profecia auto-realizável": o receio gera contração do crédito, a contração do crédito gera uma queda do nível de produção e de emprego, a queda do nível de produção e de emprego gera um aumento da inadimplência dos empréstimos bancários, sancionando assim o temor inicial e dando origem a uma nova rodada de contração de crédito.
Qual seria a estratégia mais adequada para se lidar com essa crise, de maneira a defender a economia nacional, ou seja, garantir a manutenção de uma taxa razoável de crescimento (em torno de 4% a.a) da economia brasileira para os próximos dois ou três anos?
Em primeiro lugar, são necessárias medidas no sentido de garantir a estabilidade da taxa de câmbio. O Banco Central tem atuado nesse sentido por intermédio da venda de reservas internacionais e por meio da venda de swaps cambiais para irrigar o mercado de câmbio, atuando assim como um market maker. Tais medidas foram bem sucedidas no sentido de trazer a taxa de câmbio para um patamar entre R$ 2,10 e R$ 2,20; após ter flutuado em torno de R$ 2,30 nas ultimas duas semanas. O problema é que essa estratégia não é suficiente para assegurar uma estabilidade duradoura da taxa nominal de câmbio. Com efeito, o déficit cambial verificado até o dia 24/10 somava US$ 4,397 bilhões de dólares, resultado de um déficit expressivo na conta financeira de US$ 6,131 bilhões de dólares.
Em outras palavras, a crise financeira detonou um movimento de saída de capitais do Brasil. Isso significa que a estabilidade da taxa de câmbio só poderá ser mantida, no marco institucional atual de liberdade de movimentação de capitais, às custas da perda de reservas internacionais a disposição do Banco Central. Embora o volume de reservas à disposição da economia brasileira seja ainda bastante confortável, não podemos desconsiderar o fato de que o Brasil possui atualmente um déficit em conta corrente em torno de 2% do PIB e que o cenário internacional é de aversão global ao risco, o que deve reduzir os fluxos de capitais para os países emergentes. Nesse contexto, uma situação de perda de reservas pode atuar como o "evento detonador" de uma crise cambial resultante da "parada súbita" do financiamento externo à economia brasileira. Se isso ocorrer, a taxa nominal de câmbio irá apresentar uma forte depreciação, podendo facilmente superar a cotação de R$ 3,00 por dólar.
Se esse cenário de "parada súbita" do financiamento externo se concretizar serão necessárias medidas no sentido de impor controles (temporários) a saída de capitais do Brasil, de forma a garantir a estabilidade da taxa de câmbio.
Qual seria um valor razoável para a taxa nominal de câmbio? Num estudo apresentado pelo autor deste artigo no 5º Fórum de Economia da FGV-SP constatava-se a existência de um desalinhamento cambial médio de 25% no final de 2007. Considerando que o câmbio médio de dezembro de 2007 era de R$ 1,77 por dólar, isso significa que a taxa de câmbio nominal compatível com os fundamentos macroeconômicos é de aproximadamente R$ 2,17 por dólar.
Além disso o Conselho Monetário Nacional precisa adotar medidas urgentes de "direcionamento de crédito" para induzir os bancos a retomar as linhas de crédito ao setor produtivo. Uma medida concreta nesse sentido seria atrelar a liberação dos compulsórios a concessão de crédito para o financiamento de capital de giro e para o financiamento das exportações. Algumas medidas nesse sentido já têm sido adotadas pelo governo, mas ainda são muito tímidas no que se refere aos valores envolvidos.
Por fim, não é o momento para pseudo-ortodoxias na condução da política monetária e fiscal. Num contexto de desaceleração cíclica do nível de atividade econômica é papel da autoridade monetária garantir a menor queda possível do nível de produção e de emprego. Quando a crise de confiança ameaça contaminar os planos de investimentos das firmas, a política fiscal deve auxiliar a política monetária por intermédio do aumento dos gastos públicos, principalmente com investimentos em infra-estrutura. Dessa forma, a verdadeira ortodoxia econômica prega a adoção de uma política monetária expansionista, com redução significativa da taxa de juros e ampliação da base monetária, em conjunto com uma política fiscal expansionista. Eventualmente poderá haver algum aumento da dívida líquida do setor público. Se ocorrer, paciência, é o preço a ser pago pelo uso da política anti-cíclica para corrigir as "falhas de mercado em grande escala" geradas, de tempos em tempos, pela dinâmica endógena das economias capitalistas. Esperemos, portanto, que a política econômica brasileira não seja conduzida por idéias heterodoxas neste momento crucial.
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